Ética, biopoder e sociedades tecnocientíficas


Pormarina.cordeiro- Postado em 02 abril 2012

Autores: 
BARRETTO, Vicente de Paulo
MELLO, Luís Fernando Moraes de

Resumo


O desenvolvimento da tecnociência ofereceu ao homem a possibilidade de domínio da sua própria natureza e da natureza extra-humana. Com isso, foram criados objetos de poder que modificaram a natureza da ação humana, abrindo possibilidades insuspeitas para a inventividade humana, muitas delas ameaçando a liberdade e a vida futura da humanidade. Os conhecimentos científicos permitiram a produção de tecnologias que se constituíram no epicentro da vida da sociedade tecnocientífica. Ao mesmo tempo em que trouxeram vantagens significativas para a qualidade da vida humana, a ciência e a técnica transformaram-se em vértebras da sociedade contemporânea sem maiores reflexões éticas, surgindo uma nova forma de poder, o biopoder. O homem reduziu o seu agir ao fazer técnico, que se processa sem referência aos valores e finalidades intrínsecas à pessoa.

Palavras-chave: ética; biopoder; sociedades tecnocientíficas.

The development of the technoscience offered to the man the possibility of domain of his own nature and also of the extra-human nature. With this, objects of power were created that modified the nature of the human action, opening unsuspicious possibilities for the human inventivity, many of them threatening the freedom and the future life of the humanity. The scientific knowledge has allowed the production of technologies which constitute the epicenter of the technoscientific society life. At the same time that they brought significant advantages for the quality of human life, the science and the technique were transformed into the vertebra of the contemporary society without greater ethical reflections, emerging a new form of power, the biopower. The man reduced his action to the technical making, which is processed without reference to the values and purposes intrinsic to the person.

Keywords: ethics; biopower; technological societies.

Texto


Introdução

1 O homem como construtor da imagem da natureza

2 Responsabilidade e técnica

Conclusão

Referências

Introdução

A tecnociência e, principalmente, aquela nascida no contexto da revolução da biotecnologia, possibilitou à ação humana o exercício de poderes em dimensões nunca dantes imaginadas. O potencial da intervenção humana na natureza não só foi incrementado quantitativamente, como também qualitativamente. O homem passou a manipular a sua própria natureza, bem como a natureza extra -humana, tornando imprevisíveis, em muitos casos, as conseqüências das suas ações. O exame dos problemas éticos suscitados pela biologia e a engenharia genética, entre os quais a questão das células-tronco o exemplo mais atual desse desafio, pressupõe o estabelecimento de paradigmas ético-filosóficos para o seu entendimento e formulação, tanto do ponto de vista moral, como do político e jurídico. Isto porque essas questões vitais para a humanidade não encontram solução no campo específico do conhecimento científico e nem do sistema político e jurídico. Necessitam, antes, que sejam submetidas a uma análise ético-filosófica, que considere os avanços do conhecimento científico e abandone as abstrações da ética tradicional ou dogmática. 

Hans Jonas desenvolve o argumento de que toda capacidade humana, “como tal” ou “em si”, é boa, tornando-se má apenas quando se abusa dela. Portanto é sensato formular-se o seguintecaveat diante do avanço do conhecimento científico e suas aplicações tecnológicas: utilize este poder, mas dele não abuse. O pressuposto para que se possam determinar os limites ao poder de intervenção do ser humano, especificamente, aquele exercido pelo biopoder[3], reside na determinação do uso correto e do uso abusivo de uma mesma capacidade.[4] Nesse sentido, podemos dizer que o biopoder (ou biopolítica) está relacionado a questões de gestão e regulação social, nacional e internacional das implicações do desenvolvimento da biomedicina e da biotecnologia. Particularmente, a biopolítica tem por objeto as políticas da saúde e do meio ambiente, o tratamento eqüitativo das desigualdades, e a gestão do risco diante a emergência da complexidade em todos os âmbitos da sociedade. Emílio Muñoz diz que a biopolítica pode ser definida como a parte da bioética que transforma os problemas da interação entre as sociedades e os sistemas biológicos em decisões e acções políticas através de acordos, normas, regulamentações e leis. Em resumo, a biopolítica enfrenta os aspectos políticos e regulamentares da bioética, encarando-a no plano, não dos indiv íduos, mas da sociedade em geral.[5] 

Na sociedade tecnocientífica, a ação humana se identifica com a ação técnica, produzindo efeitos que não podem ser determinados como “bons” ou “maus” através de distinções qualitativas evidentes por si. Neste sentido é que Jonas refere-se ao surgimento de um novo paradigma ético. 

O uso da capacidade de criar e produzir em grande escala, por melhores que sejam as intenções, fazem com que as ações na sociedade tecnocientífica provoquem, de forma crescente, efeitos maus que são inseparáveis dos efeitos bons. O lado ameaçador da técnica existe não só quando ocorre o abuso dela por má vontade, mas também quando ela é empregada de boa vontade para fins próprios legítimos. Ocorre o que Boudon chamou de “efeitos perversos” da ação social.[6] 

Contra o alerta relativo aos riscos da ambivalência da técnica e, ao mesmo tempo, procurando justificá-la, teóricos da ciência levantam o argumento de que na natureza mesma há processos que também comportam falhas ou imperfeições, como a reprodução humana. Essa pode ter insucesso ou imperfeições, mas esses efeitos não são prejudiciais à natureza humana e extra-humana por integrarem o processo evolutivo que possui leis intrínsecas para harmonizar a diferença que surge das mutações. 

A simples equiparação dos efeitos perversos da técnica com a contingência da natureza pode ser tomado como exemplo do horizonte do imaginário científico, que não reconhece valores e fins que são intrínsecos à natureza, tomando-a como matéria bruta plenamente suscetível de transformação de acordo com os critérios da vontade humana. 

Essa forma de pensar pode ser compreendida como produto, e ao mesmo tempo como implicação, de alguns problemas, que são considerados resultados de um niilismo que se fortaleceu no século XX, tanto no âmbito das ciências, quanto do pensamento humano em geral. O niilismo caracteriza-se, assim, por considerar que: (a) o homem encontra-se deslocado do mundo, mas existe e pensa apesar do mundo[7]; (b) a extrema contingência da existência humana a priva do sentido do todo, sendo o sentido não mais encontrado e sim dado pelo próprio homem; (c) ocorre uma separação dos domínios objetivo e subjetivo, a partir da qual o homem, através da técnica, passou a manipular a natureza segundo a sua vontade; (d) modifica-se a imagem da natureza, tornando relativa a idéia de que o homem vive em um ambiente cósmico; (e) a obrigação é uma invenção humana, não uma descoberta baseada no ser objetivo do bem em si mesmo; (f) o fundamento do ser é indiferente para a nossa experiência de obrigação. Essa indiferença do ser é a própria indiferença da natureza, impossibilitando assim que a ciência moderna apreenda em toda a sua complexidade quais os fins intrínsecos à natureza, que balizariam a atividade humana. 

