Abandono material


Porbarbara_montibeller- Postado em 13 março 2012

Autores: 
SEIXAS, Aline Munhoz

TIPO PENAL

Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País. (Redação dada pela Lei nº 5.478, de 1968)

Parágrafo único - Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada. (Incluído pela Lei nº 5.478, de 1968)

FUNDAMENTOS DO TIPO: é um crime que tem como fundamento o artigo 229 da Constituição Federal, bem como o princípio da solidariedade familiar, oriundo do Direito de Família. Importante registrar que o delito de Abandono Material pode ocorrer ainda que o cônjuge e filhos estejam sob o mesmo teto, desde que comprovados os elementos previstos no seu tipo penal.

CONCEITO: o tipo penal pune o agente que, sem justa causa, não contribui com a subsistência do cônjuge ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.

Há ainda outra conduta prevista no tipo que é deixar, sem justa causa, o agente de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo.

O tipo pune ainda aquele que abandona o trabalho com o intuito de não pagar pensão alimentícia, neste caso, o agente é solvente e mesmo assim age da forma mencionada.

            Como visto, para que ocorra o delito é necessário que a conduta seja praticada “sem justa causa”. Sobre essa expressão, temos a explicação de Guilherme de Souza Nucci[1]:

Significa uma conduta não amparada por lei. Assim, havendo estado de necessidade, é natural que possa o pai deixar de alimentar o filho, pois não teria cabimento punir aquele que não tem condições de sustentar nem a si mesmo.

            Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do estado de São Paulo[2], em recente decisão, se pronunciou:

Crime omissivo - Justa causa que deve ser provada pela acusação - Comprovação de que o réu vinha suprindo as necessidades dos filhos - Depósitos mensais - Valores diversos - Eventual inadimplemento que, por si só, não tipifica o delito do art. 244 do CP - Absolvição que se impõe - Recurso provido - (voto n. 8627).

Esse posicionamento também foi o adotado pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul[3], senão vejamos:

APELAÇÃO CRIME. ABANDONO MATERIAL. INADIMPLEMENTO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. DÚVIDA ACERCA DO DOLO ESPECÍFICO DO ABANDONO. ABSOLVIÇÃO.

- Para que se configure o crime de abandono material é essencial que o inadimplemento da obrigação de pagar prestação alimentícia ocorra sem justa causa, sendo indispensável a prova inequívoca do dolo específico de abandono. É imprescindível, para o sucesso da pretensão punitiva, a segura comprovação de que o agente, propositadamente, deixou de prover a subsistência do sujeito passivo, possuindo recursos para fazê-lo. Conjunto probatório dos autos insuficiente para um decreto condenatório, porque não demonstrado inequivocamente o dolo específico da figura típica do abandono material.

- O inadimplemento de pensão alimentar, por si só, não caracteriza o crime de abandono material. Assim sendo, o não pagamento da obrigação sem o ânimo específico de abandono familiar, egoístico, oriundo de livre e espontânea vontade, é situação jurídica que legitima a intervenção estatal na forma da jurisdição cível, e não penal. Apelo provido.

                Insta consignar que, a situação fática capaz de ensejar justa causa para as condutas descritas no tipo penal é matéria que depende de análise profunda de prova, assim, não é possível analisar a questão por meio de habeas corpus.

            Esse foi o entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal[4] e pelo Tribunal de Justiça do estado de São Paulo[5], segundo este último:

HABEAS CORPUS - ABANDONO MATERIAL - ATIPICIDADE DA CONDUTA - INOCORRÊNCIA - AÇÃO PENAL -TRANCAMENTO - DESCABIMENTO

- Conduta imputada ao paciente que, em tese, se subsume ao tipo penal do artigo 244, do Código Penal - Imputação que não se ateve ao abandono afetivo, mas descreve com clareza palmar a conduta própria do inadimplemento injustificado de prestação alimentar acordada, obrigação, aliás, fixada em Decisão judicial. Prova da ausência de capacidade econômica do réu que depende de dilação probatória incompatível com a via eleita. Alegações que demandam a produção de provas, sob o crivo do contraditório e do devido processo legal. CONSTRANGIMENTO ILEGAL -INOCORRÊNCIA - ORDEM DE HABEAS CORPUS DENEGADA.

