A Abordagem da Teoria do Estado nos Cursos Jurídicos


Porwilliammoura- Postado em 12 junho 2012

Autores: 
MATOS, Nelson Juliano Cardoso

A Abordagem da Teoria do Estado nos Cursos Jurídicos

brasileiros, persiste uma ambigüidade a respeito da abordagem adequada a ser aplicada para a disciplina Teoria do Estado. Em passado recente, seguindo as diretrizes curriculares da década de 1970, a Teoria Geral do Estado não passava de uma introdução ao direito público ou ao direito constitucional, naquele contexto servia apenas para apresentar o instrumental conceitual para as disciplinas dogmáticas. As diretrizes curriculares da década de 1980, visando reduzir a hegemonia dogmática nos cursos de direito, considera obrigatória a disciplina “Ciência Política (com Teoria do Estado)”, enfatizando o caráter não dogmático e crítico da disciplina. As novas diretrizes curriculares para o curso de direito não fazem referência à Teoria do Estado, considerando obrigatório apenas o conteúdo de “Ciência Política”. Toda a confusão é decorrente de duas premissas alternativas que podem ser consideradas falsas; a primeira considera a Teoria do Estado uma disciplina do Direito Constitucional (ou uma disciplina auxiliar ao Direito Constitucional) e a segunda premissa considera a Teoria do Estado uma disciplina da Ciência Política; a Teoria do Estado, entretanto, não se ajusta nem a uma nem a outra disciplina; ou seja, trata de objeto diverso e usa método distinto do Direito Constitucional e da Ciência Política. A ambigüidade se agrava com o uso de expressões distintas para reproduzirem idéias semelhantes: Teoria do Estado, Teoria Geral do Estado, Doutrina Geral do Estado, Ciência Política, Direito Político etc.

A Teoria do Estado é uma “ciência” relativamente nova, ainda que os estudos a respeito do Estado remontem à Antiguidade ; o Estado (ou as formas de sociedades políticas que o antecederam) sempre foi objeto de estudo rigoroso (e mesmo científico em uma acepção ampla): a República de Platão e a Política de Aristóteles são manuais sobre a política, sobre a polis (um predecessor do Estado moderno); mas a idéia da organização de uma ciência especificamente para estudar o Estado surgiu apenas no final do século XIX e somente em meados do século XX consolidou-se como ciência . Jellinek registrou que, já no final do século XVIII, Schlözer fazia a primeira referência a uma Teoria Geral do Estado (TGE) ; que só foi consolidada pelo próprio Jellinek na sua Allgemeine Staatshehre de 1900 , cuja exata tradução significa Teoria ou Doutrina Geral do Estado ; foi a influência germânica que universalizou esta expressão. Para José Ribas Vieira, a TGE surgiu na Alemanha para (a) justificar a existência do Estado e (b) reforçar uma idéia de neutralidade e de interesse geral do Estado; o autor concluiu que o Estado “apresenta na sua fundamentação teórica uma formação autoritária” .

Ainda hoje, no entanto, críticos da TGE negam sua autonomia científica. Distinguimos três grupos de críticos: a) o primeiro grupo simplesmente nega que o Estado, dada a sua complexidade, possa ser objeto de uma única ciência; b) o segundo grupo, reconhece a autonomia meramente didática da TGE, incluindo-a como disciplina de outra ciência; e c) o terceiro grupo defende que a TGE tem o mesmo objeto e método de outra ciência já constituída, portanto, confundindo-se com ela.

Hans Kelsen , para quem o direito e o Estado são "duas faces da mesma moeda", estuda a TGE como uma disciplina jurídica; Hermann Heller trata a TGE como uma disciplina sociológica; no Brasil, Sahid Maluf considera a TGE como parte do Direito Constitucional e sua estrutura teórica; já Paulo Bonavides prefere denominar seu manual de TGE de Ciência Política. O debate sobre a autonomia científica da TGE chegou mesmo a ser normatizada pelo direito, em recente portaria do Ministério da Educação , regulamentando os cursos jurídicos no Brasil, é considerada obrigatória a TGE nos currículos dos cursos de direito, mas como conteúdo da Ciência Política, não como disciplina jurídica ou como ciência autônoma. No art. 1º da Resolução CFE n. 03/72, de 25 de fevereiro de 1972, previa-se a Teoria do Estado (juntamente com Sistema Constitucional Brasileiro) como conteúdo da matéria Direito Constitucional; no art. 6º da Portaria n. 1886, de 30 de dezembro de 1994, previa-se a Teoria do Estado como conteúdo da Ciência Política; Paulo Luiz Neto Lobo procurou justificar o deslocamento da Teoria do Estado do Direito Constitucional para a Ciência Política:

