Adoção à brasileira x filiação biológica: posição do STJ


Porrayanesantos- Postado em 21 junho 2013

Autores: 
SILVA, Marllisson Andrade

I – INTRODUÇÃO

A Lei nº 8.069/90, como legislação que regulamenta a proteção integral das crianças e dos adolescentes, privilegia a permanência desses menores em sua família natural, que pode ser definida pela comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes, conforme definição do artigo 25 da citada Lei.

O Estatuto também define, no parágrafo único do seu artigo 25, incluído pela Lei nº 12.010/2009, o que vem a ser a família extensa ou ampliada, com a seguinte definição: “entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximo com os quais a criança e o adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade”.

Assim, constata-se que o objetivo do Estatuto da Criança e do Adolescente é a permanência do jovem no seio familiar formado por vínculo sanguíneo.

Todavia, nas hipóteses em que não há a possibilidade dos menores conviverem com suas famílias naturais ou extensas, há a possibilidade de colocação dos mesmos em família substituta, o que pode ser feito através da guarda, tutela ou adoção.

Dentre as três hipóteses de colocação em família substituta, a adoção se revela como medida mais drástica, por se tratar de um ato jurídico em sentido estrito e de natureza irrevogável, que possui o condão de extinguir o vínculo do adotando com a sua família biológica, subsistindo apenas os impedimentos matrimoniais (ECA, artigo 41).

Mas para que esta hipótese de colocação em família substituta se concretize, há todo um procedimento a ser percorrido pelos sujeitos que se dispõem a receber como seus os jovens que estão em condições de serem adotados, tendo início com um cadastro perante o Juízo da Infância e Juventude situado no âmbito da Comarca dos postulantes.

A partir de então, realizados os procedimentos iniciais, é necessária a propositura de uma ação judicial de adoção, na qual o Poder Judiciário irá averiguar se aqueles interessados estão aptos a adotar e, assim, após todo um acompanhamento deferir o requerimento através de sentença judicial.

Ocorre que, muitas pessoas, por desconhecimento ou até mesmo com o desiderato de não quererem esperar nas filas de adoção, após tratativas com os pais biológicos, que, em regra, não possuem condições financeiras para criarem os seus filhos, acabam simplesmente por registrar esses menores como se filhos seus fossem, em total burla ao ordenamento jurídico, dando ensejo, assim, ao que popularmente se chama de adoção à brasileira, instituto objeto do presente estudo.

II – ADOÇÃO À BRASILEIRA

A adoção à brasileira pode ser definida como a situação em que uma pessoa maior e capaz registra como seu filho de outrem sem a observância do devido processo legal.

Apesar de não se revestir de uma modalidade legítima de adoção, o entendimento adotado pela jurisprudência é pela manutenção do registro e irrevogabilidade do ato, por privilegiar, na hipótese, os laços de afeto e amor que se firmam entre os sujeitos envolvidos.

Neste sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, a saber:

Direito civil. Família. Recurso Especial. Ação de anulação de registro de nascimento. Ausência de vício de consentimento. Maternidade socioafetiva. Situação consolidada.Preponderância da preservação da estabilidade familiar.

- A peculiaridade da lide centra-se no pleito formulado por uma irmã em face da outra, por meio do qual se busca anular o assento de nascimento. Para isso, fundamenta seu pedido em alegação de falsidade ideológica perpetrada pela falecida mãe que, nos termos em que foram descritos os fatos no acórdão recorrido considerada a sua imutabilidade nesta via recursal, registrou filha recém-nascida de outrem como sua.

- A par de eventual sofisma na interpretação conferida pelo TJ/SP acerca do disposto no art. 348 do CC/16, em que tanto a falsidade quanto o erro do registro são suficientes para permitir ao investigante vindicar estado contrário ao que resulta do assento de nascimento, subjaz, do cenário fático descrito no acórdão impugnado, a ausência de qualquer vício de consentimento na livre vontade manifestada pela mãe que, mesmo ciente de que a menor não era a ela ligada por vínculo de sangue, reconheceu-a como filha, em decorrência dos laços de afeto que as uniram. Com o foco nessa premissa a da existência da socioafetividade, é que a lide deve ser solucionada.

