Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos Estados Unidos


Pormarianajones- Postado em 29 abril 2019

Autores: 
Ana Cecília de Morais e Silva Dantas

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REVISTA DIGITAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO - FDRP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO– USP

Seção: Artigos Científicos

Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos Estados Unidos

Affirmative actions for women in Brazil and the United States

Ana Cecília de Morais e Silva Dantas

Resumo: O estudo compara o desenvolvimento de políticas de ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos Estados Unidos. Para delimitar seu escopo, trabalha com três exemplos de cada um dos países, buscando interrelacioná-los. Principia situando juridicamente as ações afirmativas como decorrência de uma noção de igualdade em transformação, abordando o contexto de seu surgimento. Em seguida, diferencia os sistemas de justiça dos Estados Unidos e do Brasil para então comparar as medidas adotadas por um e outro país.

Palavras-chave: Ações afirmativas; direito comparado; Brasil; Estados Unidos. Abstract: This study compares the development of affirmative action policies for women in Brazil and the United States. To delimit its scope, works with three examples in each country, seeking to interrelate them. It begins situating affirmative action as a result of a sense of equality in transformation, addressing the context of its emergence. Then differentiates the justice systems of the United States and Brazil to compare the measures taken by each country

Keywords: Affirmative actions, Comparative law, Brazil, United States.

Disponível no URL: www.revistas.usp.br/rdda DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2319-0558.v6i1p286-304

Artigo submetido em: outubro de 2018 /Aprovado em: janeiro de 2019.

REVISTA DIGITAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO, vol. 6, n. 1, p. 286-304, 2019. RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 AÇÕES AFIRMATIVAS PARA MULHERES NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS Ana Cecília de Morais e Silva DANTAS*

Sumário: 1 Introdução; 2 De que igualdade estamos falando; 3 Ações afirmativas; 4 Common Law e Civil Law: diferenciações úteis; 5 Ações afirmativas para mulheres nos Estados Unidos; 6 Ações afirmativas para mulheres no Brasil; 7 Considerações finais; 8 Referências bibliográficas

“The risk we run today is not of going too far too fast, as defendants fear, but of going too slowly and not far enough”. Catharine MacKinnon.

1. Introdução A ideia de igualdade, como hoje se conhece, nem sempre foi valorizada no correr da história. Não obstante tenha origem na escola do direito natural, no mundo moderno o referido princípio surge interligado à Revolução Francesa, que o relacionava à universalidade da lei. Os revolucionários distinguiam, contudo, as desigualdades naturais (de gênero, raça, força física) das sociais (referentes à concentração de renda, poder etc.), buscando corrigir as sociais pela mera edição de leis uniformes para todos, e esquecendo as naturais, tidas como insuperáveis. Essa primeira visão, liberal, hoje considerada restrita por já se ter como demonstrado que não foi capaz de promover uma isonomia efetiva, nem por isso é destituída de importância. Pelo contrário, a igualdade perante a lei foi uma das principais garantias individuais de segurança jurídica e de combate a privilégios de nascimento e condição social, mas confundia-se, em certa medida, com o princípio da prevalência da lei (CANOTILHO, 200, p. 381). Tal visão estática, ao proibir qualquer forma de diferenciação, criou tantas injustiças quanto se visava combater com a aplicação indistinta das normas. A percepção de que a proibição das discriminações não é suficiente para efetivar a igualdade jurídica, pois só combate os atos intencionais e manifestos de preconceito, levou ao atual entendimento que se tem da igualdade, também chamado de social, com suas duas concepções principais que se somam: uma negativa, que se con- * Professora do curso de graduação em Direito do Centro Universitário Cesmac. Doutoranda em direito pela PUC do Rio Grande do Sul. Graduada e mestra em Direito, aprovada com distinção, pela Universidade Federal de Alagoas. DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 288 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 funde com a proibição a discriminações; e outra positiva, coerente com a proposição de medidas promocionais de realização efetiva da igualdade. Essa segunda compreensão da igualdade é a que autoriza as chamadas ações afirmativas, objeto do presente trabalho, que objetiva traçar uma comparação entre as políticas de ações afirmativas voltadas para mulheres desenvolvidas tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, observando seus pontos em comum e de contraste. Para tanto, primeiro procuraremos apontar os fundamentos dessas políticas, trabalhando suas bases históricas, assim como o conceito jurídico de igualdade. Em seguida, através de uma breve comparação entre o common Law e civil law, traçaremos as linhas gerais que justificam as diferenças nessas políticas nos Estados Unidos e Brasil. Por fim, buscaremos apresentar como esses países lidam com determinadas questões ligadas às mulheres trabalhando três exemplos de ações afirmativas desenvolvidas em cada um.

