AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO - APELAÇÃO CONTRA DECISÃO FILOSÓFICA


PorEulampio- Postado em 06 maio 2015

Autores: 
Eulâmpio Rodrigues Filho

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ATO ILÍCITO

APELAÇÃO CONTRA DECISÃO FILOSÓFICA

        

Eulâmpio Rodrigues Filho

«Alma Mater»: Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Doutor em Direito pela UMSA, de Buenos Aires

Pós-Doutor em Direito na Universidade de Messina - Itália

 

 

Apelação – Razões - Interposição contra sentença que indefere inicial de ação de indenização por ato ilícito proposta por mulher contra seu ex-marido - Inconfundibilidade entre indenização e prestação alimentar.

 

 

Resumo dos fatos

 

1. A autora, ora apelante, era casada com o réu, apelado, sob o regime de Comunhão de Bens.

 

2. Do consórcio não tiveram filhos.

 

3. Em 11 de maio de 1984 ambos ingressaram com ação de separação judicial consensual, com proposta de partilha de bens, renunciando a autora a pensão alimentícia. Acordo homologado e transitado em julgado.

 

4. Em 20 de setembro de 1984 a apelante ingressou com protesto judicial contra alienação de bens em face do réu, que foi deferido e publicados editais.

5. Em 26 de outubro de 1984, ajuizou a presente ação ordinária de indenização por ato ilícito, contra o réu, que lhe atingira com um tiro de revólver, levando-a à total incapacidade física, pedindo lhe fossem deferidos reparação de danos emergentes, lucros cessantes e pensão alimentícia (art. 1.539 do CC de 1916).

 

6. Através de Decisão de 11 laudas, foi a inicial desta ação indeferida sumariamente, ao argumento de que a propositura ofende a coisa julgada estabelecida pela ação de separação, e de que à apelante falece interesse processual, por tratar-se de medida judicial presumivelmente aforada como ato de vingança, com o propósito de reduzir o réu à miséria.

 

7. Em conseqüência, extinto o processo e condenada a autora ao pagamento das custas.

 

8.  Diante disso interpõe-se este recurso, cujas razões vão adiante articuladas.

 

 

Apreciação da decisão quanto ao seu conteúdo filosófico e científico processual

 

9.  Não há como disfarçar o interesse em empreender longo debate sobre os lances filosóficos trazidos na Sentença. Mas, a destinação do trabalho inibe esse ânimo, face a esterilidade de uma discussão sobre tais temas nos autos de uma ação judicial.

 

10. Contudo, rápidas considerações são necessárias e suficientes para demonstração da inutilidade do exame da presente questão à luz da Filosofia, bem como do equívoco praticado na Sentença ao embrenhar-se por tão complicado resvaladiço.

 

11. A fls. 40 vê-se que a Decisão analisou a conduta da autora sob o ponto de vista pragmático (textual), dizendo que, por vingança, pretende ela reduzir o réu à miséria, através desta ação.

 

12. Miguel Reale ensina que: «O pragmatismo, partindo da observação comum de que a ciência serve à vida, chega à conclusão errônea de que toda ciência possui um significado prático ou econômico, no que coincide com os marxistas de todos os matizes». (Filosofia do Direito, S. Paulo, Saraiva, 1978, 8ª ed., 2º vol., págs. 377 e seg.).

 

13. Ao que se vê das exposições de Peirce e James, a verdade para o pragmatista, está naquilo que lhe é oportuno (Os Pensadores, Ed. Abril). A interpretação pragmática é imprestável ao ato de se fazer Justiça, visto que, segundo Hans Vaihinger, por ela se afirma o caráter fictício de todo o conhecimento (v. Philosophie des Als Ob). Além disso, releva lembrar que foi através do pragmatismo que Miguel de Unamuno conseguiu produzir seu célebre Comentário ao Dom Quixote. Logo, não é sem razão que Políbio, criador do termo, já dizia que a Pragmática cuida da «história que se ocupa das lendas».

 

14. Kant, que sustenta serem pragmáticos «os imperativos hipotéticos da prudência que visam o bem-estar», afirmou, a propósito: «Chamam-se pragmáticas as sanções que não derivam propriamente dos direitos dos estados considerados como leis necessárias e, sim, da solicitude para o bem-estar geral». (Grundle-gund Zur Metaphisik der Sitten, II, Nota). («apud» Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia).

 

15. Claro, então, que não é através de processos exegéticos destinados à explicação de lendas e ficções, e de relações não reguladas pela norma jurídica, que se deve solucionar uma «lide» trazida ao Poder Judiciário, para o competente desenlace.