Neste ponto, é importante dizer que a ciência está situada em um âmbito ôntico, desenvolvendo-se em uma racionalidade apofântica que constrói enunciados fundados no método que estrutura a ciência. O limite do pensar da ciência é o limite imposto por seu próprio método.[8] Portanto, a ciência compreende apenas o que o seu método permite que ela compreenda. A ciência por si só não é suficiente para alcançar o âmbito ontológico da manifestação dos valores que consubstanciam o agir humano a fim de projetar referenciais éticos para a produção científica e manipulação da natureza. 

A falta de referenciais ético-filosóficos para a ciência contemporânea impede que ela possa se posicionar adequadamente diante dos problemas que surgem da sua própria produção. Ao projetar os seus questionamentos éticos levando em consideração a estrutura e eficiência do seu próprio método, a ciência reduz de forma equivocada a tematização ética a problemas como “produção de sucessos ou falhas” ou a “busca humana pela perfeição”, tratando-as como questões fundamentais. Na verdade, essas são questões localizadas no âmbito ôntico das ciências, no qual o pensar está reduzido à técnica em si mesma e às suas possibilidades, que por essa razão não conseguem resolver as suas aporias essenciais. 

A questão que propomos aqui como fundamental para a compreensão da problemática da tecnologia – e, portanto, do agir técnico – pressupõe a superação de dualismos como consciência e mundo exterior, forma e matéria, sujeito e mundo, liberdade e necessidade, bem como de monismos que oferecem maior dignidade ou à morte ou à vida. 

O dualismo retirou da matéria todo o conteúdo que pudesse dizer respeito a sentimentos, ao espírito, interiorizando na consciência do sujeito todos esses atributos. A matéria passou a ser concebida como matéria pura e sem vida. O homem descobriu-se como ser alheio ao mundo. Esta oposição levou o homem a retirar o sentido do mundo, implicando na mecanização da natureza. Todo sentido ou sentimento passou a ser considerado como pura representação que um sujeito faz com relação ao mundo. Como afirma Hans Jonas: (...) a simples possibilidade de se conceber um “universo não animado” surgiu como oposição à ênfase cada vez mais exclusiva colocada sobre a alma humana, sobre sua vida interior e sobre a impossibilidade de compara-la a qualquer coisa da natureza. Est a separação trágica, que se tornou cada vez mais aguda até o ponto de os elementos separados deixarem de ter qualquer coisa em comum, passou desde então a definir a essência de ambos, precisamente através desta exclusão mútua. Cada um deles é o que o outro não é. Enquanto a alma, que se voltava para si própria, atraía para si todo significado e toda dignidade metafísica, e se concentrava em seu ser mais íntimo, o mundo era despido de todas estas exigências[9] Com a radicalidade do dualismo, o corpo e o mundo material como um todo passavam a ser concebido como uma prisão da alma, um túmulo para o espírito. Esse monismo baniu a vida universal, não estando mais apoiada por nenhum pólo transcendente. Assim, a vida finita e particular passou a ser valorizada como um aqui e agora, que se este entre um início e um fim. Isto significa que o lugar da vida no âmbito do ser ficou reduzido ao caso particular do organismo nos seus condicionamentos terrenos. O que condiciona e possibilita a vida é um improvável acaso do universo, alheio à própria vida humana e dotada de leis materiais indiferentes ao fenômeno vital.[10] 

Todos esses movimentos apresentam continuidades e descontinuidades com relação aos binômios matéria/forma, corpo/alma, vida/morte. Mas chama atenção o fato de que estas orientações nos obrigam a fazer uma opção entre um conceito ou outro. Hans Jonas propõe uma superação deste dualismo a partir da idéia de que existe nos organismos não apenas algo que os movimenta – como o princípio interior à sua própria natureza, pensado por Aristóteles – como também uma maneira de existir que pode ser percebida objetivamente. Por essa razão, Hans Jonas diz que não há uma separação entre o orgânico e o espiritual. A percepção e o movimento são intrínsecos ao orgânico e seguem uma finalidade que a própria natureza possui. Essa finalidade é encontrada a partir da pressuposição de uma liberdade intrínseca à natureza. Assim, a evolução e a vida não estão lançadas ao puro acaso ou a uma estrita necessidade. Hans Jonas escreve que 
(...) nos obscuros movimentos da substância orgânica primitiva, dentro da necessidade sem limites do universo físico, ocorre um primeiro lampejo de um princípio de liberdade – princípio este que é estranho aos astros, aos planetas e aos átomos.[11] 

Ao delinear os contornos do conceito de liberdade, Hans argumenta que: ‘liberdade’ tem que designar um modo de ser capaz de ser percebido objetivamente, isto é, uma maneira de existir atribuída ao orgânico em si, e que neste sentido seja compartilhada por todos os membros da classe dos “organismos”, sem ser compartilhada pelas demais: um conceito ontologicamente descritivo, que de início só possa ser mesmo relacionado a fatos meramente corporais. Mesmo neste caso, no entanto, ele não pode deixar de estar relacionado com o significado que atribuímos a este conceito no âmbito humano, de onde foi tomado – pois do contrário o empréstimo e a aplicação mais ampla passariam a ser um simples e frívolo jogo de palavras. Apesar de toda a objetividade física, os caracteres por ele descritos no nível primitivo constituem a base ontológica e a antecipação daqueles fenômenos mais elevados a que pode ser aplicado diretamente o nome de “liberdade”, e que lhe servem de exemplo manifesto: e mesmo os mais elevados destes fenômenos permanecem ligados aos inícios não aparentes na camada orgânica básica, como condição para que sejam possíveis. Desta maneira o primeiro aparecimento do princípio em sua forma pura e elementar implica a irrupção do ser em um âmbito ilimitado de possibilidades, que se estende até as mais distantes amplidões da vida subjetiva, e que como um todo se encontra sob o signo da liberdade[12] 

Em torno do conceito de liberdade, intrínseca ao organismo, é que Hans Jonas explicita a dimensão existencial da matéria viva. Essa maneira de existir atribuída ao orgânico deve ser compreendida como um fundamento para a objetividade dos fins e valores que a natureza possui. 