2. De que igualdade estamos falando

O princípio da igualdade, maior dos princípios garantidores dos direitos individuais e fundamento da democracia, frequentemente é confundido mesmo com a ideia de justiça. Para Platão, por exemplo, igualdade conferida a coisas desiguais só pode resultar em desigualdade. Aristóteles, defensor das desigualdades naturais, que justificariam a escravidão, asseverava que só através da igualdade a justiça seria alcançada (BELLINTANI, 2006, p. 10 e s.s). Para, Bobbio, por outro lado, da simples constatação da igualdade entre duas coisas não se poderia concluir por sua justiça ou injustiça, pois a igualdade é fato, enquanto a justiça é valor. Assim, para que a igualdade seja politicamente relevante, precisa se estribar nas relações sociais (1997, p. 7). De qualquer modo, seja lá que corrente se adote, nominalista (para a qual a desigualdade é da natureza humana, sendo qualquer declaração de igualdade uma formalidade sem significação), idealista (que propagaria igualitarismo absoluto ligado ao estado de natureza) ou realista (que considera as diferenças entre as pessoas, mas reconhece um igual valor às suas vidas) (SILVA, 2004, p. 211), o conceito de igualdade indica relação. Deve-se sempre estabelecer um paradigma de comparação, capaz de indicar entre “quais” e “no que” se deseja contrastar (ATCHABAHIAN, 2006, p. 22). Ataliba ressalta a íntima conexão entre os conceitos de legalidade e isonomia1 , em que esta seria assegurada por meio daquela (2004, p. 159). A esse respeito, pode-se falar em ao menos três fases pelas quais passou a relação da legalidade com a igualdade. Se de início igualdade era sinônimo de prevalência 1 Do grego “isos” (igual) e “nomos” (forma), indicando a igualdade de todos perante a lei. DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 289 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 da lei, que deveria tratar todos como iguais em termos absolutos, num segundo momento passou a ser vista como proibição a discriminações. Por fim, mais recentemente observa-se que embora nenhum dos outros sentidos tenha se perdido, a eles pode ser acrescentada a ideia de igualdade por meio da lei. Fala-se, portanto, em proibição ao arbítrio, proibição de discriminações e obrigatoriedade de diferenciação (BELLINTANI, 2006, p. 34). A proibição do arbítrio veda que situações iguais sejam tratadas desigualmente e que situações diferentes sejam tratadas de maneira igual. Essa é a dimensão da igualdade através da qual o Judiciário controla as funções do Legislativo, sempre em respeito à separação dos poderes. A vedação às discriminações impossibilita que pessoas sejam negativamente discriminadas com base em caracteres subjetivos. É a face da igualdade de combate ao preconceito, que não veda todas as formas de diferenciação, mas apenas aquelas indesejadas. Por fim, a obrigatoriedade de diferenciação é a dimensão que objetiva viabilizar uma igualdade jurídico-material através da atenuação das desigualdades sociais, econômicas e culturais (BELLINTANI, 2006, p. 35 e ss.). É essa evolução dos sentidos da igualdade que possibilita o desenvolvimento de políticas (seja através de lei, seja de decisões judiciais) capazes de criar diferenciações juridicamente adequadas. Ressalte-se que os conceitos de igualdade e diferença não são incompatíveis, mas complementares. Se a igualdade é permeada pela tolerância e respeito às individualidades, só se podem combater as desigualdades ao se reconhecerem as particularidades (ou diferenças) de cada um. Desigualdade e diferença não são palavras sinônimas. Diferença é conceito que se liga à tolerância às particularidades de cada indivíduo, que devem ser consideradas e valorizadas em uma sociedade pluralista. Desigualdade, por outro lado, relaciona-se à injustiça, na medida em que representa a ausência de igualdade de oportunidades a todos na sociedade. É marca do Estado democrático o respeito às diferenças e combate às desigualdades. Não há razão para estranhamento na adoção de medidas diferenciadoras, especialmente quando percebemos que nosso ordenamento jurídico está repleto de diferenciações, e seria ilógico se não o fosse. Assim é que as penas devem diferenciarse proporcionalmente às faltas cometidas e os tributos devem respeitar a capacidade contributiva. Temos, assim, que as diferenças devem ser reconhecidas e respeitadas, sem que possam servir de justificativa às discriminações no sentido negativo em que normalmente tal palavra é empregada. Afinal, as pessoas não nascem iguais, mas diferentes, sendo a igualdade o resultado da ação humana organizada em comunidade política (TONET, 2004, p. 150). DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 290 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Pontes de Miranda ensina que muitas das desigualdades presentes na sociedade não são naturais, mas artificiais, muitas vezes mantidas por lei, como é o caso das desigualdades econômicas, cabendo, portanto, ao direito, que as criou, o dever de repará-las (1970, t. IV/689). Nancy Fraser exemplifica casos em que o próprio Estado impede a plena interação social de determinados grupos, como nas leis matrimoniais que proíbem a união homossexual, nas práticas de policiamento que associam determinadas raças à criminalidade, e nas políticas públicas que estigmatizam mães solteiras. Institucionalizam-se, assim, categorias de agentes sociais como inferiores (2007, p. 118). O acesso das mulheres dos espaços de decisão contou por muito tempo com proibição legal. Exemplificativamente, no Brasil, até 1932 as mulheres nem sequer podiam votar. Nos Estados Unidos somente em 1920, com a ratificação da XIX Emenda à Constituição, foi garantido a todas as mulheres o direito ao sufrágio. Essa exclusão deixou cicatrizes. A mera integração das mulheres como sujeito de direitos e obrigações não transformou as estruturas de poder. Em verdade ocorreu uma justaposição acrítica a um sistema desenvolvido por homens e para homens, que se pretende neutro ao gênero (BALAGUER, 2005, p. 44). Pode-se dizer, portanto, que toda a base teórica da democracia moderna se desenvolveu independentemente das experiências e do ponto de vista das mulheres, que, incorporadas tardiamente, deveriam se adequar a instituições cuja construção jamais considerou suas especificidades. A abstenção do Estado perante essas desigualdades já representa fator de desigualação com consequências alarmantes.