COMPROVAÇAO DA JUSTA CAUSA: é sabido que compete à acusação provar a materialidade e autoria do fato delituoso imputado ao acusado. Porém, é ônus do acusado provar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos daqueles.

 Assim, compete ao acusado provar fato que configure justa causa para as condutas descritas no tipo penal, gerando, como consequência, a exclusão da tipicidade formal do crime em estudo, já que o elemento normativo do tipo “sem justa causa” não estará presente.

            Esse também é o entendimento do doutrinador Julio Fabbrini Mirabette[6]:

O art. 244 é tipo anormal, que exige para sua configuração a ausência de justa causa para o abandono. A obrigação de prover a subsistência dos dependentes está implícita nos deveres de estado, cumprindo ao réu provar o fato que configura a justa causa excludente da tipicidade. (...) Não exclui o crime, porém, eventual desemprego ou dificuldade econômica passageira, máxime quando o omitente constitui e sustenta nova família, passa a viver em união estável ou mantém amásia.  

            Sobre o tema, o Tribunal de Justiça do estado de Minas Gerais[7] já se manifestou:

EMENTA: PENAL - ABANDONO MATERIAL - AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS - SUPOSTA DIFICULDADE ECONÔMICA ENFRENTADA PELO APELANTE - PROVA QUE A ELE INCUMBE - AUSÊNCIA DE ELEMENTOS DE CONVICÇÃO - RECURSO IMPROVIDO. Incumbe ao réu o ônus de comprovar a ocorrência de justa causa para o não-cumprimento de obrigação alimentícia, diante da impossibilidade de realização, pela acusação, de prova negativa. Recurso a que se nega provimento.

TIPO MISTO ALTERNATIVO E CUMULATIVO: as duas primeiras condutas previstas no caput são alternativas (relacionadas à subsistência), logo, praticadas em um mesmo contexto fático implicam a prática de um só delito. Já a terceira conduta (relacionada com a prestação de socorro), é autônoma, portanto, se praticada juntamente com uma das anteriores provocará dupla punição (concurso material de crimes).

OBJETO JURÍDICO: é a proteção dispensada pelo Estado à família.

OBJETO MATERIAL: pode ser a renda, a pensão ou outro auxílio.

SUJEITO ATIVO DA CONDUTA PREVISTA NO CAPUT: na primeira e segunda figura os sujeitos ativos podem ser os pais, descendentes, cônjuge ou o devedor da pensão. Na terceira figura podem ser os ascendentes ou descendentes.

SUJEITO ATIVO DA CONDUTA PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO: é o devedor de alimentos.

SUJEITO PASSIVO DA CONDUTA PREVISTA NO CAPUT: na primeira e segunda figura típica são o cônjuge, os pais, os descendentes ou o credor dos alimentos. Na terceira figura podem ser os descendentes ou ascendentes. Secundariamente é o Estado (interessado na proteção da família).

SUJEITO PASSIVO DA CONDUTA PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO: é o credor dos alimentos e, secundariamente, o Estado.

Para Guilherme de Souza Nucci[8] não é possível entender como sujeito passivo a(o) companheira(o) ou concubina , ainda que se dê, atualmente, proteção à união estável.

