Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no âmbito familiar


Pormarianajones- Postado em 23 maio 2019

Autores: 
Sheila Marta Carregosa Rocha
Mariana Nascimento do Rosário

DIREITO & JUSTIÇA A revista da Escola de Direito da PUCRS e-ISSN: 1984-7718 DIREITO DE FAMÍLIA | ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 273

Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no âmbito familiar

Affective abandonment: Legal perspectives within the family environment

Sheila Marta Carregosa Rocha

Mariana Nascimento do Rosário

DOI: 10.15448/1984-7718.2016.2.26500

Resumo: Quanto custa a falta de afeto? Por que responsabilizar uma pessoa por ter gerado outra que não teve escolha? Por que o critério biológico é tão preponderante na sociedade brasileira? Muitos são os questionamentos acerca do mito do abandono afetivo e este artigo provoca uma discussão sobre as famílias brasileiras, na perspectiva de sua formação como identidade, a fim de levantar historicamente o abandono, identificar o alcance da responsabilidade e assim, ter direito à reparação pecuniária. Para isso explorou a metodologia de abordagem qualitativa no sentido de levantar informações através de pesquisa bibliográfica e documental que conduzissem a uma reflexão mais profunda nos recortes espaço e tempo. O método de investigação foi o histórico, que busca compreender essas diversas narrativas acerca do instituto família. A perspectiva histórica dialoga com a jurídica no sentido de buscar na teoria crítica um lastro que justifique o tratamento dispensado pelo legislador brasileiro.

Palavras-chave: Famílias; Abandono afetivo; Responsabilidade civil; Dano moral.

ABSTRACT: How much does lack of affection cost? Why blame one person for having generated another who had no choice? Why is the biological criteria so prevalent in the Brazilian society? Many are the questionings about the affective abandonment myth, and this article sparks a discussion about the Brazilian families, in the perspective of its formation as an identity, with the purpose of collecting historical data about the abandonment, to identify the extent of the civil liability involved and its possibility of pecuniary reparation. For that, this article used the qualitative approach in order to raise information through bibliographical and documentary research that would lead to a deeper reflection on specific space and time periods. The research method used was the historical, which seeks to understand these various narratives about the family institute. The historical perspective  Doutora em Família na Sociedade Contemporânea. Mestre em Família na Sociedade Contemporânea e Especialista em Direito Civil. Professora da Universidade Católica de Salvador. Contato: sheila.carregosa@gmail.com .  Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea na Universidade Católica de Salvador. Contato: rosario.mariana09@gmail.com . Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 274 dialogues with the juridical one in the sense of searching, in the critical theory a support that justifies the treatment given by the Brazilian legislator.

Key words: Family. Affective Abandonment. Civil Liability. Pain and Suffering.

INTRODUÇÃO

A contemporaneidade da responsabilidade civil no abandono afetivo baseiase na história da constituição dos arranjos familiares no Brasil, na compreensão de como a miscigenação étnica resultou no enraizamento da irresponsabilidade do genitor com sua prole e consequentemente, no desenvolvimento do abandono parental. O direito brasileiro silenciava-se até o advento da Constituição de 1988 sobre a igualdade dos genitores e em decorrência havia uma imposição legal da mãe no desenvolvimento do filho e simultaneamente a irresponsabilidade do pai. Tratase de como o abandono afeito é vislumbrado pela responsabilidade civil. A partir do contexto histórico da formação familiar até a atualidade é possível compreender que não comporta a sociedade continuar a aceitação da irresponsabilidade paterna e em contrapartida a sobrecarga da genitora no desenvolvimento saudável da criança e do adolescente. O direito brasileiro entende que é possível a condenação por abandono afetivo através do instituto do dano moral. Os conceitos de histórico da formação familiar e o abandono institucionalizado através da Roda de Expostos são essenciais para compreender as novas formas de família e os inúmeros arranjos monoparentais chefiadas por mulheres no país, atrelando ao direito de ressarcimento por descumprimento de deveres legais através da responsabilidade civil e o dano moral. A questão problema central deste artigo reside em investigar qual o caráter da indenização e os parâmetros para sua quantificação. Para o desenvolvimento desta pesquisa, utilizou-se a metodologia de abordagem quantitativa, o método de investigação histórico-dedutivo e a técnica do levantamento bibliográfico e documental, a exemplo do livro de Batismo de escravos da cidade de Cruz das Almas, Bahia datado de 1871. Estruturado em três capítulos, o primeiro descreve a formação histórica dos arranjos familiares no Brasil e a influência dos portugueses, africanos e indígenas; o Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 275 segundo mapeia as famílias na atualidade, o papel da mulher e a questão do afeto nas relações familiares, e o terceiro trata da responsabilidade civil aplicada ao abandono afetivo com seus parâmetros e o caráter da indenização.