3. Ações afirmativas

Raça, gênero, credo, etnia, são fatores que, na história humana, mostraram-se úteis para categorias dominantes criarem diferenciações que privilegiassem seus próprios interesses. Se no evoluir histórico reconheceu-se o absurdo de discriminar pessoas com base nessas características, ainda causa controvérsias a possibilidade de privilegiar esses fatores anteriormente tidos como negativos a fim de colmatar injustiça (DANTAS, 2011, p. 111). Em verdade, as características que ora se apontam como relevantes para justificar medidas diferenciadoras não são as mesmas utilizadas para discriminações passadas. No caso do gênero feminino, se historicamente mulheres foram discriminadas pela pertinência a um gênero (razão irrelevante), o que hoje justificaria um tratamento preferencial seria não o fato de serem mulheres, mas sua histórica exclusão (razão relevante) (RAPOSO, 2004, p. 305 e 306). DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 291 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Esse tratamento preferencial recebe o nome de ação afirmativa, e envolve ações de caráter permanente ou transitório, com o objetivo de eliminar discriminações historicamente sofridas por segmentos sociais e que apresentam reflexos atuais. De acordo com o Black’s Law Dictionary, as ações afirmativas (affirmative actions), seriam “um conjunto de ações formuladas para eliminar discriminação existente e contínua, para remediar efeitos persistentes de discriminações passadas, e para criar sistemas e procedimentos a fim de prevenir discriminações futuras”2 (GARNER, 2010, p. 51). Joaquim Barbosa Gomes, por sua vez, define as ações afirmativas como um conjunto de políticas públicas ou privadas, voluntárias, facultativas ou compulsórias voltadas ao combate de discriminações raciais, de gênero e de origem, com o objetivo de corrigir seus efeitos persistentes. Diferencia-as de políticas públicas antidiscriminatórias, de conteúdo proibitivo, que oferecem às vítimas mecanismos reparatórios de intervenção posterior sem combater mecanismos informais, difusos ou estruturais pelos quais a discriminação pode se verificar. Sintetiza afirmando que as ações afirmativas são mecanismos concebidos com vistas à concretização de uma igualdade de oportunidades, direito de todos os seres humanos (GOMES, 2001, p. 220). Para serem adotadas, as ações afirmativas precisariam cumprir alguns critérios. A Suprema Corte dos Estados Unidos enumerou que os meios de que se valem para atingir uma igualdade de resultados não podem se constituir em obstáculos intransponíveis para os não beneficiários das políticas de promoção; os planos de ações afirmativas devem ter caráter temporário e ser voltados a sanar desigualdades manifestas e incontroversas; os planos devem ser flexíveis e conjugar vários fatores para elegibilidade do beneficiário (como qualificação educacional, por exemplo) ao invés de cotas cegas. (GOMES, 2001, p. 222 e 224). Bandeira de Mello, por sua vez, aponta como requisitos para adoção de ações afirmativas, que o elemento tomado como fator de desigualação não pode ser tão específico a ponto de singularizar de modo absoluto um sujeito e deve residir necessariamente na pessoa, coisa ou situação a ser discriminada; deve haver uma correlação lógica abstrata entre a discriminação feita e o tratamento jurídico diferenciado; essa correlação lógica deve estar em harmonia com o sistema constitucional (1997, p. 21 e 23). O Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186, DF, expôs que 2 Tradução livre. No original: “A set of actions designed to eliminate existing and continuing discrimination, to remedy lingering effects of past discrimination, and to create systems and procedures to prevent future discrimination”. DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 292 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Não contraria – ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares. VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos. Tradicionalmente, aponta-se que essas medidas se originaram nos Estados Unidos3 , o que seria, em certa medida, paradoxal, visto que a noção clássica de igualdade (a igualdade formal) é um dos conceitos fundamentais de formação da nação americana (RAPOSO, 2004, p. 58). Ressalte-se, todavia, que muito embora costume-se relacionar a igualdade formal a um tratamento uniforme entre todos os indivíduos, que apenas aprofundaria desigualdades existentes na sociedade, numa concepção mais atual tal passa a ser interpretado como igualdade em categorias, que podem ser criadas pelo legislador apartadas das demais, contanto que o tratamento para seus membros seja o mesmo. O momento de construção da igualdade formal não se dá na elaboração das leis, mas em sua aplicação. Cuida, assim, de uma igualdade “na chegada”, enquanto que os legisladores cuidam da igualdade “na partida” (BELLINTANI, 2006, p. 23 e 24). Já a igualdade material, que se confunde com igualdade na lei ou através da lei, dirige-se principalmente ao legislador, autorizando-o