Nesse horizonte, a natureza se organiza de tal forma a partir da sua liberdade intrínseca que comprova a hipótese de uma passagem da substância inanimada para a substância orgânica, resultante de uma mudança na profundidade do ser. Isto significa que o dinamismo elementar da natureza acontece em razão de uma liberdade por ela própria possuida. Hans Jonas não ignora a existência de uma necessidade que todo o organismo possui que se vai manifestar como “existência em risco”. A existência depende, portanto, de uma tensão entre ‘ser e não-ser’, quando o organismo é dono de seu ser apenas de modo condicional e revogável. Hans Jonas diz que o “não-ser entrou no mundo como uma alternativa ao próprio ser”[13]. O sentido do ser é dado pela ameaça da sua negação, passando a ter que se afirmar, ao desejar a sua própria existência. Isto implicou em perceber o ser não mais como estado, mas sim como possibilidade imposta pela existência de uma ameaça. Assim, a vida deixa de ser compreendida como uma positividade isolada da morte (ou da transformação), compreendida como um estado de ausência da vida. Ao fundamentar esta concepção, Hans escreve que: Suspenso, assim, na possibilidade, o ser é sob todos os aspectos um fato polar, e a vida manifesta sem cessar esta polaridade nas antíteses básicas que determinam sua existência: a antítese do ser e não-ser, de eu e mundo, de forma e matéria, de liberdade e necessidade.[14] 

Essas aparentes dualidades não podem ser vistas como domínios separados. Na verdade são ambivalências que propiciam o dinamismo da vida. O ser é constituído pelo não-ser, a possibilidade pela necessidade. Com isso, temos delineado o horizonte para formularmos a questão fundamental sobre o desenvolvimento de tecnologias como as biotecnologias e nanotecnologias, consideradas sob a perspectiva de uma dimensão possível da liberdade, buscando superar os dualismos da modernidade e indicando valores e fins para o agir humano. 

O pensamento dominante sobre as relações da técnica com a natureza ainda conserva resquícios de uma concepção mecanicista de mundo, que violenta a natureza para dela poder tirar melhor proveito para os interesses do homem. Ao se reduzir o problema das tecnologias ao sucesso ou fracasso de manipulações ou então à perfectibilidade da arte humana, alçada quase à categoria de divina providência, concentramos a nossa atenção apenas no âmbito do fazer, da poiesis, da criação humana, esquecendo que há uma objetividade na natureza que nos impõe a reflexão sobre o nosso agir. 

Essa objetividade encontra-se na liberdade de todo organismo e daí resulta que a natureza possui objetivos e fins que não podem ser ignorados pela ação técnica do homem. Quando uma tecnologia interfere na liberdade da natureza, está determinando uma irrupção na harmonia do todo que não pode ser compreendida, tampouco prevista pelo homem em toda a sua magnitude e amplitude. Isto porque ao interferir na liberdade do organismo, o homem modifica a estrutura da própria natureza e provoca um desequilíbrio nas relações de liberdade e necessidade que o dinamismo interno da vida possui. Hoje, o organismo não mais apenas tem que lutar contra o não ser da morte ou de mu danças naturais do habitat. A luta se dá contra agentes e forças que não respeitam o dinamismo da vida, os fins e os valores intrínsecos da natureza. Portanto, a partir da intervenção na liberdade da natureza, o homem modifica o próprio processo de conservação e evolução da vida. A natureza passa a ser suscetível da manipulação humana a tal ponto que se procura objetivar uma realidade imaginada na consciência do próprio homem. 

 

1 O homem como construtor da imagem da natureza
A possibilidade de o homem interferir na liberdade intrínseca dos organismos e no dinamismo da vida – por meio de técnicas como a manipulação genética, a biotecnologia e a nanotecnologia – transforma, assim, a compreensão do homem e da natureza. Torna-se relevante, nesse contexto, uma reflexão sobre a imagem que o homem passa a ter de si e da natureza. Para tanto, surge a necessidade de uma antropologia que não apenas pergunte o que distingue o ser humano dos outros animais, mas em que medida as novas técnicas, vale dizer, a intervenção humana na natureza, repercutem na própria pessoa. 

Hans Jonas esboça um conceito fundamental para tratar dessa nova antropologia. Ao compreender que o conceito de linguagem e de fala se tornou inseguro pela multiplicidade de orientações teóricas, Hans Jonas indica a capacidade de imagem como um meio privilegiado para o reconhecimento da igualdade essencial do ser, ou que, no mínimo, possa fornecer a possibilidade de se determinar a diferença do homem em relação ao animal.[15] O homem é um ser capaz de fazer uma representação imagística sem uma finalidade prática[16]. A imagem é uma forma de o homem representar o objeto, construindo uma nova relação com este. 

A imagem pode ser caracterizada como a semelhança intencional com um objeto. Há, portanto, duas relações na configuração da imagem: (a) existe uma semelhança em si entre o objeto e a produção artificial (a imagem), e (b) existe um propósito em se produzir no artefato esta semelhança com o objeto. A semelhança em si conserva uma relação de reciprocidade entre objeto e artifício. Já a intenção daquele que produz a imagem consiste em uma relação unilateral. 

Essa semelhança não é completa, reproduzindo apenas a aparência superficial em si, ou seja, a semelhança não se encontra, portanto, na substância. É essencial para compreendermos a ideia de imagem, situá-la em seus limites: 

Este limitar-se da intenção representativa à superfície que aparece é o sentido mais fundamental em que toda semelhança imagética é incompleta, por ser constitutiva do gênero “imagem”. Esta incompletude portanto, que poderíamos chamar de ontológica, é decidida preliminarmente com a intenção da imagem como tal, no caso particular.[17] 

O homem possui, assim, a liberdade de escolha dos traços representativos da coisa que constituirá a imagem. Assim, os aspectos omitidos na imagem também serão determinados por uma escolha, que passa a orientar o sentido da imagem. É importante notar, para os nossos propósitos, que a visão possui um papel importante na escolha dos traços da representação que dirigem o sentido. Hans Jonas, a propósito, argumenta como a natureza humana escolheu o aspecto visual como representativo das coisas: 

O limitar-se a este único sentido como meio de percepção da representação é ele próprio a primeira “escolha” que atua na produção da imagem, sua espécie sendo preliminarmente decida pela predominância da visão: a natureza humana fez a escolha prévia do aspecto visual como representativo das coisas[18] 

A representação parte da aparência do objeto, captada pela visão. É esse exercício de escolha dos traços representativos que possibilitam à imagem a sua expressividade, o que não existiria se a imagem refletisse a completude do objeto, reconstruindo um objeto equivalente. 