Contudo, o Tribunal de Justiça do estado de Santa Catarina[9], em recente decisão, estendeu à ex-companheira a qualidade de sujeito passivo do tipo penal em estudo, senão vejamos:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE ABANDONO MATERIAL. CONDENAÇÃO. RECURSO DEFENSIVO ALEGANDO, EM PRELIMINAR, A NULIDADE DA SENTENÇA POR VÍCIO DE EXTRA PETITA. MÉRITO VISANDO À ABSOLVIÇÃO POR FALTA DE DOLO NA CONDUTA DO RÉU E ESTAR A ACUSAÇÃO EMBASADA, APENAS, EM PROCESSO DE EXECUÇÃO DE PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA, O QUAL FOI EXTINTO POR SENTENÇA SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. PRELIMINAR DE NULIDADE RECHAÇADA. ABSOLVIÇÃO INVIÁVEL. PROVA CONTUNDENTE DE TER O RÉU ABANDONADO SUA EX-COMPANHEIRA NÃO LHE PRESTANDO QUALQUER MEIO DE SUBSISTÊNCIA, ALIADO AO FATO DE DESCUMPRIR ORDEM JUDICIAL DE PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA. CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO

CONSUMAÇÃO: o crime se consuma com a recusa do agente em prover os meios necessários à subsistência da vítima, ou quando falta ao pagamento de pensão, ou quando deixa de prestar socorro.

A tentativa é inadmissível, pois conforme a lição de Rogério Sanches Cunha[10], trata-se de um delito omissivo próprio.

A jurisprudência e a doutrina majoritária entendem que o crime de abandono material é de natureza permanente[11], já que a consumação se prolonga no tempo enquanto o agente se comporta consoante os núcleos do tipo.

Contudo, insta consignar que há corrente minoritária segundo a qual, no caso acima, haveria crime continuado, pois a conduta reiterada configuraria a continuidade delitiva e não hipótese de permanência.

O entendimento majoritário foi o adotado pelo Tribunal de Justiça do estado do Espírito Santo[12], bem como pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul[13] e, ainda, pelo Tribunal de Justiça do estado do Paraná[14], segundo este último:

Não caracteriza a continuidade delitiva o fato de o delito de abandono material ter sido praticado por mais de dois anos porquanto se trata de crime permanente, ou seja, a consumação perdura no tempo enquanto subsistir a conduta omissiva. Não há crime continuado em razão da pluralidade de vítimas do delito de abandono material porque há ofensa a um único bem jurídico, uma vez que a norma do art. 244, do Código Penal, tutela o "organismo familiar".

ASSISTÊNCIA PRESTADA POR TERCEIROS: caso ocorra o cumprimento da obrigação alimentícia ou a prestação de socorro por amigos ou parentes, não há um consenso doutrinário ou jurisprudencial sobre a configuração do tipo em análise.

No entendimento de Guilherme de Souza Nucci[15], para que o crime em questão ocorra, é necessário que a vítima fique ao desemparo, logo, caso haja a assistência de familiar ou amigos, o crime não estará configurado.

Em sentido contrário, foi a posição adotada pelo extinto TACRSP[16], vejamos:

Não se livra o réu pelo fato de terceiros evitarem que os seus filhos passem fome.

Igualmente o pai que não pensiona os filhos, ainda que se tenha constatado o encargo supletivo da mãe.

Porém, o mesmo órgão julgador entendeu pela não configuração do crime quando a obrigação for cumprida por um coobrigado[17]:

Se a obrigação de prover cabe a mais de uma pessoa, a suficiente assistência prestada por alguma delas supre a obrigação das demais.

PAGAMENTO POSTERIOR DA PENSÃO ALIMENTÍCIA: não descaracteriza o crime, pois já estará consumado, mas a depender das circunstâncias pode levar à redução da pena, conforme preceitua a alínea “b” do inciso III do artigo 65 do Código Penal[18].

CUMPRIMENTO PARCIAL DA PENSÃO ALIMENTÍCIA: para que o descumprimento parcial da pensão configure o crime em análise, é necessário que, além de estarem presentes todas as elementares do tipo ora estudadas, o descumprimento seja substancial, a ponto de desamparar o sujeito passivo, ou seja, deve configurar verdadeira hipótese de abandono, o que somente pode se visualizar na análise do caso concreto.

            Sobre o tema, cumpre transcrever entendimento do TACRIM-SP[19]:

A falta temporária de pagamento de pensão alimentícia, quando parcial, e não atingindo a efetiva necessidade da vítima, limitada a restrição decorrente do voluptuário, não configura o crime do art. 244 do CP.