1 CONTEXTUALIZAÇÃO DA FAMÍLIA BRASILEIRA

A formação da cultura étnica brasileira, iniciada no período colonial, baseiase em três etnias: os brancos portugueses, os negros africanos e os indígenas brasileiros. A colonização portuguesa impôs através do uso da força e da evangelização, trazidos da Europa, os conceitos e forma de constituição familiar realizada pelo matrimônio e as definições dos papéis dos nubentes advindas dos ensinamentos da Igreja Católica Apostólica Romana. Apesar da maciça influência da religião Católica e o poder exercido exclusivamente pelo homem branco português, desde o início da colonização, a família brasileira já possuía suas distinções determinadas por inúmeras questões, a exemplo da geográfica. Isto significa que não há homogeneidade em cada formação territorial, até porque os índios pertenciam a várias etnias, conservando-se assim contemporaneidade. Não foi a realidade social que determinou o direito, mas o direito europeu e cristão que se impôs a uma realidade completamente distinta de sua origem. E quais seriam as realidades das etnias que formaram o Brasil? 1.1 A influência Portuguesa na composição da instituição familiar O conceito eurocêntrico de organização social e, consequentemente, a forma de arranjo familiar dos portugueses foi sobreposta às demais etnias. Desta forma, a família era construída pela união entre homem e mulher através do matrimônio religioso católico e sendo apenas considerados herdeiros, ou seja, filhos legítimos, aqueles nascidos do casal, que tinham proteção legal, por isso, legítimos. Apesar de o casamento ser a única forma legal e aceita para constituição da família, por ser um ato burocrático e dispendioso economicamente, ficou resguardado para aqueles que tinham patrimônio significativo, em sua maioria, os Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 276 grandes senhores de engenho à época do Brasil Colonial e Império. Restaram aos homens e mulheres pobres livres a união por vontade das partes, tornando o afeto o principal motivo de constituição do núcleo familiar. [...] As africanas, por sua vez, vieram engrossar as “uniões à moda da terra”. Os portugueses já estavam familiarizados com elas, pois desde o século XV, eram enviadas para Portugal. Trabalhando como escravas, em serviços domésticos e artesanais, acabavam se amancebando ou casando com eles. No Brasil, as coisas não foram diferentes. Daí as famílias de mestiços e mulatos. Da mesma maneira que as uniões de brancos com índias, ou de brancos pobres, as de brancos, mulatos e negros também não pressupunham o casamento oficial. As pessoas se escolhiam por que se gostavam, passando a morar juntas e a ter filhos. (PRIORE, 2006. apud XAVIER, 2016. p. 42 – grifo nosso) O casamento não só no Brasil, mas em toda história da constituição da sociedade, baseava-se na antiga Roma e Grécia, e a sociedade portuguesa, de igual forma, vislumbrava o casamento como forma de manutenção de bens e poderes entre as classes dominantes. O elo familiar era voltado apenas para a coexistência, sendo imperiosa para o “chefe” a manutenção da família como espelho de seu poder, como condutora o êxito nas esferas política e econômica. Os casamentos e as filiações não se fundavam no afeto, mas na necessidade de exteriorização do poder, ao lado – e com a mesma conotação e relevância – da propriedade (SILVA, 2004. apud OTA, 2016. p. 10) Não obstante já havia núcleos familiares constituídos apenas pelas mulheres, por motivo de viuvez ou abandono, nos quais geriam as fazendas, comércios e escravos se os tivessem, revelando o início da família monoparental. Ressalva-se que as mulheres concubinas e sua prole, decorrentes das uniões duradouras ou encontros ilegais, eram objeto de preconceito da sociedade que às culpavam por sua condição, observando que o abandono e a viuvez não partiam da escolha da mulher, diferente do concubinato. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 277 As mães solteiras, por fim, talvez significassem a mais inconveniente das formações familiares de chefia feminina. Afinal, não insertas no casamento - como as abandonadas e viúvas - possuíam o fruto deste: a prole. Por isso sofriam as maiores discriminações e afrontas. Estampavam sobremaneira a ilegitimidade, na medida que tinham valido de sua sexualidade em prol de uma reprodução externa à estrutura matrimonial. Eram minoria, dentre esses três grupos, e se localizavam na camada mais pobre da sociedade. Muitas vezes, eram resultado de concubinatos, os quais, a despeito de serem “combatidos pela Igreja e terem um caráter ilegal, não significavam necessariamente encontros casuais, passageiros e transitórios”, o que vem a abalar ainda mais a pretendida exclusividade da família fundada no casamento. (ALMEIDA, 2010. apud XAVIER, 2016. p. 43 – grifo nosso) A diferenciação de filho legítimo e ilegítimo foi de extrema importância para a manutenção da social e cultural brasileira até o advento da Constituição da República em 1988, possuindo vários desdobramentos jurídicos, uma vez que os genitores não possuíam o dever legal de amparo aos filhos. O primeiro contato na formação brasileira foi entre os portugueses e os indígenas que possuíam arranjos societários e em diversos estágios culturais, havendo grande disparidade com os portugueses, por este motivo os colonizadores consideravam que os nativos não eram evoluídos. 1.2 A família Indígena No Brasil não havia uma uniformização dos indígenas, cada tribo possuía seus conceitos e formas de arranjos societários. A família indígena Guarani, por exemplo, era poligâmica e havia a possibilidade do divórcio, baseada na obra “O Direito nas missões jesuítas da América do Sul” de autoria de Thais Luzia Colaço. O processo de colonização através das missões jesuítas introduziu a nova estrutura familiar fundada na concepção cristã e monogâmica de família, modificando-se completamente a estrutura social na qual os índios Guarani pertenciam. A grande família era substituída pela família nuclear, a poligamia pela monogamia, houve a valorização da virgindade, fidelidade matrimonial, castidade e Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 278 do celibato, e, consequentemente a condenação das práticas de divórcio e adultério. Conceitos estranhos à cultura Guarani. Nos primeiros anos de Evangelização, os caciques relutaram em abandonar os costumes, principalmente a poligamia, pois além da questão amorosa e sexual, havia o sentimento de perda da autoridade, prestígio e a riqueza de possuir várias mulheres. Diante da resistência encontrada pelos chefes das tribos, não houve o consenso de norma única e foi dada aos caciques a possibilidade de casar-se com uma de suas mulheres, independente de serem as primeiras ou não. Após a escolha da esposa o ato de poligamia não era mais permitido, aqueles encontrados em qualquer relação ilícita ou adultera eram ameaçados e punidos de forma divina e corporal, normalmente eram açoitados para servirem de exemplo. Temendo a luxúria dos jovens, o casamento era permitido a partir dos 15 (quinze) anos para as meninas e 17 (dezessete) anos para os meninos, os jesuítas buscavam a realização rápida do matrimonio, mesmo que o escolhido não fosse da mesma tribo. A partir desses novos conceitos inseridos na sociedade indígena, inevitavelmente houve o início dos casamentos entre os portugueses e indígenas. A primeira família brasileira documentada neste aspecto foi o casamento entre Diogo Álvares Correa, apelidado pelos índios de Caramuru, e a índia Paraguaçu, que após a realização do matrimônio adotou o nome de Catarina do Brasil (XAVIER E BACELAR, 2015). 1.3 Caramuru e Catarina: primeira miscigenação legalizada Diogo Álvares Correia nascido em Viana do Castelo, norte de Portugal por volta de 1490, chegou à Bahia entre o ano de 1509, através de um naufrágio de sua embarcação de provável origem francesa na região atualmente conhecida como Rio Vermelho na cidade de Salvador. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 279 Segundo historiadores,1 por ser o único sobrevivente do acidente foi recepcionado pela tribo dos Tupinambás e logo aprendeu os costumes e idioma, os nativos por sua vez o apelidaram de Caramuru.2 Por interesses comerciais entre as partes, França e a tribo dos Tupinambás, o cacique Taparica ofereceu uma de suas filhas ao nobre português em casamento. Anteriormente, Caramuru teve várias mulheres indígenas sem contrair matrimônio. A indígena Paraguaçu, em 1527, viajou ao lado de Caramuru para Saint Malo, França, onde foi realizado o seu batismo na religião Católica em 30 de julho de 1528, recebendo-o um novo nome, Catarina do Brasil. A Certidão de batismo de Catarina do Brasil é o primeiro documento oficial do Brasil e sendo, portanto, o primeiro núcleo familiar brasileiro no estilo europeu documentado. Após a realização do matrimônio, o casal permaneceu na França por 03 (três) anos, após este período retornando-o para o Brasil. A prole, todavia, não foi absorvida pela tribo dos Tupinambás, os descendentes casaram-se com outros nobres portugueses, iniciando a formação da Aristocracia Brasileira com forte ascendência indígena. Seus herdeiros foram protagonistas de muitas histórias documentadas no Brasil. No século XIV havia escassez de mulheres brancas no território nacional e os homens brancos de posses frequentemente uniam-se com as mulheres indígenas. Com o passar do tempo e gerações, essa Aristocracia tornou-se senhores de engenho que impuseram e escravizavam a etnia africana que chegou ao país por intermédio do tráfico negreiro. Esta mudança de comportamento social não tem explicações razoáveis. 1.4 A Escravidão e a Família: violações de cor, raça e étnicas O escravo na história do Brasil, especificamente na legislação civil à época do Império, possuía status de res3 , sendo simultaneamente coisa e pessoa, sendo assim, não tinha capacidade civil para ser possuidor de direitos civis e políticos. 1 Jonildo da Silva Bacelar e Paulo Jaurés Pedroso Xavier, ambos os textos intitulados de Caramuru. 2 Peixe da família dos Murenídeos, tipo de moréia, onde se encontra na região do Recôncavo Baiano. (IHERING, Rodolpho Von. Dicionário dos animais do Brasil. 1968). 3 Com base no direito romano, res possui significado polissêmico, nesse contexto, significando “coisa”. Este termo não é usado para referir à pessoa. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 280 Por serem juridicamente incapazes, não constituíam direito à família na mesma medida de pessoas livres, aos escravos eram aplicadas na maioria das vezes as uniões de fato.4 Apesar da grande maioria das uniões serem ilícitas no território nacional, os efeitos do casamento eram os mínimos possíveis, como o impedimento da venda do escravo casado se sua nova condição o impedisse de exercer a vida matrimonial. Com efeito, em pesquisa realizada no acervo da Arquidiocese de São Salvador no período de 11 a 14/10/2016, em livro de batismo de escravos datado aos anos de 1871 a 1921, obra reservada às crianças nascidas na cidade de Cruz das Almas, no estado da Bahia após a promulgação da Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre). A Lei do Ventre Livre estabeleceu no Brasil Império que os filhos de escravos nascidos após esta Lei seriam considerados livres e a forma de tratamento que deveria ser dado a eles até completarem a maior idade, conforme a Ementa abaixo: Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos menores e sobre a libertação annaul de escravos (PLANAUTO; 1871)5 Essas crianças possuíam a liberdade de direito, todavia, não a obtinham de fato, por força de Lei, a genitora em condição de escrava tinha o dever de cuidar do filho até oito anos de idade, após isto, o senhorio poderia optar por uma indenização paga pelo Estado ou o uso da mão-de-obra do liberto até os vinte e um anos de idade, conforme o art. 1º, §1º da Lei. §1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se 4 Admitia-se apenas o contubernium, não havendo o casamento, sendo diferente da conjunção carnal eventual (fornicatio). (WEHLING, 2004, apud XAVIER, 2014. p. 493). 5 Lei Do Ventre Livre, promulgada pela Princesa Isabel em nome do Imperador do Brasil Dom Pedro II, na data de 28 de setembro de 1871. Texto fornecido pelo site oficial do Planalto Brasileiro, Casa Civil. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 281 dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniaria acima fixada será paga em titulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extinctos no fim de 30 annos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbitrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor. (grifo nosso).6 O casamento à época do objeto pesquisado era reservado para as famílias que possuíam posses, relacionada à elite escravocrata do Brasil. Demonstrou a situação rara o encontro de registro de filhos de escravos legítimos pelo casamento, apresentando assim tanto o nome da genitora como do genitor e seu proprietário. A maioria dos registros encontrados é composta apenas da classificação de cor da criança, com o prenome da mãe, tendo em vista que em sua condição de escravidão não havia sobrenome, juntamente com a expressão “filho natural” e de quem pertencia à propriedade. Mesmo que a genitora e toda a sociedade soubessem quem era o pai, não poderia constar o nome na certidão de batismo, pois para Igreja Católica o filho concebido fora do matrimônio era considerado ilegítimo e, portanto sem quaisquer direitos sendo o genitor escravo ou senhorio. Não sendo exigido do genitor qualquer dever de cuidado e responsabilidade com o filho, cumulativamente com a abundância de escravos existentes no território nacional, apesar de não ser encontrados dados concretos acerca do abandono material e afetivo na qual os menores se encontravam. Revela-se diante do dever legal de cuidados que a genitora era imposta com a irresponsabilidade do genitor um traço cultural e histórico de nossa formação dos arranjos familiares no Brasil. 1.5 A roda de expostos A Roda de Expostos, assim denominada no Brasil, concepção nascida na Europa Medieval que consistia na entrega das crianças indesejadas pela genitora ou 6 Lei Do Ventre Livre, promulgada pela Princesa Isabel em nome do Imperador do Brasil Dom Pedro II, na data de 28 de setembro de 1871. Texto fornecido pelo site oficial do Planalto Brasileiro, Casa Civil. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 282 responsável, vários fatores influenciavam nesta decisão. Os locais que tinham as Rodas eram garantidos o anonimato pleno às mães ou responsáveis. O sistema surgiu como forma de proteger as crianças da morte, causadas pelo frio ou devoradas por animais se abandonadas em qualquer lugar, assim, eram entregues através da Roda a estas instituições que mantinha o dever de cuidado das crianças. No Brasil Colônia, o sistema foi instalado em cidades importantes, possuindo a primeira na cidade de Salvador junto à Casa de Misericórdia nos moldes da existente em Lisboa, Portugal no ano de 1726, e, posteriormente, nas cidades do Rio de Janeiro e Recife, todas durante o século XVIII. A prática do abandono no Brasil era tão presente que os menores eram encaminhados aos cuidados das Câmaras Municipais7 antes do surgimento das Rodas, a Administração Pública, alegando falta de recursos para realizar os cuidados necessários, os menores em sua maioria eram entregues às famílias caridosas. Todavia, segundo (MARCÍLIO, 1997, Passim) em muitos casos as crianças eram usadas quando maiores como “mão-de-obra familiar suplementar, fiel, reconhecida e gratuita”. Apesar do sistema da Roda de Expostos ser baseada na caridade, também tinha caráter de evangelização, pois a primeira providência com a chegada do bebê era o batismo, caso a criança já fosse batizada a genitora deixava uma espécie de “bilhete”8 avisando-o da situação do menor, porém, se houvesse qualquer dúvida sobre o batismo mesmo com a indicação da mãe, a criança era batizada novamente. O importante nesse aspecto era salvar a alma do menor recém-chegado. Sem dados precisos, muitas crianças cresciam nestes locais até alcançar a maior idade ou eram “adotadas” por outras famílias, ocupando um lugar de “filhos de criação”. Até o advento da equiparação Constitucional dos filhos, legítimos, 7 As Câmaras Municipais pertenciam à Portugal, porém em sentido amplo, aplica-se a Administração Pública no Brasil. 8 Os bilhetes eram colocados junto à criança na Roda, nele encontravam-se informações como nome, data de nascimento, se era batizado ou não e se tinha alguma doença. Era comum da mesma forma, deixar algum “objeto de identificação” como uma fita colorida, colar, medalhões, os objetos eram deixamos para posteriormente a genitora pudesse reconhecer o filho. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 283 ilegítimos e adotados de 1988, os “filhos de criação”9 não possuíam direitos sucessórios ou ligação jurídica com as famílias que as mantinham. Várias eram as razões que levavam as crianças para as Rodas, muito comum a falta de estrutura familiar, o menor ser fruto de uma relação ilegítima e o abandono pelos genitores influenciarem nesse destino. O sistema das Rodas perdurou do Brasil Colônia até a República ano de 1950, sendo assim foram 224 (duzentos e vinte e quatro) anos em funcionamento. Sem dúvidas um dos grandes influenciadores na sociedade. O exemplo, a Casa da Misericórdia na cidade de Salvador atualmente possui status de museu, aberto à visitação.