Outro aspecto importante a se considerar é que aquilo que é “representado na imagem é destacado da interação causal das coisas e levado a uma existência não-dinâmica, que é a existência da imagem em si (...)”[19]. Isto significa dizer que a imagem representa algo sem sê-lo, por exemplo, a imagem pode representar um perigo sem ser perigosa, o desejado sem a satisfação do desejo. A substancialidade do objeto deixa de existir na dimensão simbólica. 

Esses aspectos da imagem podem ser associados à atividade contemplativa do homem diante do mundo. Ao contemplar, o homem cria a imagem de si mesmo e dos objetos em conformidade com a medida dada pela natureza. Por isso, anteriormente foi ressaltada a importância da visão para a formação da imagem. 

No horizonte da atividade contemplativa, a visão é o sentido privilegiado para se conhecer o mundo. Nesse sentido, Aristóteles escreve que Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. Sinal disso é o amor pelas sensações. De fato, eles amam as sensações por si mesmas, independentemente da sua utilidade e amam, acima de todas, a sensação da visão. Com efeito, não só em vista da ação, mas mesmo sem ter nenhuma intenção de agir, nós preferimos o ver, em certo sentido, a todas as outras sensações. E o motivo está no fato de que a visão nos proporciona mais conhecimentos do que todas as outras sensações e nos torna manifestas numerosas diferenças entre as coisas[20] 

A substancialidade do sentido está no próprio mundo. A objetividade da natureza (phýsis, compreendida como totalidade) é a medida do conhecimento e do agir humano. O homem encontra o sentido para sua vida inserido na totalidade que floresce diante dos seus olhos. Neste contexto, todo fazer humano é a produção de algo que esteja em harmonia com o mundo que lhe antecede. Os segredos da natureza são o mistério que simboliza para o homem da contemplação a sua pequenez diante do poder da natureza. 

Assim, o homem construiu a sua ciência como imagem da natureza. O homem constrói os símbolos do seu saber como a representação daquilo que pode ser percebido pelo olhar, sem submeter a natureza à violência do experimento. Pierre Hadot diz que nesta orientação: (...) há lugar para uma física apegada à percepção, poder-se-ia dizer ingênua, que para compreender a natureza utiliza apenas o raciocínio, a imaginação, o discurso ou a atividade artística. Esta será sobretudo a físicia filosófica, aquela do Timeu de Platão, a da de Aristóteles, dos epicuristas e dos estóicos, também a dos astrônomos, como Ptolomeu, que mais tarde, nos tempos modernos e na época romântica, se tornará filosofia da natureza. Mas também a poesia se esforçará por fazer reviver a gênese do mundo. Enfim, a pintura aparecerá igualmente como um meio de acesso ao enigma da natureza.[21] 

Ao representar a imagem da natureza, o homem não tem por objetivo apoderar-se dela para satisfazer os seus desejos de ultrapassar os limites do cosmos. O homem busca conhecer a natureza venerando-a. Esta concepção de mundo predomina no pensamento antigo e pré-moderno. 

Entretanto, na aurora da modernidade, o homem passa a se autocompreeder fora da totalidade da natureza. A reificação retira todo sentido da natureza e transforma o mundo e suas relações em um mecanismo vazio de finalidade e valor. Com isto, o homem passa a ser a medida do sentido do mundo, e a sua ação fica reduzida ao fazer. A práxis deixa de estar fundada em valores intrínsecos à natureza das coisas e do homem, e a poiesis passa a estar assentada nos limites representados na consciência do homem, sem uma medida que integre a totalidade. 

A ausência de uma medida objetiva de mundo faz com que a construção da imagem tenha as suas propriedades alteradas. O homem deixou de ser contemplativo para se tornar produtor da própria realidade. A liberdade que o homem tinha para selecionar os traços do objeto que figurariam a imagem se transformou em liberdade para determinar a natureza. Esta liberdade passou a caracterizar o novo homem que surgia. 

Com a confluência da ciência e da técnica, a ação humana foi incrementada qualitativamente. A liberdade do homem diante da natureza extrapolou os limites impostos pelas relações de causalidade e leis físicas existentes. O homem não se conteve na aparência do que estava diante dos seus olhos, passando a interferir no próprio dinamismo da vida. Os limites da liberdade humana deixaram de ser o limite de uma objetividade intrínseca à natureza. Agora, os limites da liberdade do homem estão restritos aos limites que a técnica lhe impõe para a produção do mundo. 

A inexistência de objetividade do mundo leva toda a construção imagética a se confundir com o próprio objeto. O homem continua a ser um produtor de imagens, mas a representação não é mais resultado de uma aparência entre o “eu” e o “real”. A relação entre imaginação, imagem e real corre o risco de deixar de ter mediações simbólicas que limitem o agir humano. 


 
2 Responsabilidade e técnica


A tematização de uma dimensão possível da liberdade intrínseca à matéria orgânica implica o reconhecimento de uma objetividade na natureza, levando-nos a perceber que o agir humano deve estar substancializado por valores e fins que estão dados pela própria natureza. Esta postura surge como uma alternativa crítica ao empreendimento moderno que reduziu o agir (práxis) ao fazer (poiesis), transformando a ética em política e, por conseqüência, dando legitimidade para que o homem atuasse de acordo com os interesses implícitos nas relações de poder. O mundo se torna objeto da produção humana e esta se constitui no princípio que o rege. Neste sentido, a substancialização do agir passa pela estratégica tematização de uma responsabilidade fundada em uma objetividade delineada por valores que são dados pela natureza, atendendo às demandas éticas de uma sociedade tecnocientífica. 

Essas demandas estão projetadas em um futuro longínquo, fazendo com que a responsabilidade atual incorpore em seu horizonte o futuro. A técnica moderna ofereceu possibilidades para o agir humano que extrapolaram os limites da proximidade e da contemporaneidade. Dessa forma, os pressupostos da ética clássica se tornaram insuficientes para tratar os problemas da ação técnica, exigindo-se a reflexão sobre o desenvolvimento de um paradigma ético fundado em uma nova dimensão da responsabilidade. 