a diferenciar a fim de uma construção da igualdade fática. Bem ressalta Maria Ángeles Martín Vida que A atividade legislativa consiste precisamente em classificar, em criar normas que identificam e delimitam situações de fato concretas que exigem um tratamento concreto. (...) é próprio ao Direito esta- 3 O economista americano Thomas Sowell, ferrenho crítico das ações afirmativas, aponta que a Índia foi o local de surgimento dessas políticas. DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 293 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 belecer diferenças, ainda que o Direito atue como instrumento homogeneizador4 (2002, p. 129). A justiça material, para José Afonso da Silva, seria “a especificação da justiça formal, indicando a característica constitutiva da categoria essencial” (2004, p. 212). Essa conciliação dos conceitos de igualdade formal e material vem sendo proposta pela nova hermenêutica constitucional, que não encara seus significados como contrapostos, mas complementares. Assim, temos que a promoção dessa igualdade material, ou substancial, não implica na derrocada da igualdade formal, mesmo porque esta é essencial para a aplicação da primeira. O fato é que se creditam as ações afirmativas à tentativa de solucionar o chamado “dilema americano”, como se passou a conhecer a marginalização social e econômica vivida pelo negro nos Estados Unidos oriunda do passado escravocrata e da política do “separatebutequal”, que institucionalizava a segregação racial (BELLINTANI, 2006, p. 52). A marginalização racial nos Estados Unidos, assim como em outras partes do mundo, historicamente contou com amparo institucional. Entre os anos de 1865 e 1866, foram instituídos os blackcodes, leis aprovadas pelos estados do sul depois da Guerra Civil para restringir liberdades e direitos civis dos afroamericanos, submetendo-os a uma economia de trabalho baseada em dívidas e baixos salários. De 1876 a 1965 vigoraram as Jim Crow Laws, leis locais de estados sulistas que institucionalizavam a segregação racial, exigindo que os locais públicos separassem lugares para negros e brancos. Com a decisão no caso Brown v. Board of Education of Topeka em 1954, declarando inconstitucional a segregação nas escolas públicas, as demais leis de Jim Crow só foram revogadas em 1964 pelo Civil Rights Act. Aponta-se que o primeiro esboço de ação afirmativa na história dos Estados Unidos seria o Freedmen’s Bureau Bill, em 1866, voltado a auxiliar escravos libertos através de distribuição de terras, habitação, alimentos, educação, empregos, dentre outras medidas voltadas à sua incorporação à sociedade americana. Ressalte-se que não obstante tais medidas fossem dirigidas a um grupo desprivilegiado como forma de compensação por anteriores políticas estatais, em muito diferem do que hoje se entende por ação afirmativa, especialmente ante o fato de que o Freedmen’s Bureau Bill beneficiava as pessoas diretamente atingidas pelas anteriores políticas discriminatórias, enquanto que a marca das modernas ações afirmativas é a de 4 Tradução livre. No original: “La actividad legislativa consiste precisamente en clasificar, en crear normas que identifican y delimitan situaciones de hecho concretas que exigen un concreto tratamiento. (...) lo proprio del Derecho es estabelecer diferencias, aunque a la vez el Derecho actúa como instrumento homogeneizador”. DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 294 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 compensarem categorias que sofrem reflexos de exclusões passadas, ainda que não tenham sido direta e pessoalmente vitimados por essas medidas. Em 1935 o National Labor Relations Act proibiu aos empregadores todas as formas de repressão aos membros de sindicatos, criando o dever de realocá-los à posição laboral que deveriam ocupar caso não tivessem sofrido a discriminação. Em 1961, Kennedy utilizou pela primeira vez a expressão ações afirmativas no sentido que conhecemos hoje. Na Executive Order 10925, visando estabelecer uma igualdade de oportunidades, ordenou que projetos financiados por fundos federais promovessem ações afirmativas para garantir que trabalhadores não fossem discriminados por questões raciais. No Brasil, a questão tem seu início em 1968, através do Ministério do Trabalho, que se posicionou pela criação de lei que reservasse parcela mínima das vagas de empregos a trabalhadores afrodescendentes. A lei não se concretizou, mas fora dado o primeiro passo para o debate dessas políticas no país. O primeiro projeto de lei a formular medidas compensatórias com o objetivo de combater discriminações raciais no Brasil data de 1980, mas não foi aprovado pelo Congresso Nacional (MOEHLECKE, 2002, p. 8). A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer percentual de cargos públicos para portadores de deficiências inaugura oficialmente as ações afirmativas no Brasil, levando ao desenvolvimento de outras medidas compensatórias, como as cotas para mulheres nas eleições proporcionais, como se verá adiante.