2 A FAMÍLIA MODERNA

O Brasil perpetrou a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos por 488 (quatrocentos e oitenta e oito) anos e apenas com advento da Constituição Federal de 1988 que cessou a distinção. Conforme o da Carta Magna; “Art. 226 [...] §6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. A partir da nova Constituição, as lacunas encontradas na história da responsabilidade e do abandono por seus genitores aos filhos concebidos fora da relação matrimonial e aqueles menores chamados de “filhos de criação”, que atualmente corresponde à adoção, foram sanados. Agora, todos possuem igualdade de direitos. Além de tornar os filhos em igualdade de condições, com o passar das décadas e com o surgimento do Feminismo10 no mundo houve mudanças significativas na constituição familiar e o papel da mulher na sociedade e na família. 9 O termo “criação” desponta aqui como afeição, adoção, aceitação, sustento e guarda. (LORIVAL, Serejo. 2015. IBDFAM-MA) 10 Feminismo: Iniciado pela filósofa Simone de Beauvoir trata-se de um movimento social e político que tem como objetivo conquistar o acesso a direitos iguais entre homens e mulheres e que existe desde o século XIX. (CARTA CAPITAL, 2015) Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 284 2.1 O papel da mulher na sociedade e na família A mulher brasileira que teve seu papel negligenciado, possuindo status de relativamente incapaz,11 devendo por Lei ter a autorização do seu genitor ou marido para praticar os atos da vida civil. Até o Código Civil de 1916, o papel da mulher consistia exclusivamente aos cuidados com a prole e ao lar, de acordo com o “Capítulo III – Dos Direitos e Deveres da Mulher”. Contudo, apesar das inovações legislativas, estas ainda não foram suficientes para abolirem o modelo familiar focado na reprodução para fins de manutenção patrimonial e que se submetia a uma hierarquia estanque, na qual a figura do marido ocupava o posto mais alto. Isso se deve ao fato de que a mulher continuou, durante boa parte do século XX, a ser considerada relativamente incapaz, após o casamento, necessitando de autorização do marido para a realização dos atos da vida civil segundo o artigo 242 do diploma civil de 1916, não lhe restando nenhuma autoridade sobre os filhos. O pátrio poder era exclusivo do marido, sendo atribuído à mulher o poder de decisão sobre os filhos apenas na eventual falta do pai.12 (XAVIER, 2016). A sociedade assim como a Igreja Católica lutava para continuar o vínculo familiar de forma indissolúvel, apenas em 1942 foram possibilitadas as partes se separassem sem a dissolução do vínculo matrimonial, o famoso “desquite”.13 Porém apenas com advento do Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121 de agosto de 1962, que a mulher passou a adquirir dignidade como membro de um núcleo familiar, que emancipou as mulheres casadas, que antes eram relativamente incapazes, igualando-as aos maridos e atribuindo os mesmos direitos. Em 1977, com a Emenda Constitucional nº 9 e a Lei do Divórcio, Lei nº 6.515/77, o entendimento da família segundo concepções religiosa é abandonado, permitindo a partir desse momento, a origem de famílias baseadas em novos valores 11 Artigo 6º, II (CÓDIGO CIVIL. 1916) – Pessoas que não estão aptas ao exercício ou gozo de seus direitos. 12 “Artigo. 385. O pai e, na sua falta, a mãe são os administradores legais dos bens dos filhos que achem sob o seu poder, salvo o disposto no art. 225.” (CÓDIGO CIVIL. 1916) 13 O Desquite foi a primeira forma de separação sem o rompimento do vínculo no Brasil, aquele(a) que possuía status de desquitado(a) não poderia contrair nosso casamento, motivo qual muitos da burguesia recorriam a contratos formais de casamento no exterior para as novas relações. Posteriormente houve o surgimento e rompimento do vínculo através da Separação e do Divórcio no ordenamento jurídico Brasileiro. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 285 e anseios, bem como autorizando que os divorciados convalidassem novas núpcias. Com a citada Lei, houve a alteração do regime legal de bens, que passou de comunhão universal para parcial. Nota-se que a igualdade14 entre os gêneros foi alcançada recentemente, tornando-se dessa forma um dos princípios do Direito de Família no Brasil, conforme entendimento de José Afonso da Silva, um dos maiores teóricos no segmento. O sexo sempre foi um fator de discriminação. O sexo feminino sempre esteve inferiorizado na ordem jurídica, e só mais recentemente vem ele, a duras penas, conquistando posição paritária, na vida social e jurídica à do homem. A Constituição, como vimos, deu largo passo na superação do tratamento desigual fundado no sexo, ao equiparar os direitos e obrigações de homens e mulheres. (SILVA, 1999, apud GAGLIANO e FILHO PAMPONA, 2012). O princípio da Igualdade possui reflexos tanto na equiparação dos papeis dos genitores, correspondendo em igual forma de responsabilidade, cuidado, criação, educação e sustento de sua prole, assim como na equiparação dos filhos, sendo estes legítimos, ilegítimos ou de criação. 2.2 As Novas Formas de Arranjos Familiares Abandonava-se então a ideia de uma antiga família patriarcal15 , hierarquizada, e patrimonialista, para se inaugurar uma concepção moderna dos núcleos familiares; uma concepção baseada no afeto. O ambiente familiar passou a ser ligado em laços de afetividade, de forma pública, contínua e duradoura, tendo assistência mútua entre os membros daquela entidade familiar, com o primado de busca de felicidade, sendo, por isso, a família, de acordo com a Constituição Federal, a base da sociedade brasileira. (PESSANHA, 2011. p. 02. – grifo nosso.) 14 Igualdade no sentido restrito ao Direito de Família, não se aplicando da mesma forma em outras áreas na sociedade. 15 Baseia-se nos laços sanguíneos e biológicos, fundamentado na hierarquia, onde a figura paterna exercia o “pater” poder e em decorrência, os filhos e esposa apenas eram mantidos em sua guarda e tutela de forma submissa, resguardados através dos preceitos religiosos do casamento. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 286 A Carta Magna de 1988 tornou-se um marco na forma jurídica e social na qual a família brasileira se constitui, pois houve o reconhecimento da existência da união estável, e a igualdade da prole, e outras possibilidades de arranjos familiares diferentes do matrimônio, sendo extensivas aos parentes,16 estabelecendo direitos e deveres dos arranjos familiares, conforme o “Capítulo VII – Da Família, da Criança, Do Adolescente, do Jovem e do Idoso” O afeto tornou-se o principal elo entre os entes pertencentes à família, sendo denominado como laços socioafetivos e materializado pelo princípio da Afetividade no ordenamento jurídico. Afeto significa sentimento de afeição ou inclinação para alguém, amizade, paixão ou simpatia, portanto é o elemento essencial para a constituição de uma família nos tempos modernos, pois somente com laços de afeto consegue-se manter a estabilidade de uma família que é independente e igualitária com as pessoas, uma vez que não há mais a necessidade de dependência econômica de uma só pessoa. (PESSANHA, 2011. p. 02) O laço socioafetivo teve reflexo principalmente no reconhecimento da união estável, que antes do advento da Constituição de 1988 eram considerados uniões ao modo livre, outrossim, influenciando igualmente na denominação das uniões de pessoas do mesmo sexo, chamando-se de uniões homoafetiva. Daí, inclusive, a opção pela expressão “união homoafetiva”, preferida pela maioria dos autores modernos, e não “união homossexual”, pois, as pessoas que formam esse núcleo estão jungidas pelo afeto, e não apenas pela sexualidade. (GAGLIANO e FILHO PAMPONA, 2012). Entende-se desta forma, o conceito de união estável estabelecida no art. 226, §3º da CRFB em: “a união estável como uma relação afetiva de convivência pública e duradoura entre duas pessoas, do mesmo sexo ou não, com o objetivo imediato de constituição de família”.17 16 Os parentes (ascendentes, colaterais e afins) pertencem ao conceito de Família Extensa, diferenciado da família nuclear (pai, mãe e filhos). 17 Id. Ibidem. p. 371. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 287 Possuindo desta forma, os seguintes elementos caracterizadores: a Publicidade, a união deve ser conhecida diante de toda a sociedade, desta forma não se aplicando os diretos às relações clandestinas; a Continuidade, no sentido do animus de permanência e definitividade, diferentemente da relação de namoro; a Estabilidade, possuir convivência duradoura distinguindo-se da conjunção carnal eventual; e principalmente como sendo a essência e vislumbrando o princípio da Afetividade em relação à união estável, o Objeto de Constituição de Família. Fonte: IBGE/2010. Ressalta-se ainda, que há uma distinção entre a união estável pura e a impura. A considerada pura é resultado entre a união de duas pessoas que não possui qualquer impedimento18 ou suspensão19 para casar-se, diferentemente das relações impuras, que há em alguma das partes, ou as duas, algum obstáculo para conversão da união estável em casamento. Essa diferenciação é de extrema importância, pois implica diretamente os direitos e resultados em decorrência da relação, contudo, este assunto não é objeto do presente artigo. 18 O Impedimento é causa permanente na qual as partes não podem contrair núpcias entre si, possui roll taxativo no artigo 1.521 e 1.522 no Código Civil Brasileiro. 19 A Suspensão por sua vez corresponde a situações específicas e temporárias na qual as partes não podem realizar o matrimônio. Artigos 1.523 e 1.524 do Código Civil Brasileiro. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 288 Assim como sempre houve a existência da união estável no Brasil, conforme relatado no Capítulo anterior, igualmente a família monoparental sempre esteve presente. A forma monoparental consiste na entidade familiar composta por qualquer um dos pais e sua prole, conforme o artigo 226 da CRFB: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) §4.º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”, (grifo nosso). Na realidade, a monoparentalidade sempre existiu — assim como o concubinato — se levarmos em consideração a ocorrência de mães solteiras, mulheres e crianças abandonadas. Mas o fenômeno não era percebido como uma categoria específica, o que explica a sua marginalidade no mundo jurídico. (...) Dos países anglo-saxões, a expressão ganhou a Europa continental, através da França que, em 1981, empregou o termo, pela primeira vez, em um estudo feito pelo Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos (INSEE). O INSEE francês empregou o termo para distinguir as uniões constituídas por um casal, dos lares compostos por um progenitor solteiro, separado, divorciado ou viúvo. Daí, a noção se espalhou por toda a Europa e hoje é conhecida e aceita no mundo ocidental como a comunidade formada por quaisquer dos pais (homem ou mulher) e seus filhos. (LEITE, 2013. Apud GAGLIANO e FILHO PAMPONA, 2012. p. 448) O modelo monoparental é o predominante no Brasil, ressalta-se ainda que a grande maioria é composta pela genitora. Conforme dados de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Uma das razões para a monoparental feminina ser a grande maioria da composição familiar brasileira é o abandono, em suas várias espécies, dos genitores com sua prole. O abandono material consiste na ausência de recursos necessários ou a falta de pagamento de pensão alimentícia sem justa causa, conforme preceitua o artigo 22420 do Código Penal Brasileiro. 20 Artigo 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo. Pena - detenção, de 01 (um) a 04 (quatro) Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 289 O abandono intelectual consiste por sua vez, em deixar de prover ao seu descendente o direito Constitucional ao estudo e educação, de acordo com o artigo 24621 do Código Penal Brasileiro. Estando de igual forma previsto como dever no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dos genitores com sua prole no artigo 2222 e sendo reflexo do artigo 227 da Carta Magna. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O abandono afetivo, diferentemente dos supracitados, é o de maior dificuldade de prova e não está tipificado no ordenamento jurídico. Trata-se de um conceito doutrinário, pois está intimamente atrelado à parte psicológica da criança ou adolescente vítima e é considerado como a ausência de afeto no seu desenvolvimento. O abandono afetivo ocorre quando os filhos são privados da convivência com os seus pais, seja por imposição de um dos genitores que denigre a imagem do outro genitor, seja pela própria vontade do pai que deixa de cumprir com o princípio da paternidade responsável ao deixar de conviver diariamente com o seu filho, e fornecer todo o afeto necessário para uma sadia formação psicológica da prole, violando o princípio da dignidade da anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País. Parágrafo único - Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada. 21 Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar. Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa. 22 Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendolhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 290 pessoa humana.23 Esta última forma de abandono é que dará ensejo à compensação por dano moral. (ESTOVAR, 2010. p. 09) Ressalta-se ainda, que muitos genitores sequer assumem seus descendentes, o Brasil atualmente possui dados alarmantes de crianças que não possui registro paterno. Atualmente segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), com base o Censo Escolar de 2011 apontam que são 5,5 milhões.24 O abandono na forma afetiva foi negligenciado sua importância por anos no ordenamento jurídico brasileiro, todavia, há uma íntima ligação entre o abandono afetivo e a responsabilidade civil, decorrendo desta forma a licitude da concessão do dano moral. Contudo, de que forma aplica-se a teoria da responsabilidade civil e o dano moral?