Hans Jonas procurou caracterizar a tradição ética fazendo um paralelo com o estado atual das coisas engendrado pelo desenvolvimento tecnológico[22]. Estas características foram identificadas em quatro pontos: 

(a) O domínio da téchne era eticamente neutro – a atividade humana empreendida com o uso da técnica praticamente não afetava a estabilidade da natureza das coisas e não colocava, por isso, o perigo de um dano permanente à integridade de seu objeto, o conjunto da ordem natural. Além disso, o sujeito da ação compreendia a técnica como um instrumento para a satisfação de uma necessidade natural, e não como um progresso justificado em si mesmo como o fim último da humanidade. Assim, a interferência humana por meio da técnica em objetos extra-humanos (como a natureza) não constituía um âmbito de relevância ética, pois a ação humana não era capaz de transformar a natureza das coisas.[23] 

(b) A ética era antropocêntrica – a relevância ética estava nas relações inter-humanas, de um homem com outro, incluindo a relação consigo mesmo. Portanto, o modo como o homem se relacionava com a natureza não possuía relevância ética. Tampouco, havia alguma relevância as conseqüências para as gerações futuras dos atos praticados no presente. 

(c) A constância da entidade humana – a entidade “homem” e sua condição fundamental eram compreendidas como constantes em sua essência e não como objeto de uma técnica transfomadora[24]

(d) O alcance imediato do bem e do mal resultantes da ação – o bem e o mal que eram produzidos por uma ação estavam restritos às proximidades do ato, no âmbito de seu alcance imediato. A ética se concentrava na qualidade moral do ato momentâneo. Tanto o saber quanto o poder estavam muito limitados para incluir em sua previsão o futuro remoto e a possibilidade de uma causalidade que atingisse uma esfera global. A proximidade das conseqüências do ato se refere tanto à dimensão espacial quanto temporal. 

A natureza das ações humanas se transformou em face do caráter dos seus efeitos destrutivos sobre toda a biosfera do planeta. O aspecto ambivalente de toda ação técnica passou a implicar na impossibilidade de se distinguir e separar os efeitos bons e maus. Essa ambivalência acarreta a imprevisibilidade dos efeitos que as ações humanas (realizadas a partir da técnica) poderão provocar. A única certeza que se tem é que, em longo prazo, toda ação técnica gera efeitos ameaçadores. Esta ameaça ao equilíbrio e à existência da vida justifica a exigência de reflexão ética sobre a ação técnica. Como escreve Hans Jonas, a tensão encontrada no seio da sociedade tecnocientítifca consiste na dupla face da técnica 

La dificultad es que no solo cuando se abusa de la técnica con mala voluntad, es decir, para malos fines, sino incluso cuando se emplea de buena voluntad para sus fines propios altamente legítimos, tiene un lado ameazador que podría tener la última palabra a largo plazo. Y el largo plazo está de algún modo inserto en la acción técnica. Mediante la dinámica interna que así la impulsa, se niega a la técnica el margen de neutralidad ética en el que sólo hay que preocuparse del rendimiento. El riesgo de “demasía” siempre está presente en la circunstancia de que el germen innato del “mal”, es decir, lo útil y llevado a su madurez[25] 

Com a técnica moderna, a ação humana alcançou novas formas de poder[26], que desenvolveram capacidades, antes desconhecidas pelo homem, de manipular as leis da natureza humana e extra-humana. O ser humano tornou-se, então, extremamente vulnerável na sua individualidade e com isto ameaça toda a existência humana futura no planeta. 

A partir desses pressupostos, Hans Jonas pensa em uma heurística do temor como um caminho para a fundamentação de uma responsabilidade orientada para o futuro. É necessário se fazer um exercício para se saber o que deve ser protegido e por qual motivo. Quando falamos que o ser humano está ameaçado em razão da intervenção técnica sobre si, nós o fazemos com base em uma antecipação da desfiguração do homem tendo em vista uma idéia de homem que deve ser preservada desta ameaça. 

A relação ética do homem com a natureza e consigo mesmo a partir da intervenção técnica está sustentada pela imperativa previsão do perigo dos efeitos nocivos que a ação humana pode provocar no futuro, exigindo-se que toda ação humana seja realizada a partir de uma relação de cuidado. Essa relação de cuidado somente poderá configurar-se na medida em que se considere a dimensão do valor do bem e da ameaça do mal. Para tanto, torna-se necessário considerar-se ambas as opções que se abrem para a ação humana. 

Em relação ao conhecimento do bonum, o conhecimento do malum é mais evidente, por estar menos suscetível às diversidades de critérios[27]. Já o bem precisa ser buscado. E nem sempre conseguimos determinar com certeza se é este ou aquele bem que estamos procurando. Conseguimos definir muito melhor o que não queremos do que aquilo que queremos. Dessa forma, toda ação humana deve ter em vista a representação de um mal que deve ser evitado. 

Assim, Hans Jonas propõe uma filosofia moral que esteja orientada mais por nossos temores do que por nossos desejos. A heurística do temor consiste basicamente na necessidade de nos guiarmos mais pelo que tememos, no sentido de evitá-lo, do que por aquilo que desejamos. Com a exigência de previsão dos males que poderão ser provocados pela ação técnica do presente, a relação ética passa a não se constituir apenas no âmbito presente, mas também passa a estar orientada para o futuro. A previsão de um malum futuro significa temer algo que ainda não foi experimentado. Como o que é temido ainda não foi experimentado, temos que representar este malum. O malum representado deve assumir o malum experimentado. Esta representação deve ser buscada intencionalmente. 

Traçando um paralelo com a ética clássica – de caráter individualista –, a partir de Hobbes[28], Hans Jonas entende que a representação de um malum futuro não é algo que se dá espontaneamente, devendo ser intencionalmente representado. Mas até mesmo esta representação do malum apresenta algumas dificuldades de realização. 

Hans Jonas diz que a representação do malum não é tão simples como o era para Hobbes. O ponto de partida da filosofia moral de Hobbes não era o amor ou o bem supremo (summum bonum), mas o temor a um mal supremo (summum malum), que consistia no temor à morte violenta. Neste caso, o temor à morte violenta é algo que está sempre próximo e está intrínseco ao nosso instinto de preservação. Este tipo de temor é sentido espontaneamente pelo indivíduo, sem necessidade de representação. Afinal, no quadro traçado por Hobbes, a vida individual está permanentemente colocada em perigo. 

A dificuldade de uma ética orientada para o futuro começa pelo imaginário individualista que se tem em relação à projeção da vida e do destino humano. Há a necessidade da construção de um imaginário que dê conta da alteridade presente e futura como forma de se garantir a existência. A representação do malum futuro estaria, assim, intimamente relacionada à representação do destino dos homens futuros e do planeta. Esse temor não atinge a pessoa de modo direto e individual, mas serve como base da reflexão ética sobre as conseqüências das nossas ações para a preservação da liberdade das gerações futuras. 