            Esse entendimento corrobora com a nova visão do Direito Penal baseada nos princípios da ofensividade e subsidiariedade, pois nesses casos não haveria efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma penal.

            O tema já foi enfrentado pelo Tribunal de Justiça do estado de Minas Gerais[20]:

'HABEAS CORPUS' - ABANDONO MATERIAL - PAGAMENTO PARCIAL DA PENSÃO ALIMENTÍCIA - TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL - POSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA AFERIDA DE PLANO - FATO ATÍPICO - AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO DE DESAMPARO - SITUAÇÃO RESOLVIDA NO ÂMBITO CÍVEL - ORDEM CONCEDIDA. O pagamento parcial de pensão alimentícia não significa, obrigatoriamente, o abandono material dos menores alimentandos'. 'Inexistindo, 'primus ictus oculi', prova efetiva do dolo ou da vontade livre e determinada do alimentante de não prover a subsistência de seus dependentes, a conduta imputada é evidentemente atípica, não caracterizando o crime previsto no art. 244 do CP'. 'Assim, não há justa causa para a ação penal, até porque o problema já se encontra solucionado na esfera cível, devendo ela, portanto, ser trancada.

EXISTÊNCIA DE PRISÃO CIVIL: a natureza da prisão civil é distinta da prisão penal, assim, caso o devedor esteja preso civilmente, não haverá a exclusão de sua responsabilidade penal.

 

BIBLIOGRAFIA

CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: parte especial. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

 


Notas:

 

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 881.

[2] TJSP - Apelação: APL 990081899205 SP -16ª Câmara de Direito Criminal. Rel. Desembargador Newton Neves. D.J 13.04.2010.

[3] TJRS - Apelação Crime 70029265840 - 8ª Câmara Criminal. Rel. Desembargador Dálvio Leite Dias Teixeira. D.J 09.06.2010.

[4] TJDF - HC 97781820068070000 DF – 1ª Turma Criminal. Rel. Desembargador Mário Machado. D.J 14.09.2006

[5] TJSP - HC 916375220118260000 SP - 15ª Câmara de Direito Criminal. Rel. Desembargador Amado de Faria. D.J. 28.07.2011.

[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999, p. 1417.

[7] TJMG - Apelação 1.0132.05.000557-9/001 – 5ª Câmara Criminal. Rel. Desembargador Hélcio Valentim. D.J. 22/09/2007.

[8] Op. cit., p. 882.

[9] TJSC - ACR 409471 SC 2006.040947-1 – 3ª Câmara Criminal. Rel. Desembargador Roberto Lucas Pacheco. D.J 28.04.2009. 

[10] CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: parte especial. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 299. 

[11] Nesse sentido, temos a doutrina de Guilherme de Souza Nucci (op. cit., p. 883) e Rogério Sanches Cunha (op. cit., p. 299).

[12] TJES - APR 31070006361 ES 31070006361 – 1ª Câmara Criminal. Rel. Desembargador Sérgio Bizzotto Pessoa Mendonça. D.J 08.10.2008.

[13] TJRS – APELAÇÃO 70035209378 – 8ª Câmara Criminal. Rel. Desembargadora Fabianne Breton Baisch. D.J. 29.06.2011.

[14] TJPR - ACR 6784238 PR 0678423-8 – 3ª Câmara Criminal. Rel. Desembargador Rogério Kanayama. D.J 14.10.2010.

[15] Op. cit., p. 882.

[16]   TACrSP, Julgados 87/386, 78/368 e TACrSP, Ap. 904.899-6, j. 8.5.95, inBol. AASP n° 1.956.

[17] TACrSP, Julgados 85/302, 93/58.

[18] Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena:

III - ter o agente:

b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano;

[19] TACRIM-SP – AC – Rel. Ricardo Andreucci – JUTACRIM 86/306.

[20] TJMG - HABEAS CORPUS 1.0000.08.480628-0/000 – 1ª Câmara Criminal. Rel Desembargador Eduardo Brum. D.J 16.09.2008.