 

16. Daí, o grande perigo da autodidaxia, em se tratando de tarefas sérias!

 

17. Demais disso, nada mais temerário e inconsequente do que decidir um caso concreto com substrato na Filosofia, ramo do conhecimento que ainda vaga pelos campos da pesquisa.

 

18. Outrossim, de total desvalimento o realce dado ao chamado critério «finalista do Direito», via filigranas resultantes das meditações de Josserand, que, a rigor, quanto a esse aspecto, não fez escola na Europa, seu berço. Basta se vejam as bibliografias dos autores daquele Continente. Além do mais, sua doutrina foi censurada pelos seus próprios confrades, visto que, «Os irmãos Mazeaud, sob outras palavras e considerações, rejeitam também os critérios propostos por Josserand eSaleilles. Embora não temam o arbítrio do juiz, declaram que para determinação da função social do direito, o juiz deverá sair do domínio do direito a entrar no da política. Eis o perigo do critério: um socialista não terá a concepção da finalidade da propriedade, como a tem um adversário da doutrina deKarl Marx. É necessário fornecer aos juízes dados mais precisos». (Alvino Lima, Abuso de Direito, Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro,J. M. Carvalho Santos, Rio, Borsoi, 1947, vol. 1, pág. 1947, vol. 1, pág. 337).

19. Percebe-se que o estudo sobre os «critérios» «finalista» e «subjetivo», na Sentença sob apreciação, tem seu contrapé firmado no excelente trabalho do Prof. Adroaldo Leão: O Litigante de Má-fé, Rio, Forense, 1982.

 

20. Mas, não atentou a Sentença para o fato de que as lições ai trazidas a propósito se referem à parte cm que o autor discorre sobre «generalidades» atinentes ao «abuso de direito».

 

21. No entanto, colocando o tema no seu devido lugar, Karl Larenz explica que: «Paralelamente, ganharam influência crescente sobre a dogmática jurídica as análises estruturais do tipo fenomenológico - como é o caso das que presidem à doutrina «finalista» da ação, de Welsel, dominante no Direito penal». (Metodologia da Ciência do Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, s/d, trad. da 2ª ed., pág. 150).

 

22. Ao ditar a Sentença ora recorrida, tivesse-se tido a acuidade de examinar as obras consultadas pelo autor citado (Adroaldo Leão), verificar-se-ia a existência de correntes antagônicas a cuidarem do tema, como se viu supra, formadas por Bonnecase, Pierre de Harven, Josserand, Mazeaud e Ripert. Verificar-se-ia, com o mesmo procedimento, a existência de lições que demonstram ser a «teoria da finalidade» objeto de disputas doutrinais despidas de conclusões definitivas, ao ponto de trazerem a seguinte contraposição à assertiva de que se valeu a Sentença para decidir: «Em campo oposto se colocam Josserand, Ripert, Mazeaud e outros. Embora não sejam absolutamente idênticos os critérios seguidos pelos mesmos, a conclusão é finalmente a de excluir a responsabilidade, quando ao lado da intenção maléfica outros motivos ou razões justificarem o exercício do direito. Josserand adota como critério, desde que ao lado da intenção maléfica, outros motivos coexistem, o do motivo determinante, principal, cumprindo ao Juiz proceder ao exame do caso concreto». (Alvino Lima, artigo e obr. cits., págs. 332 e seg.).

 

23. Logo, a idéia não deveria ter sido concebida de forma tão axiomática e perniciosa, como sucedeu na Sentença, para enxergar malícia no comportamento da autora.

 

24. No que toca à «probidade», ponto mais reluzente da Sentença, assim se expressa:

 

«Há sem dúvida, um silogismo fácil de ser armado: Se o direito material se funda na moral; o direito processual visa restabelecer o direito material, quando violado; logo, não se pode atingir aquele objetivo utilizando instrumentos que maculem o próprio resultado pretendido. Não fosse assim e, em última análise, o Estado estaria impedido de dar, por intermédio da prestação jurisdicional, a solução mais justa e, portanto, mais consentânea com os princípios da moralidade, para o conflito de interesses revelados na pendência da lide». (Sentença, fls. 40, item VII).

 

25. A seu turno, com igual maestria, e «coincidentemente», já dissera Alcides de Mendonça Lima:

 

«O silogismo é muito fácil de ser armado: o direito material se funda na moral; o direito processual visa, precipuamente, a restabelecer o direito material, quando violado; logo os meios de que se serve para atingir aquele objetivo não podem utilizar-se de situações ímprobas, maculando o próprio resultado pretendido. Se assim fosse, em última análise, por via de julgamento do juiz, o Estado estaria impedido de dar uma solução justa e legal - e, portanto, moral - para o conflito de Interesses revelado na lide». (Probidade Processual e Finalidade do Processo, Uberaba, Ed. Vitória, 1978, pág. 14).