Nunca o homem teve à sua disposição a evolução da sua espécie ou das demais formas de vida. Com o uso da técnica, o homem pode desenvolver esta possibilidade. Antes disso, a evolução humana e de todo a natureza era realizada por uma mutação produzida naturalmente, onde a ordem do todo era assegurada pela seleção natural (a forma como a natureza garantia a coerência das suas mutações). 

A manipulação da vida pelo uso e desenvolvimento de tecnologias provoca mudanças na estrutura natural dos seres vivos sem se ter a possibilidade de previsão de todos os efeitos. Além disso, essas ações são cumulativas, determinando as possibilidades de ações futuras. Os experimentos tecnológicos possuem a tendência de se tornarem autônomos e, por isso, são irreversíveis e incontroláveis. A autonomia é uma das características da técnica. Segundo Jacques Ellul, a autonomia da técnica tem como implicação o fato das necessidades externas não a determinarem, operando apenas a partir de suas necessidades internas. Para ele, a técnica Tornou-se uma realidade em si, que se basta a si mesma com suas leis particulares e suas determinações próprias. (...)um grau acima e a autonomia se revela com relação à moral e aos valores espirituais. A técnica não suporta nenhum julgamento, não aceita limitação alguma. (...)seu poder sua autonomia, acham-se tão bem estabelecidos que ela se transforma por sua vez em juiz da moral, em construtora de uma nova moral. E nisso também desempenha seu papel de criadora de uma civilização.[29] 

Toda ação humana realizada com a tecnologia, depois de iniciada, gera conseqüências que fogem do controle do agir humano, e todos os fatos consumados a partir da ação inicial se convertem, cumulativamente, na lei de sua continuação. 

Por essa razão, o desenvolvimento tecnológico pode restringir a liberdade de escolha das gerações futuras, pois estas já não terão as mesmas condições que nós temos hoje. A possibilidade de uma alteração da natureza humana e extra-humana pelo desenvolvimento tecnológico pode resultar no fim da herança da evolução passada. Este vínculo com o passado deve ser preservado, pois é ele que nos oferece a capacidade de julgar o que é o bem e o mal. Esta tradição é o que nos constitui como pessoas e agentes morais. 

É neste sentido que Hans Jonas se refere ao caráter sacrossanto do sujeito da evolução: Deve-se pensar que há a herança de uma evolução anterior anterior a ser preservada. Ela não pode ser tão má, já que legou aos seus proprietários atuais a capacidade (que eles atribuem a si próprios) de julgar o bem e o mal. Mas essa herança pode se perder.[30] 

O uso e o desenvolvimento da tecnologia pelos cientistas transcorrem imbuídos pelo espírito de uma liberdade do jogo criador. É uma liberdade que está guiada apenas por um impulso lúdico e que não abriga outra pretensão que a de dominar as regras do jogo, isto é, a aspiração à competência técnica.[31] Assim, em preterimento da liberdade das gerações futuras, as decisões do presente são tomadas como forma do supremo direito de exercício de liberdade científica. 

Com os fundamentos que estamos trabalhando, podemos concluir que a forma como a ciência pensa a sua liberdade de ação e a relação que possui com o futuro não possuem legitimidade em um contexto onde o cuidado com o outro extrapola os limites da contemporaneidade e da proximidade, e se dirigem às futuras gerações. 

A preocupação com as gerações futuras tem como primeira exigência o dever de não sermos abusivos. Toda preocupação pelo futuro é abusiva quando procuramos imp or nossa concepção sobre como as coisas devem ser, nossa visão do desejável e do não desejável, nossas distinções entre o bem e o mal ou entre aquilo que é normal e o que é monstruoso. A preocupação pelo futuro deve ser a de não negar para as próximas gerações um mundo com menos liberdade, não fechando definitivamente os caminhos que não seguimos por razões e sentimentos que são apenas nossos.[32] 
A inovação de uma ética da responsabilidade dirigida ao futuro consiste na obrigação de não deixarmos que o futuro longínquo cuide de si mesmo. A responsabilidade possui um caráter total, em que há uma relação de cuidado contínua. O exercício da responsabilidade não pode ser interrompido. Hans Jonas compara a responsabilidade orientada para o futuro com a responsabilidade dos pais ou do governo. O cuidado dos pais ou do governo não pode tirar férias. 

Isto é diferente da responsabilidade que o capitão de um barco possui com os seus passageiros. Esta responsabilidade tem um início e um fim determinados, coincidindo com o início e fim da viagem. O mesmo ocorre com a responsabilidade do médico, que tem a obrigação de cuidar do paciente enquanto durar o tratamento. 

A responsabilidade orientada para o futuro é uma responsabilidade total, que se realiza historicamente, abarcando o seu objeto em sua historicidade. Por isso, ela é contínua. Este futuro não é um futuro imediato (como o amanhã), mas é um futuro da existência, da existência daqueles que ainda não são e que o vir-a-ser é protegido. 

Para Hans Jonas, a responsabilidade orientada para o futuro exige do governante políticas públicas que preservem as condições de existências daqueles que estão por vir. Para tanto, deverão ser realizadas projeções do futuro para a tomada de decisões no presente. 

É muito difícil se determinar quais ações realizadas no presente poderão comprometer a existência do futuro. Hans Jonas diz que em relação a isso só é possível ter um imperativo muito genérico: “não fazer nada que impeça a continuidade do surgimento de seus semelhantes”. 

As projeções em relação ao futuro podem ter um alcance mais próximo ou mais longínquo. Os de alcance mais próximo são os mais factíveis. O congestionamento do tráfego em 10 ou 20 anos decorrente do aumento do número de veículos, o crescimento populacional de uma região. Mesmo nestas hipóteses, sobre as quais possuímos conhecimento mais concreto, as previsões podem ser desmentidas pelo surgimento de variáveis que eram desconhecidas. 

As projeções realizadas para um horizonte mais remoto são mais problemáticas ainda. Há uma série de condições imprevisíveis que surgem cumulativamente com elementos que interagem, sem grandes probabilidades de conseguirmos representar estes acontecimentos futuros. Hans Jonas sugere que se façam predições para que o governante tenha cuidado com o futuro e tenha ações responsáveis. Estas predições poderiam ser realizadas a partir de projeções pessimistas, objetivando-se prevenir o acontecimento real de uma catástrofe. Esta seria uma forma de se garantir um contrapeso às possibilidades desenfreadas do desenvolvimento tecnológico. 