4. Common Law e Civil Law: diferenciações úteis

Diversos sistemas jurídicos podem ser observados ao longo da história. Na tradição ocidental, dois sistemas se destacam pela abrangência territorial e persistência temporal, embora abarquem situações extremamente diversas em suas classificações. Estamos falando dos sistemas do commom law e do civil law. O sistema do chamado civil law, por exemplo, engloba tanto o sistema jurídico brasileiro, quanto o alemão, diversos em tantos pontos que mereceriam uma análise profunda e especifica de uma tese. Esses dois sistemas teriam se desenvolvido com diversas influências locais de cada região, mas têm origem marcada no direito romano. Há uma percepção comum de que o sistema do commom law está mais ligado à ideia de precedente e de costume, enquanto que o sistema do civil law teria fundamento na Lei. Bustamante entende que, não obstante o direito romano do período clássico apresente razoável semelhança estrutural com o common law inglês, os sistemas jurídi- DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 295 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 cos que se desenvolveram sob sua influência direta dele se distanciaram. Descrevese, portanto, o common law inglês como um sistema jurídico fundado na tradição, notadamente fragmentado e não codificado, ancorado na ideia de “costume reconhecido”, ou precedente, não havendo uma distinção clara entre a criação e a aplicação do Direito, pois seu conjunto de regras é inferido de decisões particulares. Os sistemas de civil law de hoje, por sua vez, possuem um corpo de regras ordenadas sistematicamente em códigos dotados de textos fixos e autoridade, que embora possam ser interpretados de maneiras distintas possuem formulação linguística perene (BUSTAMANTE, 2012, p. 17). O jurista do civil law naturalmente raciocina de princípios a instanciações, [instances] ao passo que o do common law de instanciações a princípios. O jurista do civil law põe fé em silogismos, o do common law em precedentes; o primeiro silenciosamente pergunta a si mesmo cada vez que surge um novo problema: ‘O que devemos fazer desta vez?”; enquanto o segundo indaga em voz alta, na mesma situação: “O que nós fizemos da última vez?’(COOPER, 1950, apud BUSTAMANTE, 2012, p. 11). Apesar das distinções apontadas por Bustamante, é possível afirmar que hoje as diferenças entre os dois grandes sistemas são progressivamente menores. É possível observar que em países de tradição anglo-saxã, como a Inglaterra, a presença e uso de leis cada vez é maior, em desprestígio do chamado costume. Ao mesmo tempo, no nosso país, apontado como de tradição do civil law, é possível observar que o domínio das leis vem sendo, senão superado, abraçado pelo uso e regulamentação dos precedentes. Prova disso é o recente Código de Processo Civil, que busca privilegiar em diversas passagens o uso de precedentes nas decisões judiciais. Enquanto que o antigo código de 1973 praticamente não falava em precedente, expressão presente em apenas um artigo sem grande importância, o novo coloca como elemento essencial da sentença, no art. 489: V - Se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - Deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Mas é possível afirmar, o que torna uma decisão precedente é o fato de tornar-se paradigma em decisão futura. Nenhuma decisão é precedente per si, nasce o precedente quando utilizada a decisão como paradigma em outra decisão futura. E mais, o precedente apenas mantém sua integridade em razão de suas circunstâncias fáticas. Em outro artigo do novo código, 926, parágrafo 2º, determina-se que DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 296 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 ao editar súmulas os tribunais devem se ater às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram a sua criação. Percebe-se a influência das teorias sobre precedentes no novo código regente do processo civil brasileiro, positivando a opção por uma maior força dos precedentes, em aproximação ao sistema jurídico do common law. Mas levanta-se a questão: o que distingue o precedente nos dois grandes sistemas ocidentais? A própria noção de precedente, inexistente em um dos sistemas – o que de pronto podemos classificar como falso – ou a força que tais precedentes produzem? Para Robert Alexy, a noção de precedente pressupõe algum tipo de vinculação, mesmo que o precedente não seja classificado como obrigatório. Dessa forma, um precedente poderia variar sua força em razão do contexto institucional, da tradição jurídica e sistema constitucional de um país, entre outros fatores (1997, p. 23). Os Estados Unidos da América, segundo Robert Summers (1997, p. 355), possuem 51 jurisdições, uma federal e 50 estaduais, cada uma distinta e separada das outras 49. Isso levaria ao paradigma de que não existiria um sistema nacional de precedentes naquele país. Escrevendo sobre a realidade dos precedentes no Estado de Nova Iorque, Summers afirma que o conceito de precedente envolve a noção de decisão vinculante de uma Corte superior ou do mesmo órgão decisório (1997, p. 357). Summers ainda elenca três críticas ao sistema de precedentes estadunidense (1997, p. 359). A primeira crítica seria de que há muitos precedentes postos e isso dificulta a análise do direito. Haveria nos Estados Unidos em 1997 mais de quatro milhões de precedentes relatados. Nesse cenário, os juízes se sentiriam mais livres para escolher os precedentes. A segunda seria a de que juízes nas cortes mais altas não seriam corajosos ou criativos o suficiente para desafiar precedentes. E a terceira crítica seria a de que juízes no commom law manipulariam precedentes para fundamentar decisões. Summers rebate alguns pontos, mas aceita que parte das críticas é verdadeira, expondo as fragilidades do sistema de precedentes norteamericano. É possível, por outro lado, constatar que o sistema de precedentes americano, influenciado pelo sistema do commom law, é mais profundo e arraigado na cultura jurídica daquele país em relação ao nosso novo e incipiente sistema de precedentes. A referida diferenciação importa para este trabalho na medida em que, conforme se verá, os diferentes sistemas de justiça adotados pelo Brasil e pelos Estados Unidos levaram a diferenças no desenvolvimento de políticas de ações afirmativas nesses países. DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 297 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019