 

26. A respeito dos lances sobre «publicização», que serviram de ornamento à Sentença, carece lembrar que o tema deveria ter sido, igualmente, explicitado com menos arrojo, em virtude da natureza privada da relação de direito material denunciada, que não se neutraliza pela publicização do processo. Com  efeito, “Na realidade, somente quando a res deducta in judicio é indisponível é que se reconhece, em seu aspecto, a natureza pública do processo». (Afrânio Silva Jardim, Da Publicização do Processo Civil, Rio, Editora Liber Juris, 1982, pág. 96).

 

27. Na «specie», não se estando diante do caso de direito indisponível, esboroado o caráter absoluto emprestado à publicização do processo na Sentença, a qual, se na aparência ostenta extravagância científico-processual, na realidade é empírica, visto haver cuidado de temas delicados - desnecessariamente - de forma elementar e equivocada.

 

28. Logo, a Sentença não causa a impressão colimada, a não ser que se lhe dedique uma atenção meramente perfunctória.

 

29. E, tal se afirma, sem constrangimento, em razão do precedente aberto na mesma Sentença, quando assevera de forma impiedosa:

«Se teoricamente, o dever de lealdade é das partes, não se pode deixar de reconhecer que, na prática ou na dinâmica forense, o mesmo é mais dos procuradores do que dela (sic); sobretudo, quando a parte não apresenta condições sociais, profissionais ou culturais, suficientes para engendrar meios de prejudicar». (fls. 45, item XVI).

        

        

Da Decisão à luz do Direito

 

30. A autora propôs esta ação visando reparação de danos resultantes de ato ilícito. No libelo imprecou uma pensão vitalícia e indenização por danos emergentes e lucros cessantes.

 

31. Na Sentença decidiu-se que se por ocasião da separação judicial a autora dispensara verba referente a pensão, falece-lhe interesse processual em demandar com base em ato ilícito, mesmo porque este teria sido praticado antes da renúncia         àquela.

 

32. Olvidou-se que além desse pedido de pensão, outros lhe foram aderidos, e aos quais jamais renunciara a autora. Repelindo-se, por isso, todos os pedidos, faltou gravemente a Decisão, pois, «Não deve ser indeferida a inicial que contenha mais de um pedido, sob fundamento de que um deles não pode ser acolhido». (TACSP, LEX-JTACSP, 59, 37, «apud» Theotônio Negrão, CPC e Legs. Processual em Vigor, nota ao art. 295).

 

33. Oportuno esclarecer que a autora manifesta este recurso apelatório, ao invés de deixar escoar o prazo e ajuizar nova ação a fim de se ver recomposta do prejuízo com maior brevidade, porque decisão igual poderia sobrevir, e porque a Sentença, ao reconhecer a inexistência de «legitimo interesse processual», com base na coisa julgada estabelecida pela decisão homologatória da separação, bem como com esteio numa estranha e mal esclarecida carência de interesse, por considerar haver a presente ação sido ajuizada com abuso de direito, faria aquela coisa julgada a impedir o reingresso.

 

34. Segundo a teoria estampada na Decisão ora hostilizada, se a separação judicial entre autora e réu tivesse sido litigiosa, não haveria óbice à presente demanda.

         

35. E é o que realmente se lê, «verbis»: «Ainda assim caberia perguntar: por que não se utilizou a separação judicial litigiosa, atendendo de forma induvidosa, ao preceito magno da lealdade e da probidade processual???» (Sentença, fls. 39, item IV, final).

 

36. Conforme vaticinado na Sentença, a fls. 43, item XII, é de se proclamar, solenemente, que não há mesmo forma de compreender a asserção de que, se o desquite foi realizado por consenso das partes, o pedido de perdas e danos por ato ilícito constitui-se em estratégia processual ilícita, com objetivo de reduzir o réu à miséria.

 

37. Além disso, não há maneira de se conformar com os fundamentos do Decisório quando sustentam «presumir-se» (textual) o ajuizamento desta ação como decorrência de «animus de vingança pessoal» por parte da autora para reduzir o réu à miséria (Fls. 40, item VII), mesmo porque tais aspectos jamais foram catalogados nas espécies constitutivas do abuso de direito (v. arts. 16 e segs. do CPC). Por outro lado, firmar-se expressamente a Sentença em Presunção do «animus», para sustentar o indeferimento do pedido, assim, sumariamente, espanta tantos quantos conheçam o princípio universal de que a má-fé não se presume. Realmente, não haveria que indagar ou responder na Decisão, se houve abuso de direito ao manejar esta ação,  mas sim que fixar - oportunamente, se fosse o caso - os fatos materiais se pudessem traduzir o que foi entendido como abuso. À míngua desses fatos, resulta o ato ora recorrido em lamentável injustiça.