Hans Jonas nos alerta para o fato de que a era da estabilidade não existe mais. Os nossos antepassados viviam em um estado permanente, aparentemente estático, em que se podia prever que as instituições sociais, os sentimentos, as ideias, o ambiente e a natureza humana não seriam diferentes na geração posterior às suas. 

A modernidade transforma tempo e espaço, fazendo com que não possamos constituir nossa consciência voltada para o presente apenas. O ser humano deixou de ser uma essência imutável. A sua constituição passou a estar fundada na existencialidade. O homem concebido existencialmente é uma síntese do seu passado com as projeções do futuro. Suas decisões presentes são produtos dessa síntese Por outro lado, o homem passa a assumir a responsabilidade pelo cuidado com aquele que está por vir. Portanto, a sua relação com o futuro se transforma em uma obrigação moral pela preservação da liberdade das próximas gerações. 

 

Conclusão
Ao refletir sobre os desafios provocados pelas novas tecnologias, a ciência ficou restrita ao questionamento dos efeitos da técnica sem alcançar o problema fundamental que a tecnologia desencadeia: a questão da liberdade. Com isso, ficou obscurecida a pergunta por uma dimensão existencial da natureza, a qual, indicando valores e fins, orienta o agir humano. A tematização da liberdade intrínseca à natureza nos conduz à objetividade fundadora da responsabilidade em Hans Jonas. 

No contexto de Hans Jonas, o poder humano deve ser restringido pelo dever de cuidado diante da vulnerabilidade da natureza. Esta ideia vincula a liberdade humana a um dever que emerge como consequência de um poder, cujos limites são reprojetados com o avanço da tecnociência. O homem deve responder pelo que estiver no âmbito do seu poder, inclusive pela existência das gerações futuras.


Disto, podemos inferir a ideia de que as dimensões humana e orgânica da liberdade devem ser compreendidas em uma totalidade que permita ao homem perceber que a sua liberdade e a possibilidade das gerações futuras terem a mesma liberdade que as gerações presentes depende da conservação desta liberdade orgânica. 

Com o desenvolvimento tecnológico, a liberdade humana alcançou tamanhas proporções que passou a atingir a liberdade dos organismos e a colocar em risco o dinamismo da vida e a existência de toda natureza. A presença desta ameaça fica obscurecida por um nihilismo que trata a matéria exterior como um mecanismo disponível ao domínio do ser humano, sem qualquer valor e sem finalidade. Nesta concepção niilista de mundo, o homem compreende que possui legitimidade para violentar a natureza e dela se apoderar segundo seu interesse. 

Assim, o homem esvazia o sentido do mundo e, portanto, da dimensão existencial da vida no seu sentido mais total. A inexis tência de um parâmetro objetivo para a maneira de viver do homem o transforma em um autômato do próprio ser. O homem passa a reconstruir a imagem da natureza, mas perde a liberdade e autonomia para existir como humano em todas as suas possibilidades de ser. 

O mesmo nihilismo que produz o dualismo entre homem e mundo é o nihilismo que sustenta posturas científicas de que o orgânico e o inorgânico possam ser compreendidos como dois domínios separados. As nanotecnologias se desenvolvem, sobretudo, no domínio inorgânico e, por isso, muitas delas são compreendidas como tecnologias que não provocam prejuízos ao ambiente por poderem ser isoladas do meio orgânico. Esse raciocínio ignora a totalidade da vida e as implicações, que possam ocorrer no fato da técnica ser uma forma de reduzir a existência orgânica a um artefato humano. 

Diante disso, torna-se imperativo pensar as relações entre responsabilidade e natureza. A responsabilidade passa a se caracterizar como uma nova dimensão da ética que se impõe frente aos efeitos globais que as ações humanas passaram a implicar. As ideias de tempo e espaço, essenciais na apuração e na atribuição da responsabilidade moral ou jurídica, sofreram modificações profundas, tendo ambas perdido suas características originárias, passando a adotar uma nova e significante roupagem conceitual. 

A nova categoria definidora do tempo refere-se à preocupação do ser humano, para além de estabelecer o momento de sua ação, em situá-lo no contexto da sua própria possibilidade de ser e de existir. Não se trata mais, portanto, de uma sequência temporal de atos ou fatos produzidos pelo ser humano que irá servir de parâmetro no julgamento de suas ações, mas como essas ações suscitam perguntas anteriores e que se referem a questões fundamentais, como a morte e o cuidado, entendidos como a preocupação para com o outro.[33] 




Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3 ed. Brasília: UnB, 1992. 

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. 

BARRETTO, Vicente de Paulo. “O Vaso de Pandora da Biotecnologia: imp asses éticos e jurídicos.” In: TÔRRES, Heleno Taveira. (Org.). Direito e poder. São Paulo: Manole, 2005. p. 663-683. 

ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. 

HADOT, Pierre. O véu de Ísis: ensaio sobre a história da ideia de natureza. São Paulo: Loyola, 2006. 

HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 

HOTTOIS, Gilbert. El paradigma bioético: una ética para la tecnociencia. Barcelona: Anthropos Editorial, 1999. 

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade . Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-RIO, 2006. 

JONAS, Hans. O princípio vida. Petrópolis: Vozes, 2004. 

JONAS, Hans. Técnica, medicina y ética: sobre la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997. 

MUÑOZ, Emílio. “Biopolítica”, in : HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Nova enciclopédia da bioética. Lisboa: Instituto Piaget, p. 119-121. 

STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença: filosofia e conhecimento empírico. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. 



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[3] AGAMBEN, Giorgio (2004). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo.Belo Horizonte: Editora UFMG. 

[4] JONAS, Hans (1997). Técnica, medicina y ética. Barcelona: Paidós, p. 33. 

[5] MUÑOZ, Emílio. “Biopolítica”, in: HOTTOIS, Gilbert; MISSA, Jean-Noël. Nova enciclopédia da bioética. Lisboa: Instituto Piaget, p. 119. 

[6] BOUDON, Raymond (1979). Efeitos perversos e ordem social. Trad. Analúcia T. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 

[7] “No mundo só ele pensa, não porque é parte do mundo, mas apesar de ser parte do mundo. Como já não participa mais de um sentido da natureza, mas apenas – através do seu corpo – de sua condição mecânica, assim também a natureza não participa de seus anseio s internos”. JONAS, Hans. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2004. pp. 235-236. 

[8] STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença: filosofia e conhecimento empírico. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. 

[9] JONAS, Hans. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 23-24. 