5. Ações afirmativas para mulheres nos Estados Unidos

Ainda que os Estados Unidos sejam tidos pelo senso comum como a maior democracia do mundo, causa estranhamento a constatação de que apenas em 1868, com a 14ª Emenda, foi inserida a cláusula de igual proteção à Constituição. Diz literalmente a 14ª Emenda: 1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas a sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis. 2. O número de representantes dos diferentes Estados será proporcional às suas respectivas populações, contando-se o número total dos habitantes de cada Estado, com exceção dos índios não taxados; quando, porém, o direito de voto em qualquer eleição para a escolha dos eleitores, do Presidente e do Vice-Presidente dos Estados Unidos, ou dos membros de sua legislatura, for recusado a qualquer habitante desse Estado, do sexo masculino, maior de 21 anos e cidadão dos Estados Unidos, ou quando desse seu direito for de qualquer modo cerceado, salvo em caso de participação em rebelião ou outro crime, será a respectiva representação estadual reduzida na mesma proporção que a representada por esses indivíduos em relação à totalidade dos cidadãos de sexo masculino, maiores de 21 anos, no Estado. Para Dworkin, a cláusula de igual proteção confere o direito de ser tratado como igual, dela não se podendo inferir a proibição a classificações raciais, o que não vedaria, portanto, o desenvolvimento de ações afirmativas voltadas à inclusão racial (DWORKIN, 1989, p. 334). Curiosamente, as mulheres continuaram excluídas dessa igualdade. A 15ª Emenda, datada de 1870, também representa marco na construção da igualdade nos Estados Unidos ao dispor que “1. O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos não poderá ser negado ou cerceado pelos Estados Unidos, nem por qualquer Estado, por motivo de raça, cor ou de prévio estado de servidão”. Mas é a 19ª Emenda, de 1920, que mais interessa ao presente trabalho na medida em que foi a primeira manifestação da Constituição dos Estados Unidos a considerar algum tipo de igualdade entre os gêneros ao vedar que o direito de voto dos cidadãos fosse negado ou cerceado em razão do sexo. DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 298 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 O Civil Rights Act de 1964 foi editado na expectativa de cumprimento da 14ª Emenda. Proibiu discriminações de emprego por motivo de raça, cor, religião ou origem nacional, nada falando sobre o sexo. Em 1965, com a Executive Order 11246, o presidente Lyndon Johnson ordenou às agências executivas a requerer que os empreiteiros federais promovessem ações afirmativas para garantir que trabalhadores não fossem discriminados por questões de raça, cor, religião e origem nacional, exigindo que fossem tomadas medidas voltadas a garantir a igualdade nas contratações e a documentação desses esforços. Em 4 de junho do mesmo ano, em discurso proferido na Howard University, Johnson diria que Você não apaga as cicatrizes de séculos, dizendo: "Agora, você está livre para ir onde quiser, fazer o que você deseja, e escolher os líderes que lhe satisfazem". Você não toma um homem que durante anos foi preso por correntes, liberta-o, traz ele para a linha de partida de uma corrida, dizendo: "você é livre para competir com todos os outros", e ainda acredita de boa-fé ter sido completamente justo (...) Esta é a próxima e mais profunda etapa da batalha pelos direitos civis. Procuramos não apenas por liberdade, mas oportunidade – não apenas equidade legal, mas habilidade humana – não apenas a igualdade como um direito e uma teoria, mas a igualdade como um fato e como resultado.5 A questão sexual só seria considerada com a Executive Order 11375, de 1967. O congressista Howard Smith da Virgínia foi o autor da emenda EO 11246 que acrescentou o sexo à enumeração. Afirma-se que tal foi feito com o fim de dificultar a provação do estatuto (NAPIKOSKI, 2017). Kymlicka afirma que as políticas de combate à discriminação sexual têm a grande falha de terem sido moldadas com base nas leis de combate à discriminação racial, que sempre lutaram por uma sociedade “cega para a cor”, ou seja, procurando remover o gênero ou a raça como requisitos a serem considerados na distribuição de benefícios. Adverte, contudo, que se podemos imaginar uma sociedade que desconsidere questões raciais na tomada de decisões políticas e econômicas, não podemos com a mesma facilidade achar possível a “cegueira para o sexo”, especialmente porque o tratamento sexual diferenciado em questões relativas à 5 Tradução livre. No original: "You do not wipe away the scars of centuries by saying: 'now, you are free to go where you want, do as you desire, and choose the leaders you please.' You