- Vê-se no acórdão recorrido que houve o reconhecimento espontâneo da maternidade, cuja anulação do assento de nascimento da criança somente poderia ocorrer com a presença de prova robusta de que a mãe teria sido induzida a erro, no sentido de desconhecer a origem genética da criança, ou, então, valendo-se de conduta reprovável e mediante má-fé, declarar como verdadeiro vínculo familiar inexistente. Inexiste meio de desfazer um ato levado a efeito com perfeita demonstração da vontade daquela que um dia declarou perante a sociedade, em ato solene e de reconhecimento público, ser mãe da criança, valendo-se, para tanto, da verdade socialmente construída com base no afeto, demonstrando, dessa forma, a efetiva existência de vínculo familiar.

- O descompasso do registro de nascimento com a realidade biológica, em razão de conduta que desconsidera o aspecto genético, somente pode ser vindicado por aquele que teve sua filiação falsamente atribuída e os efeitos daí decorrentes apenas podem se operar contra aquele que realizou o ato de reconhecimento familiar, sondando-se, sobretudo, em sua plenitude, a manifestação volitiva, a fim de aferir a existência de vínculo socioafetivo de filiação. Nessa hipótese, descabe imposição de sanção estatal, em consideração ao princípio do maior interesse da criança, sobre quem jamais poderá recair prejuízo derivado de ato praticado por pessoa que lhe ofereceu a segurança de ser identificada como filha.

- Some-se a esse raciocínio que, no processo julgado, a peculiaridade do fato jurídico morte impede, de qualquer forma, a sanção do Estado sobre a mãe que reconheceu a filha em razão de vínculo que não nasceu do sangue, mas do afeto.

- Nesse contexto, a filiação socioafetiva, que encontra alicerce no art. 227, § 6º, da CF/88, envolve não apenas a adoção, como também parentescos de outra origem, conforme introduzido pelo art. 1.593 do CC/02, além daqueles decorrentes da consanguinidade oriunda da ordem natural, de modo a contemplar a socioafetividade surgida como elemento de ordem cultural.

- Assim, ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a maternidade que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os demais vínculos advindos da filiação.

- Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano.

Permitir a desconstituição de reconhecimento de maternidade amparado em relação de afeto teria o condão de extirpar da criança hoje pessoa adulta, tendo em vista os 17 anos de tramitação do processo preponderante fator de construção de sua identidade e de definição de sua personalidade. E a identidade dessa pessoa, resgatada pelo afeto, não pode ficar à deriva em face das incertezas, instabilidades ou até mesmo interesses meramente patrimoniais de terceiros submersos em conflitos familiares.

- Dessa forma, tendo em mente as vicissitudes e elementos fáticos constantes do processo, na peculiar versão conferida pelo TJ/SP, em que se identificou a configuração de verdadeira adoção à brasileira, a caracterizar vínculo de filiação construído por meio da convivência e do afeto, acompanhado por tratamento materno-filial, deve ser assegurada judicialmente a perenidade da relação vivida entre mãe e filha. Configurados os elementos componentes do suporte fático da filiação socioafetiva, não se pode questionar sob o argumento da diversidade de origem genética o ato de registro de nascimento da outrora menor estribado na afetividade, tudo com base na doutrina de proteção integral à criança.

Conquanto a adoção à brasileira não se revista da validade própria daquela realizada nos moldes legais, escapando à disciplina estabelecida nos arts. 39 usque 52-D e 165 usque 170 do ECA, há de preponderar-se em hipóteses como a julgada, consideradas as especificidades de cada caso, a preservação da estabilidade familiar, em situação consolidada e amplamente reconhecida no meio social, sem identificação de vício de consentimento ou de má-fé, em que, movida pelos mais nobres sentimentos de humanidade, A. F. V. manifestou a verdadeira intenção de acolher como filha C. F. V., destinando-lhe afeto e cuidados inerentes à maternidade construída e plenamente exercida.