3 DA RESPONSABILIDADE CIVIL E O DANO MORAL EM DECORRÊNCIA DO ABANDONO AFETIVO

Demonstra-se que o abandono está enraizado na cultura brasileira, a instituição e repartições das obrigações entre os genitores oriundas da prole é algo recente história do Direito brasileiro, desta forma, existe uma imensa necessidade do Poder Judiciário interferir no descumprimento em prol da criança e adolescente. É pacificado no ordenamento jurídico que aquele que gerar abandono de cunha material e intelectual deve ser punido por seus atos, nesse sentido, busca-se o princípio Constitucional da Proteção Integral no artigo 227 da CRFB/88, assim como no artigo 3º do ECA. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de 23 Dignidade, s.f. (lat. Dignitatem). Qualidade de quem ou daquilo que é digno; cargo honorífico; nobreza; decoro; autoridade moral; respeitabilidade. (RIDEEL, 1978, apud 66 GAGLIANO e FILHO PAMPONA, 2012.p. 66) 24 Dados retirados do portal oficial da Secretaria de Estado de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude, pertencente ao Governo do Distrito Federal (DF) < http://www.crianca.df.gov.br/noticias/item/2332-brasil-tem-55-milh%C3%B5... visitada em 07/11/2016 Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 291 toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Artigo 3º - A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facilitar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Diferentemente a possibilidade de responsabilizar o genitor pelo ato do abandono afetivo tornou-se um tema novo e polêmico nas cortes brasileiras. Como responsabilizar na seara cível a subjetividade do dever de afeto? Então, é obrigatório o pai ter e demonstrar amor perante seus filhos? O processo judicial não objetiva o cumprimento do dever do afeto, tão pouco minimizar os danos causados ao longo do desenvolvimento da criança e do adolescente, a real finalidade é a condenação pecuniária como instrumento de punir o genitor pela ausência na realização de seus deveres. 3.1 Contextualização da Responsabilidade Civil A responsabilidade civil estabelecida no Código Civil brasileiro de 2002, conforme o artigo 927 “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187),25 causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” Neste sentido, a responsabilidade compreende o dever de reparar por ato ilícito praticado de forma objetiva; por imposição legal, ou subjetiva, analisando o contexto da culpa e dolo. A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal. (DINIZ, 2008 apud OTA, 2015. p. 40) 25 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. e Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (Código Civil Brasileiro, 2002) Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 292 Ressalta-se que para a caracterização da responsabilidade civil é essencial a presença dos três elementos: a conduta humana, o dano ou prejuízo e o nexo de causalidade. Neste contexto, o abandono afetivo possui correspondência na ação humana a qual o genitor não exerce o dever da convivência familiar, causando em sua prole, danos consideráveis em seu desenvolvimento sadio, e consequentemente, é demonstrado através do nexo causal de especialistas em Psicologia e Psiquiatria. Neste sentido, a conduta humana apresenta-se através ação (positiva) ou omissão (negativa), guiada pela vontade do agente que desemboca no prejuízo ou dano. (PAMPLONA FILHO e GAGLIANO. 2012. p. 73). O genitor ocupa a posição de agente causador do dano, no qual de forma voluntária, não participa do crescimento e da vida de seu filho. O dano, ou prejuízo, é requisito indispensável para a configuração da responsabilidade, seja ele de cunho patrimonial ou em seara dos direitos da personalidade, este deve ser certo, efetivo e indenizável. Contudo, pela natureza abstrata dos sentimentos, em especial o amor, não há como mensurar o quanto vale o amor paterno e os prejuízos da ausência da convivência familiar, igualmente como o dano patrimonial, mas isto não significa que o dano não ocorreu. Somente o dano certo, efetivo e indenizável. Ninguém poderá ser obrigado a compensar a vítima por um dano abstrato ou hipotético. Mesmo em se tratando de bens ou direitos personalíssimos, o fato de não se poder apresentar um critério preciso para a mensuração econômica não significa que o dano não seja certo.26 A responsabilidade em decorrência do abandono afetivo confere a violação do direito da personalidade do menor em virtude do não cumprimento da convivência familiar por parte do genitor de forma voluntária, surgindo o direito à reparação de cunho moral. O nexo causal compreende liame sanguíneo e Constitucional, a convivência familiar é o binômio de dever-direito entre as partes (genitor e prole). Assim como é direito do pai acompanhar o crescimento do filho, de igual forma, a criança tem o direito do cumprimento da relação paterna. 26 Id. Ibidem. p. 85. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 293 Em analise da culpabilidade no abandono afetivo baseia-se na forma na forma de negligência, “é a falta de observância do dever de cuidado, por omissão”.27 O exemplo de pais que não acompanham a vida escolar, não aparecerem em datas comemorativas ou até mesmo não conversa com o filho por longos períodos. Não se trata de uma responsabilidade observada pelo prisma objetivo, há a necessidade da ocorrência da voluntariedade do genitor baseada em negligência em abandar o desenvolvimento de sua prole, e por consequência exclusiva este ato, provocar danos psicológicos. A comprovação do dano é feita através de laudos de profissionais técnicos em Psicologia e Psiquiatria, que devem comprovar a existência e o grau do dano. Sendo portanto, muito subjetivo afirmar o alcance desse dano. No que se refere ao dano suportado pelo filho, verifica-se que ele deve ser provado pelo autor da demanda, em especial, por meio de perícia psicológica, uma vez que não é possível a indenização por dano hipotético ou eventual. (SILVA. 