do not take a man who for years has been hobbled by chains, liberate him, bring him to the starting line of a race, saying, 'you are free to compete with all the others,' and still justly believe you have been completely fair (...) This is the next and more profound stage of the battle for civil rights. We seek not just freedom but opportunity—not just legal equity but human ability—not just equality as a right and a theory, but equality as a fact and as a result”. DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 299 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 maternidade, por exemplo, longe de ser injusto, chega a ser necessário porque baseado em diferenças sexuais genuínas (2006, p. 340 e ss.). Para ilustrar o desenvolvimento das ações afirmativas para mulheres nos Estados Unidos, trabalharemos com três exemplos. Em 1974, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o caso Cleveland Board of Education v. La Fleur, no qual uma professora grávida da rede pública questionou a constitucionalidade de licenças maternidade obrigatórias de Cleveland, Ohio. A regra de Cleveland obrigava licença maternidade sem vencimentos a partir do quinto mês antes da data prevista para o parto, só voltando a trabalhar após o semestre letivo em que sua criança completasse três meses de idade. No caso não havia garantia de reemprego, mas mera prioridade em caso de novas contratações. Atestado médico de aptidão física era exigido antes do retorno ao trabalho. A regra foi declarada inconstitucional por arbitrária e irracional (US SUPREME COURT, 414 U.S 632). O mérito da decisão pode ser aferido mesmo anos depois, com o Family and Medical Leave Act de 1993, que inspirado no caso Cleveland Board of Education v. La Fleur passou a exigir dos empregadores por ela cobertos que fornecessem licenças não remuneradas, mas com proteção do emprego, por razões médicas ou familiares, como gestações. Em 27 de junho de 1977, a Suprema Corte julgou o caso Dothard v. Rawlinson, no qual Rawlinson teve seu pedido de emprego como guarda de prisão no Alabama rejeitado em razão do estabelecimento de altura e peso mínimos para o desempenho da função. Da análise de estatísticas nacionais de altura e peso de homens e mulheres, percebeu-se que as normas do Alabama excluiriam mais de 4% da população feminina, e menos de 1% da masculina. Com base em tais dados, o tribunal entendeu tratar-se de discriminação sexual ilegal para um trabalho que não precisaria ser desempenhado por indivíduos do sexo masculino (US SUPREME COURT, 433 U.S. 321). Já em 1987, destaca-se o caso Johnson v. Transportation Agency, Santa Clara County. A controvérsia deveu-se ao plano de ação afirmativa para incentivar a contratação de mulheres e outras minorias adotado voluntariamente pela Santa Clara County Transportation Agency. A medida considerava a significativa sub-representação feminina em seus quadros, buscando uma melhoria anual estatisticamente mensurável da participação de mulheres e outras minorias. O plano não reservava número fixo de vagas para nenhuma categoria. Quando a Agência anunciou vaga para a posição de despachante, todas as 238 posições eram ocupadas por homens. Os candidatos classificados para o cargo foram entrevistados pela Agência que optou pela contratação de uma mulher, Diane Joyce, preterindo um candidato do sexo masculino. Este considerou que a Agência violou o Título VII do Civil Rights Act de 1964. Ao final, a Suprema Corte decidiu que a Agência levou devidamente em conta DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 300 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 o sexo da candidata como fator determinante na escolha de quem deveria ser contratado, em abordagem moderada e flexível adequadamente voltada à melhora na representação de minorias (US SUPREME COURT, 480, U.S 616). A despeito dos Estados Unidos serem considerados o berço das ações afirmativas, percebe-se que as decisões em torno de tais políticas mais se assemelham a uma tolerância a elas do que propriamente a uma promoção. Em 1996, por exemplo, houve a aprovação da Proposition 209 (também conhecida como Iniciativa de Direitos Civis da Califórnia), que modificou a Constituição do Estado da Califórnia para proibir que instituições públicas estaduais considerassem raça, sexo ou etnia para contratações e educação públicas. A iniciativa foi seguida por outros estados, apontando, talvez, para um recuo no uso das ações afirmativas nos Estados Unidos. Por outro lado, em 23 de junho de 2016, a Suprema Corte Americana decidiu no caso Fisher v. University of Texas at Austin que o programa de admissões racialmente consciente da Universidade é legal sob a cláusula de igual proteção (US SUPREME COURT, 579 U.S, 2016).