Com a Ciência Política pretende-se ir mais longe que o estudo clássico da Teoria do Estado, embora este continue. Interessa ao estudante de Direito que amplie sua compreensão aos fenômenos e estruturas políticas, à teoria do poder (e não apenas do poder político formal), à deontologia política) .

Neste sentido é a posição de José Ribas Vieira:

Os cursos de Direito em nosso país mantiveram essa disciplina de TGE até 1973. Nesse ano, entra em vigor a reforma curricular e a TGE desaparece. Ela passa a ser incluída na disciplina de Direito Constitucional I. (...) A Portaria MEC nº 1886/94 (...) introduz a Teoria do Estado (não a clássica Teoria Geral do Estado de origem alemã). Essa disciplina terá de ser lecionado separadamente ou vinculada à Ciência Política, devendo compreender o Estado dentro de um perfil necessariamente interdisciplinar, independentemente de seu formato de disciplina

A crise do ensino do Direito era percebida como crise epistemológica, com um processo de isolacionismo pernicioso do direito; a proposta de proporcionar uma formação humanística que pudesse dotar o estudante de uma compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico acarretou no “resgate” de algumas disciplinas que tinham sido deixadas fora do currículo obrigatório da Resolução 03/72. Até mesmo a introdução da TGE nos currículos jurídicos, em 1940, foi obra de interferência governamental, através do Decreto-lei n. 2.639. A fim de obter uma interpretação favorável à Constituição do Estado Novo nos cursos de direito, o referido decreto-lei desdobrou a antiga disciplina Direito Público Constitucional em duas - Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional, os antigos mestres da disciplina extinta foram transferidos para a cátedra de TGE, ficando livres para nomeação presidencial as novas vagas de professor de Direito Constitucional para as faculdades federais.

Jellinek foi um dos primeiros autores a demonstrar que a TGE não pode constituir uma disciplina subordinada a nenhuma ciência; o jurista alemão identificou que o Estado é um objeto complexo e que, portanto, seu estudo requer uma abordagem interdisciplinar; os dois ângulos do estudo da TGE para Jellinek são o direito e a sociologia.

Em 1925, Hans Kelsen publicou o seu Compêndio de Teoria Geral do Estado, onde pretendeu purificar a TGE de qualquer elemento não jurídico, inclusive da sociologia. Negar, portanto, a autonomia científica à TGE, significava para Kelsen proceder a redução sistemática do Estado ao direito ; a TGE para o jurista austríaco consistia no estudo da organização constitucional do Estado moderno mediante uma tipificação lograda por generalizações empíricas e relativa dos rasgos comuns aos ordenamentos jurídicos dos Estados modernos particulares à civilização ocidental.

Logo depois de Kelsen, o sociólogo alemão Hermann Heller publicou sua Teoria do Estado, onde destacou apenas os elementos sociológicos. Para Heller, a teoria do estado se propõe a investigar a específica realidade da vida estatal que nos rodeia; pretende compreender o Estado na sua estrutura e função atuais, seu processo histórico e as tendências de sua evolução.

Coube ao italiano Alessandro Gropalli, na sua Doutrina do Estado, publicada em 1939, consolidar as bases da TGE como uma ciência autônoma, com objeto complexo e método sintético. Gripalli retomou a idéia de Jellinek de que o Estado exige o estudo por várias abordagens, mas acrescentou aos dois aspectos ressaltados pelo jurista alemão - o direito e a sociologia - o aspecto político (entenda-se, nos termos mais atuais, filosofia política).