2015, p. 2) A partir da concretização documental através da perícia em fase de instrução processual, o juízo poderá relacionar a gravidade do prejuízo sofrido e enquadrá-lo em dano moral e quantificar o cabimento de indenização. O dano moral aplicado ao caso não tem caráter de quantificar o afeto entre as relações paternas, mas sim, além de compensar monetariamente aquele que teve seus direitos da personalidade violados e mais ainda, demonstrar ao genitor o quanto negligente foi sua postura. Aqui cabe uma crítica à expressão “abandono afetivo”, porque se abandona algo que pertenceu à pessoa; e não é a questão, porque se está tratando de pessoas, que não tiveram uma relação construída, quiçá tempo para desenvolver qualquer tipo de sentimento, como o afeto. 3.2 O Duplo Caráter Da Aplicação Do Dano Moral O dano moral consiste em violações de direitos a bens jurídicos imateriais e personalíssimos, seu conteúdo não é pecuniário e tão pouco comercial. Exemplo da violação do direito à intimidade e à honra. 27 Id. Ibidem. p. 178. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 294 O dano moral consiste na lesão de direitos cujo conteúdo não é pecuniário, nem comercialmente redutível a dinheiro. Em outras palavras, podemos afirmar que o dano moral é aquele que lesiona a esfera personalíssima da pessoa (seus direitos personalidade), violando, por exemplo, sua intimidade, vida privada, honra e imagem, bens jurídicos constitucionalmente.28 O abandono afetivo trata-se de violação ao direito imaterial constitucional da convivência familiar pelo genitor. Com efeito, o prejudicado, ora filho, será ressarcido por via de danos morais. O bem lesionado por possuir está atrelado à personalidade do prejudicado, não poderá ser restituído para o momento anterior à lesão sofrida, nesse sentindo, o dano moral em sentido amplo possui natureza jurídica exclusivamente sancionatória, entendida como a consequência lógico-normativa do ato ilícito praticado pelo agente.29 Porém tratando-se da aplicabilidade do instituto nos casos de abano afetivo, não possui apenas o caráter sancionatório para o agente, pois também possui cunho educativo não só entre as partes do processo, mas para toda a sociedade. No intuito de dar máxima efetividade às normas constitucionais, buscando tutelar o abandono afetivo, a forma encontrada pelo Estado-Juiz é a indenização pecuniária, que deve ter um caráter sancionatório (punitivo) e compensatório, visando a desmotivar toda e qualquer atitude semelhante a do pai omisso. Seria uma forma de dar uma resposta à sociedade e servir de alerta para todos os pais que não cumprem a paternidade de forma responsável. (TOVAR. 2010. pp 13-14) (grifo nosso). O caráter educativo da condenação em danos morais por abandono afetivo ultrapassa a questão inter partes do processo, revela-se como a forma atualmente encontrada para compelir os genitores a cumprirem com sua responsabilidade que foi ignorada ao longo da história brasileira. Agora não basta apenas ser um pai presente financeiramente e desprovido de feição, além do dever material o genitor tem que fazer-se presente o desenvolvimento do filho. 28 Id. Ibidem. p. 101. 29 Id. Ibidem. p. 122. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 295 Não se trata de qualquer ponderação entre a liberdade de amar do pai e o direito do filho em ter uma convivência afetiva com o seu pai, mas se trata de dar aplicabilidade direta ao princípio constitucional da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana, baseado no direito do filho de ter um desenvolvimento saudável.30 Desta forma, há veracidade em dizer que ninguém pode ser obrigado a amar outro alguém, contudo, trata-se na realização da paternidade responsável que foi negligenciada na história do direito das famílias, é o cumprimento do dever do Estado em reduzir, punir e educar aqueles que fazem se seus filhos “órfãos de pais vivos.”31 3.3 A indenização: uma sanção para a culpa A indenização do dano moral em sentido amplo deve-se ser contabilizada a partir do grau de culpa do agente perante o dano causado ao prejudicado. (PAMPLONA FILHO e GAGLIANO. 2012. p. 176). Este por sua vez, podendo atingir os graus de levíssima: tratando-se de falta comedida por força da conduta que escaparia ao padrão homem-médio; culpa leve: sendo a falta de diligência média em sua conduta; e a culpa grave: embora não intencional, o comportamento do agente demonstra que o mesmo atuou como se tivesse querido a lesão ao prejudicado. Não obstante a questão do abandono, a culpa do agente e o lapso do dano efetivo comprovado são essenciais servem como o parâmetro e cabimento da indenização. “O dano moral será pautado na culpa/dolo do pai que abandonou o seu filho, violando preceitos constitucionais, nexo causal e no dano efetivamente causado” (TOVAR, 2010. p. 18). Para a comprovação do dano, é necessário o conhecimento específico da Psicologia e Psiquiatria, que deverão emitir laudos que busquem comprovar a gravidade e efetividade do dano causado no desenvolvimento do prejudicado por 30 Id. Ibidem. p. 15. 31 Expressão cultural brasileira dada às crianças e adolescentes que possui genitores ausentes em seu desenvolvimento. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 296 ausência da convivência familiar por culpa do genitor. Caberá ao juízo em análise do mérito analisar o nexo causal das ações do genitor e o dano comprovado nos laudos. Juiz ao analisar o mérito, na formação do seu convencimento, deverá considerar a capacidade processual do autor da ação, o convívio familiar o qual está inserido, se seus genitores estão ou estiveram envolvidos em litígios de ordem familiar, quais os motivos que fizeram com que o elo entre os familiares fosse perdido, ou não consentido, bem como a comprovação dos danos sofridos e de culpas unilaterais ou concorrentes.32 Devem-se considerar ainda para a quantificação da indenização os custos para o tratamento necessário para amenizar o dando sofrido, esse valor engloba tanto o acompanhamento profissional como seus desdobramentos como, por exemplo, a medicação. “A indenização deve ser em valor suficiente para cobrir as despesas necessárias para que o filho possa amenizar as sequelas psicológicas mediante tratamento terapêutico”.33