6. Ações afirmativas para mulheres no Brasil

Ao contrário da Constituição dos Estados Unidos, o texto original da Constituição brasileira de 1988 é expresso, e até repetitivo, ao enunciar a igualdade. É evidente que a data recente de nascimento de nossa Constituição é o fator determinante para isso, de modo que o documento está de acordo com o momento jurídico de seu surgimento. É no caput do artigo 5º que vem enunciada a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e já no inciso I é expresso que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. O artigo 3º prevê ainda a construção de uma sociedade livre, justa e solidária como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, assim como a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Temos, portanto, uma Constituição que expressamente se preocupa com as disparidades de gênero e prevê mais do que a possibilidade, o dever, de eliminação de desigualdades perniciosas. É que o princípio da isonomia inscrito na Constituição Federal de 1988 propõe um tratamento de igualdade real, não apenas nominal. Quando a Constituição proclama a igualdade de todos perante a lei, não objetiva com isso uniformizar cegamente a sociedade, mas afirmar um igual valor na essência e na vida humana, a despeito de diferenças sociais ou culturais, bem como garantir que uma lei seja igualmente aplicada a seus destinatários, ainda que essa lei DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 301 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 só tenha como destinatários uma parcela reduzida da sociedade. Em outras palavras, quer-se dizer que pessoas de uma mesma categoria devem ser tratadas da mesma forma. Apenas para traçar paralelo com as decisões da Suprema Corte Americana anteriormente apontadas, podemos distinguir no ordenamento jurídico brasileiro disposições que também diferenciam as mulheres seja no tocante à licença maternidade, a distinções admitidas a depender do trabalho desenvolvido ou mesmo prevendo expressamente mecanismos para o aumento de representatividade feminina. Assim, ao contrário dos Estados Unidos, que tem a decisão do caso Cleveland Board of Education v. La Fleur como exemplo de ação afirmativa voltada às mulheres, no Brasil o direito à licença maternidade remunerada é garantido constitucionalmente (Art. 7º, CF) e tem a duração mínima de cento e vinte dias, havendo a possibilidade do setor público (por lei) e mesmo de empresas privadas ampliarem o direito. Exemplo disso pode ser encontrado na Lei 11.770 de 2008, que ao criar o Programa Empresa Cidadã estabelece prorrogação de dois meses aos cento e vinte dias de licença maternidade prevista na Constituição. Quanto ao estabelecimento de restrições de peso e altura para determinados cargos, também na Constituição está consagrada essa possibilidade no artigo 39, parágrafo terceiro, que admite que lei estabeleça requisitos diferenciados para o preenchimento de cargos públicos quando a natureza da função o exigir. Assim o é que caso haja coerência, lei pode estatuir que determinado cargo só pode ser ocupado por um ou outro sexo. O paralelo que se pode traçar entre a realidade brasileira e o caso Dothard v. Rawlinson é que embora aqui a própria Constituição admita requisitos diferenciados quando relevantes para o cargo, isso não pode ocorrer de forma indireta, como no caso julgado pela Suprema Corte Americana. Assim que, como para toda distinção, é necessário que haja uma “justificativa excessivamente persuasiva” para admiti-la, como decidido pela Suprema Corte Americana no caso United States v. Virginia (US SUPREME COURT, 516 U.S 515). De qualquer modo, difícil que se configure em ação afirmativa a previsão, por exemplo, de concurso público voltado apenas para mulheres para o preenchimento de vagas de agente penitenciário em estabelecimentos prisionais femininos. Isso porque tal não seria voltado à reparação de desigualdades, mas simplesmente a preservação dos direitos das presas. Por fim, temos em nosso ordenamento jurídico exemplo definitivo de ação afirmativa para mulheres no âmbito eleitoral (ainda que aqui não se discuta a efetividade da medida). A Lei 9.504 de 1997 prevê no parágrafo terceiro do artigo 10: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coliga- DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 302 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 ção preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”. Mesmo que a Lei não fale em reserva de vagas para mulheres, diante da realidade de baixa ocupação de cargos eleitorais proporcionais por mulheres, são essas as destinatárias dessa política. Ainda que a previsão legal de cotas eleitorais não possa ser diretamente confrontada com o caso Johnson v. Transportation Agency, Santa Clara County, (que não tratava de cotas, e, ademais, discutia relação de emprego), é provavelmente o exemplo mais paradigmático que se tem de ação afirmativa voltada às mulheres (mesmo que não expressamente) no Brasil.

7. Considerações finais

A evolução jurídica do conceito de igualdade possibilitou tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil a superação da noção estática de igualdade formal em prol de sua conciliação com a ideia de igualdade material. O desenvolvimento de ações afirmativas como políticas de reversão de exclusões institucionalizadas, embora ainda desperte controvérsias, conta com aceitação teórica nos dois países. Há, todavia, uma diferença na abrangência dessas ações. E se os Estados Unidos são tidos como o berço das affirmative actions, percebe-se que seu desenvolvimento naquele país é mais tímido do que no nosso, a ponto de se reconhecerem como exemplos paradigmáticos de ações afirmativas casos que revelam tão somente proibição de discriminação injustificada, como no caso Dothard v. Rawlinson. Nota-se ainda o forte papel do civil law na tradição jurídica brasileira, que parece depender de lei para o desenvolvimento de ações afirmativas, enquanto os Estados Unidos, marcados pelo common law, constroem nos tribunais suas ações inclusivas. Por fim, não se sabe ao certo em que sentido caminharão as ações afirmativas nos Estados Unidos. Se por um lado sua aplicação parece mais tímida do que o senso comum imagina, podendo-se citar como exemplos de um possível recrudescimento as alterações nas constituições dos Estados a fim de proibir tratamentos diferenciados com base em sexo, raça e etnia em órgãos públicos; por outro, a Suprema Corte persiste reconhecendo a constitucionalidade dessas medidas, como no recente caso Fisher v. University of Texas at Austin. No Brasil, por sua vez, a Lei 12.711 de 2012, que cuida do ingresso nas instituições federais de ensino, em 2016 é pela primeira vez aplicada integralmente, ou seja, reservando 50% das vagas dessas instituições com base em critérios raciais, étnicos e socioeconômicos. Na mesma linha, a Lei 12.990 de 2014 reserva 20% das vagas em concursos públicos federais para negros. Em 12 de maio de 2016 foi ain- DANTAS, Ana Cecília de M. e Silva. Ações afirmativas para mulheres no Brasil e nos (...). 303 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 da publicada a Portaria nº 13 de 11 de maio de 2016 do Ministério da Educação tratando sobre a indução de ações afirmativas no âmbito da pós-graduação. Todos esses exemplos apontam para o aprofundamento dessas medidas em nosso país, onde as ações afirmativas vivem fase de expansão.

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