- A garantia de busca da verdade biológica deve ser interpretada de forma correlata às circunstâncias inerentes às investigatórias de paternidade; jamais às negatórias, sob o perigo de se subverter a ordem e a segurança que se quis conferir àquele que investiga sua real identidade.

Mantém-se o acórdão impugnado, impondo-se a irrevogabilidade do reconhecimento voluntário da maternidade, por força da ausência de vício na manifestação da vontade, ainda que procedida em descompasso com a verdade biológica. Isso porque prevalece, na hipótese, a ligação socioafetiva construída e consolidada entre mãe e filha, que tem proteção indelével conferida à personalidade humana, por meio da cláusula geral que a tutela e encontra respaldo na preservação da estabilidade familiar. Recurso especial não provido. (STJ, REsp 1000356/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/05/2010, DJe 07/06/2010) (grifou-se)

Contudo, o fato de a jurisprudência considerar o vínculo proveniente da adoção à brasileira irrevogável, não é motivo para tornar lícita a conduta do adotante, tanto que o Código Penal, em seu artigo 242, tipifica tal conduta com pena de reclusão de dois a seis anos, in verbis:

Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

Ao estudar o mencionado tipo penal, especificamente o núcleo do tipo “registrar como seu filho de outrem”, Cleber Masson assim se posiciona:

Esta conduta é conhecida como “adoção à brasileira”, em razão de tratar-se de atividade comum no território nacional, quase uma criação pátria, no mais das vezes cometidas por pessoas que buscam auxiliar amigos, parentes ou mesmo estranhos que não têm condições para cuidar do próprio filho, ou então para em conjunto criar, como se também seu filho fosse, o descendente de seu cônjuge ou companheiro. (MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Especial. Vol. 3, 3ª edição. São Paulo: Método, 2013, p. 182)

Logo, por se tratar de uma conduta ilegal e ilícita, deve ser evitada, tendo em vista a vasta e numerosa quantidade de menores que estão em orfanatos na expectativa de vir a ter uma família, cuja formação se dará por meio de um processo legítimo de adoção.

III – DIREITO À ORIGEM BIOLÓGICA

Em que pese a adoção se tratar de um ato irrevogável, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 48, assegura o direito do adotado, inclusive o menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido e assegurada assistência jurídica e psicológica, vir a conhecer a sua origem biológica, como também obter acesso irrestrito ao processo em que a medida foi aplicada.

Para facilitar a compreensão do tema, afigura-se oportuna a transcrição integral do citado dispositivo:

Art. 48.  O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.

Parágrafo único.  O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica.

Esta previsão inovadora, tomando por base o princípio da dignidade da pessoa humana, já encontrava respaldo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que antes mesmo da alteração de tal dispositivo pela Lei nº 12.010/2009, já assegurava tal direito por entender que o estado de filiação é um direito imprescritível e indisponível, com fulcro no artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, consoante se extrai do aresto a seguir transcrito:

RECURSO ESPECIAL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. ALIMENTOS. FILHO ADOTIVO. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. AFASTAMENTO. 1. A "possibilidade jurídica do pedido consiste na admissibilidade em abstrato da tutela pretendida, vale dizer, na ausência de vedação explícita no ordenamento jurídico para a concessão do provimento jurisdicional" (REsp 254.417/MG, DJ de 02.02.2009). 2. Consoante o comando inserto no art. 27 do ECA, o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, mesmo em se tratando, como na espécie, de autor adotado por parentes. 3. As disposições constantes dos arts. 41 e 48 do ECA - relativas à irrevogabilidade da adoção e ao desligamento do adotado de qualquer vínculo com pais e parentes - não podem determinar restrição ao mencionado direito de reconhecimento de estado de filiação. Precedentes. 4. Impossibilidade jurídica do pedido afastada. Retorno dos autos à primeira instância. 5. Recurso especial conhecido em parte e, nesta extensão, provido. (STJ, REsp 220623/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 03/09/2009, DJe 21/09/2009) (grifou-se)

IV – ADOÇÃO À BRASILEIRA x FILIAÇÃO BIOLÓGICA

Consoante consignado no decorrer do presente estudo, a adoção se constitui em um ato jurídico em sentido estrito e de natureza irrevogável e que não faz restabelecer o vínculo do adotado com sua família biológica nem mesmo na hipótese em que houver o falecimento dos adotantes.