CONCLUSÃO

O abandono afetivo ao passar da evolução histórica da sociedade através da intervenção judicial está deixando de ser negligenciado na atualidade, o entendimento que os deveres constitucionais devem ser cumpridos pelos genitores, devendo aos pais mais do que proporcionar sustento e direito à educação, mas sim um desenvolvimento sadio e sem traumas por ausência de participação. Ressalta-se a importância da mudança do olhar legislativo ao papel da mulher que deixa de ser coadjuvante na sociedade para ocupar teoricamente o mesmo patamar social dos homens, esta independência tem relações profundas com a nova concepção familiar baseada no afeito entre as partes, os elos socioafetivos ocupam importância tanto quanto os consanguíneos para a formação familiar. Outrosssim, a isonomia dos filhos legítimos, ilegítimos trouxe segurança jurídica para aqueles concebidos fora do casamento e os colocando-os em igual posição em direitos e deveres dos filhos legítimos. 32 Id. Ibidem. p. 18. 33 Id. Ibidem. p. 18. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 297 Contudo, a reparação civil não visa a imposição do afeto entre as partes, mas sim assegurar o direito constitucional da criança e do adolescente à convivência familiar e desenvolver-se de forma sadia com o apoio emocional de seus genitores, não há imposição do amor, mas sim da responsabilidade de conceber e criar filhos na sociedade. Não obstante, os parâmetros para o deferimento e quantificação da indenização do dano moral ultrapassam outros campos de conhecimento como a Psicologia e a Psiquiatria, devendo os profissionais habilitados através de laudos demonstrar a efetividade do dano e gravidade no prejudicado pela negligência do genitor em seu desenvolvimento. Contudo, o caráter da indenização em danos morais não possui natureza apenas sancionatória como é tratado em sentido amplo, mas sim há um duplo sentindo de além de condenar o pai financeiramente na proporção de sua negligência e a natureza educativa que ultrapassa as fronteiras entre as partes do processo para alcançar toda a sociedade, na efetivação do papel do Estado-juíz em educar e coibir futuros casos e violações da legislação. Ainda que as ciências dialoguem para dirimir esse conflito, elas são incapazes de alcançar o eu de cada indivíduo. Mesmo sendo destinado à Ciência Jurídica agir com justiça e com certeza, a proposta da indenização e o sentido do preenchimento da lacuna material não são capazes de “curar” essa sequela que foi diariamente aberta e não tratada, quer pelos motivos, pelos sentimentos ou pela mistura deles. As pessoas confundem os papéis que desempenham com as pessoas que afetam. Pessoas são Pessoas, não são símbolos de outras histórias, não são misturas de sentimentos. O abandono é tratado diferentemente por cada povo e cultura. Um comportamento que na atualidade para determinado povo possa parecer comum, para outro povo possa se caracterizar abandono. Além do mais, a própria legislação brasileira afasta o convívio paterno da relação filial a partir da lei trabalhista que permite desigualmente licença para os pais. Isto significa que a cultura brasileira tem resquícios de outra época em que os diversos povos tratavam de outra forma e não como abandono. Rocha, S. M. C. | Rosário, M. N. - Abandono Afetivo: perspectivas jurídicas no... ECA Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2016. ID 26500. 298 Importante agir com verdade, sem atribuir ao outro culpa, que em muitos casos não têm. Significativo é reproduzir a história como realmente ocorreu e não elaborar uma situação lúdica, unilateral e com verdade relativa. O diálogo é necessário para intermediar verdades e se chegar a um resultado. As pessoas não devem transferir sentimentos, medos e frustrações para outras, porque são seus. Resolver questões como esta com valores monetários baixos ou altos vão servir como troféu da vingança de um lado, e do outro, elevar o termômetro do ódio e da repulsa. Relações interpessoais precisam ser tratadas com sensibilidade através dos instrumentos da comunicação e da expressão do verdadeiro sentimento e não serem reduzidas a valores de papel, porque esses desaparecem; e aqueles, curam.

REFERÊNCIAS

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