[10] Idem, ibidem. p. 25. 

[11] Idem, ibidem. p. 13. 

[12] Idem, ibidem. p. 14. 

[13] Idem, ibidem. p. 14. 

[14] Idem, ibidem. p. 15. 

[15] JONAS, Hans. “Homo Pictor: da liberdade da imagem”, In: O princípio vida. Petrópolis: Vozes, 2004. 

[16] Os animais produzem imagens para utilidades vitais: “Para nos convencermos espontaneamente de que nenhum mero animal seria capaz nem haveria de produzir uma imagem, basta em primeiro lugar a ausência de utilidade de toda mera representação. Os artefatos animais possuem um emprego direto para alcançar objetivos vitais, como a alimentação, a reprodução, o esconderijo, a hibernação. Eles próprios são algo dentro do contexto de realização de alguma coisa. Mas a representação de alguma coisa não modifica o ambiente nem o estado do próprio organismo.” JONAS, Hans. “Homo Pictor: da liberdade da imagem”, In: O princípio vida . Petrópolis: Vozes, 2004. pp. 182-183. 

[17] JONAS, Hans. “Homo Pictor: da liberdade da imagem”, In: O princípio vida . Petrópolis: Vozes, 2004. p. 184. 

[18] Idem, ibidem. p. 184. 

[19] Idem, ibidem. p. 186. 

[20] ARISTÓTELES. Metafísica. 980 a 21-27. 

[21] HADOT, Pierre. O véu de ísis. São Paulo: Loyola, 2006. p. 117. 

[22] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-RIO.2006, pp. 35-37. 

[23] Um exemplo que podemos citar para isso é a forma como a técnica era utilizada na guerra. Antigamente, as batalhas aconteciam com o confronto entre soldados. O disparo de uma arma poderia ferir um soldado ou um grupo de soldados, mas os seus efeitos ficavam restritos a isto. Já com o desenvolvimento tecnológico, os efeitos de um ataque se tornaram imprevisíveis. Exemplo disso é o uso e desenvolvimento da bomba atômica. A bomba atômica não só destrói o espaço no qual ela é lançada, como também implica alterações globais do ambiente e modifica geneticamente os seres vivos expostos a sua radiação, atingindo as gerações futuras. 

[24] Na modernidade, o homem se tornou objeto da tecnologia. As possibilidades criadas pelo uso e desenvolvimento de biotecnologias fizeram com que o homem pudesse manipular a sua própria constituição física. Esta nova potencialidade da ação humana torna vulnerável a própria natureza humana (Sobre o debate acerca da natureza humana ver HABE RMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004). O paradigma da ética clássica não dá conta dos riscos intrínsecos a este novo agir humano, que possui consequências que podem por em perigo toda existência no planeta. 

[25] JONAS, Hans. Técnica, medicina y ética: sobre la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997. p. 33-34. Tradução Livre: A dificuldade é que não apenas quando se abusa da técnica com má vontade, isto é, para fins maus, mas inclusive quando se emprega de boa vontade para seus fins próprios altamente legítimos, tem um lado ameaçador que poderia ter a última palavra a longo prazo. E o longo prazo está de algum modo inserido na ação técnica. Mediante a dinâmica interna que a impulsiona desta forma, nega-se à técnica a margem de neutralidade ética na qual apenas esta tem que se preocupar com o rendimento. O risco de “excesso” sempre está presente na circunstância de que o germe inato do “mal”, isto é, o útil é levado ao seu amadurecimento. 

[26] A ideia da formação de novos objetos de poder a partir do desenvolvimento tecnológico foi tratada por Hans Jonas: “La descripción “formal” del movimiento tecnológico como tal aún no nos há dicho nada sobre las cosas con las que tiene que ver, su “matéria” por así decirlo. A ésta nos volvemos ahora, es decir, concretamente a las nuevas formas de poder, cosas y objetivos que el hombre moderno recibe de la técnica. La cuestión de tecnologías refleja la de la ciencia: mecánica, química, electrodinámica, física nuclear, biología. En general, una ciencia está madura para su aplicación a la tecnología cuando en ella – para emplear los términos de Galileo – la “via resolutiva” – el análisis – está tan avanzada que la “via compositiva” – la síntesis – puede emplear los elementos básicos así liberados y cuantificados. Sólo ahora la biología ha llegado hasta este punto: con la biología molecular viene la constructibilidad de formaciones biológicas”. (JONAS, Hans.Técnica, medicina y ética: sobre la práctica del princip io de responsabilidad. Barcelona: Paidós, p. 25). Tradução livre: A descrição “formal” do movimento tecnológico como tal ainda não nos tem dito nada sobre as coisas com as quais está relacionada, como sua “matéria”. A ela nós nos dirigiremos agora, ou seja, as novas formas de poder, coisas e objetivos que, concretamente, o homem moderno recebe da técnica. A questão de tecnologias reflexas da ciência: mecâninca, química, eletrodinâmica, física nuclear, biologia. Em geral, uma ciência está madura para sua aplicação à tecnologia quando nela – para usar os termos de Galileu – a “via resolutiva” – a análise – está tão avançada que a “via compositiva” – a síntese – pode empregar os elementos básicos assim liberados e quantificados. Apenas agora a biologia chegou neste ponto: com a biologia molecular vem a construtibilidade de formações biológicas. 

[27] Aristóteles diz que “é possível errar de várias maneiras (com efeito, o mal pertence à categoria do ilimitado, segundo a imaginação dos pitagóricos, e o bem à categoria do limitado), ao passo que só é possível acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é por isso que o excesso e a falta são características da deficiência moral, e o meio termo é uma característica da excelência moral [virtude]: ‘a bondade é uma só, mas a maldade é múltipla’ ” (In: Ética a nicômacos, 1106 b 28-35. Tradução publicada pela Editora UnB em 1985). 

[28] Ver HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1998, principalmente o primeiro capítulo intitulado “Da condição humana fora da sociedade civil”, pp. 25-36. 

[29] Jacques Ellul. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p.135. 

[30] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto, PUC-RIO.2006. p. 79. 

[31] Idem, ibidem. p. 74. 

[32] HOTTOIS, Gilbert. El paradigma bioético: una ética para la tecnociencia. Barcelona: Anthropos Editorial, 1999. p. 162. 

[33] BARRETTO, Vicente de Paulo. “O Vaso de Pandora da Biotecnologia: impasses éticos e jurídicos.” In: TÔRRES, Heleno Taveira. (Org.). Direito e poder. São Paulo: Manole, 2005. p. 673-674.