Do mesmo modo, apesar de tais características, é perfeitamente possível que o adotado possa querer saber sua origem biológica, por se tratar de um direito fundamental do indivíduo e que encontra fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana.

Com efeito, em se tratando de uma adoção legal, que passou pelo crivo do Poder Judiciário e respeitou o princípio do devido processo legal, o fato de ser assegurado ao interessado o direito de conhecer sua origem biológica não é fator suficiente para descaracterizar o vínculo firmado com os pais adotivos, que se mantém intacto e perpétuo.

Todavia, em se tratando de adoção à brasileira, caso o filho “adotado” manifeste o interesse em vir a conhecer seus pais biológicos e, posteriormente, expresse o interesse de anular o seu registro para fazer nele constar os nomes dos seus verdadeiros pais, há a possibilidade de se desfazer o vínculo adotivo, já que a adoção à brasileira não tem a aptidão de romper os vínculos civis entre o filho e os pais biológicos.

Este é o entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça que em inédito julgado, noticiado no Informativo nº 512, assim decidiu, in litteris:

DIREITO CIVIL. RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA REQUERIDA PELO FILHO. ADOÇÃO À BRASILEIRA.

É possível o reconhecimento da paternidade biológica e a anulação do registro de nascimento na hipótese em que pleiteados pelo filho adotado conforme prática conhecida como “adoção à brasileira”. A paternidade biológica traz em si responsabilidades que lhe são intrínsecas e que, somente em situações excepcionais, previstas em lei, podem ser afastadas. O direito da pessoa ao reconhecimento de sua ancestralidade e origem genética insere-se nos atributos da própria personalidade. A prática conhecida como “adoção à brasileira”, ao contrário da adoção legal, não tem a aptidão de romper os vínculos civis entre o filho e os pais biológicos, que devem ser restabelecidos sempre que o filho manifestar o seu desejo de desfazer o liame jurídico advindo do registro ilegalmente levado a efeito, restaurando-se, por conseguinte, todos os consectários legais da paternidade biológica, como os registrais, os patrimoniais e os hereditários.Dessa forma, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos do filho resultantes da filiação biológica, não podendo, nesse sentido, haver equiparação entre a “adoção à brasileira” e a adoção regular. Ademais, embora a “adoção à brasileira”, muitas vezes, não denote torpeza de quem a pratica, pode ela ser instrumental de diversos ilícitos, como os relacionados ao tráfico internacional de crianças, além de poder não refletir o melhor interesse do menor. Precedente citado: REsp 833.712-RS, DJ 4/6/2007. REsp 1.167.993-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 18/12/2012. (grifou-se)

V – CONCLUSÃO

Assim, através do que foi exposto, pode-se concluir que, a partir desse inédito e atual julgado, a tendência do Superior Tribunal de Justiça que, em outros tempos, manifestava o entendimento de que a adoção à brasileira não se desfazia em razão da filiação socioafetiva, é de que a vinculação biológica deve prevalecer, com todos os seus consectários legais, quando não for observado na adoção o devido processo legal e os requisitos exigidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

VI – REFERÊNCIAS

JUSTIÇA, Superior Tribunal. Disponível em: http://www.stj.jus.br Acesso em: 11 de junho de 2013.

Lei nº 8.069/90. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: www.planalto.gov.br Acesso em 11 de junho de 2013.

MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Parte Especial. Vol. 3, 3ª Ed. São Paulo: Método, 2013.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 2ª Ed. São Paulo: Método, 2012.

 

 

 

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