Para Gropalli, a Teoria Geral do Estado (ou Doutrina do Estado como prefere): "não constitui uma simples coordenação formal ou justaposição de conceitos gerais, mas ao contrário, uma ciência autônoma, desde que exprime em uma síntese superior, a unidade de ciências sociais, jurídicas e políticas especiais". Gropalli divide a TGE em três disciplinas didáticas: a) a teoria sociológica do Estado (que estuda a gênese e evolução do Estado), b) a teoria jurídica do Estado (que estuda organização e personificação do Estado), e c) a teoria significativa do Estado (que estuda os fundamentos e os fins do Estado) . A rigor, a teoria das formas de governo está inserida na teoria jurídica do Estado, mas a natureza da TGE faz com que estas três disciplinas sejam interdependentes, influenciando-se mutuamente. Para Gropalli, nenhuma outra ciência poderá estudar o Estado de maneira satisfatória, é a própria visão unilateral de um objeto que é por sua natureza complexo, só a TGE pode estudar o Estado de "maneira integral e unitária".

No Brasil, o respeitado trabalho do Prof. Lourival Vilanova confirma a autonomia científica da TGE, mas retoma a visão dualista de Jellinek: “a dualidade que encontramos no fato do Estado é a dualidade de todo objeto cultural”. Vilanova ainda mantém a preocupação de Jellinek e de Kelsen do rigor científico, a começar pela delimitação do objeto e do método; também segue os dois juristas germânicos na idéia de eliminar os postulados filosófico-políticos da ciência, afastando a terceira teoria de Gropalli, que tem um claro apego filosófico.

Parece pertinente considerar a Teoria Geral do Estado como uma ciência autônoma porque possui objeto e métodos próprios e adequados para o estudo do fenômeno estatal, mas sem seguir completamente a orientação do mestre pernambucano. As três disciplinas da TGE de Gropalli parecem mais adequadas para o estudo do Estado, Giovanni Sartori e Norberto Bobbio, tratando da política no sentido amplo e não somente da política estatal, reforçam a necessidade de inserir na análise científica também a abordagem prescritiva (ou normativa como muitos preferem, embora tenhamos reservado esta expressão para indicar o dever-ser jurídico e não para o dever-ser teleológico ou axiológico).

Assim, parece apropriado reservar a expressão “ciência política”, em um sentido restrito, como fez Pinto Ferreira, para indicar a parte da TGE que estuda apenas os fins do Estado e a arte de alcançar esses fins, e em uma acepção ampla para abranger não só o Estado, mas outras dimensões políticas.

Os assuntos do Estado, portanto, serão observados por três ângulos diferentes e simultâneos, o ângulo jurídico, o ângulo sociológico e o ângulo filosófico (nos referimos à filosofia política).

O método está intimamente relacionado com o objeto escolhido e com o fim perseguido. A TGE como uma ciência ao mesmo tempo social, jurídica e filosófica (cada uma delas utilizando métodos diferentes) deve ter uma metodologia compatível e adequada com sua natureza complexa. Gropalli relaciona três métodos integrados com as três disciplinas da TGE: a) o método indutivo (da análise de fatos particulares eleva-se à determinadas leis gerais, mediante observação, comparação e abstração), b) o método dedutivo (que parte da premissa geral e extrai, por silogismo, as conseqüências particulares), e c) o método analógico (que vai do particular ao particular - o que há em comum). Para Carlos Fayt, os aspectos sociológico, jurídico e político da vida do Estado devem ser investigados pelos métodos próprios a cada um deles - a) sociológico (métodos da história e da sociologia), b) jurídico (método jurídico) e c) político (método de compreensão, análise e síntese). Deve-se lembrar ainda que a TGE não é uma disciplina enciclopédica, apenas catalogando informações das suas três disciplinas, cada uma aplicando o seu método, deve haver uma associação permanente de métodos, buscando uma síntese das três abordagens.

Toda a argumentação tradicional em defesa da autonomia científica da Teoria do Estado serve, pelo menos, para demonstrar a necessidade da autonomia didática da disciplina, pois o seu conteúdo e a sua abordagem são distintos da Ciência Política e do Direito Constitucional.

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