 

38. Na «specie» resta claro que não há dúvida de que os requisitos da ação foram satisfeitos junto à inicial. Isto é, demonstrados: o fato; o agente a quem o fato é atribuído, e o prejuízo. Logo, leviana a conclusão da infeliz Sentença ao colocar a autora na condição de parte maliciosa, visto não haver ela usado de um falso direito para prejudicar o réu, como pode ocorrer em casos previstos em Lei (Ex.: arts. 1.530 e segs. do CC de 1916), que não é o da hipótese corrente.

 

 39. Sob nenhum aspecto a decisão homologatória da separação judicial interpartes poderia firmar-se como causa impeditiva desta ação, mesmo porque, sobre o ilícito que a ensejou não houve naquela, referência e nem decisão expressa. Nesse particular, ao decidir, relegou-se a oblívio o alcance da norma fixada no art. 294 do CPC.

 

40. Por outro lado, oportuno realçar a angústia de que se foi tomado ao decidir, quando muito mais racional teria sido ler o conteúdo do art. 159 do CC de 1916, para se concluir que a Lei, ao fixar a obrigação de reparar o dano causado a outrem, não faz qualquer restrição à titularidade do direito, podendo ser sujeito ativo da ação competente qualquer pessoa. Demais a mais, as justificativas estabelecidas na Sentença, para excluir a obrigação de indenizar não se acham elencadas no art. 160 do mesmo Código Civil.

 

41. Porque um dia a autora foi ligada ao réu pelo casamento, estaria ela impedida de buscar o ressarcimento dos prejuízos sofridos em razão do seu desatino?

 

42. A Sentença diz que sim.

 

43. Sobre o tema, o Prof. Mário Moacyr Porto ensina: «Para melhor esclarecimento, imaginemos a seguinte hipótese: o marido (e excepcionalmente a mulher) sevicia ou pratica uma lesão corporal no parceiro, ofensa que ocasionou uma redução da sua capacidade de trabalho. O delito não justifica, apenas, a dissolução contenciosa da sociedade conjugal e a consequente fixação de uma «pensão» de alimentos (arts. 5°, eaput, e 19, da Lei do Divórcio). O cônjuge responsável responde, ainda, cumulativamente, pelo prejuízo à saúde do cônjuge agredido, nos termos do disposto nos arts. 159 e 1.539, do CC, sem prejuízo das sanções penais. (...) A ação fundamenta-se no art. 159, do CC [de 1916], e é independente da ação que visa à dissolução litigiosa da sociedade conjugal e o chamado divórcio-sanção. As indenizações são, assim, cumuláveis. Os dois pedidos podem ser formulados em uma mesma demanda (art. 292, do CPC). Nada impede, porém, que a indenização, com apoio no art. 159, do CC, seja pleiteada antes ou depois da instauração do processo para a obtenção da dissolução contenciosa da sociedade conjugal ou divórcio. Na demanda intentada pelo esposo prejudicado contra o esposo culpado com apoio no art. 159, do CC, não é necessário provar ou mesmo alegar que «necessita» do dinheiro da indenização, como na hipótese prevista no art. 19, da Lei 6.515. A indenização não tem absolutamente, caráter alimentar, e se baseia nos pressupostos do direito comum, quanto ao ressarcimento do dano decorrente de um delito civil». (A ação de responsabilidade civil entre mulher e marido, AJURIS, 28, 180 e seg.).

 

44. Por outro lado, «Não há confundir indenização com prestação alimentar», (Rec. Extr. 11.300, Diário da Justiça de 20/7/51, pág. 1.883, «apud» José de Aguiar de Dias, Da Responsabilidade Civil, Rio, Forense, 1960, vol. II, 4a ed., pág. 805).

 

45. Face a tanto, acredita-se que, salvo o devido respeito, carece o MM. Juiz de razão.

 

 

Conclusão

 

Posto isto, é a presente para requerer ao Eg. Tribunal se digne dar provimento ao presente apelo, para o fim de excluir, expressamente, da r. Sentença de Primeiro Grau, o reconhecimento de ofensa à coisa julgada em razão da separação judicial decidida, bem como o decreto de falta de interesse processual e de ocorrência de abuso de direito na propositura da ação; ou cassá-la, pura e simplesmente, deferindo a inicial, e determinando-se o prosseguimento da ação, com citação do réu para contestá-la, condenando-se este ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios.

 

Obs.: O Egr. Tribunal de Justiça de Minas Gerais deu provimento ao recurso, cassando, como se pedia, a decisão de Primeiro Grau.