Análise dos capítulos II e III do livro O conceito de Direito de Herbert Hart


Porwilliammoura- Postado em 12 junho 2012

Autores: 
REBELO, Maria de Nazaré de Oliveira

Análise dos capítulos II e III do livro O conceito de Direito de Herbert Hart

Capítulo II: Leis, comandos e ordens

1. Variedades de imperativos:

A tentativa mais clara e completa para compor a análise do conceito de direito foi elaborada por Austin na sua obra Province of Jurisprudence Determined. Na obra O conceito de direito, capítulos II, III e IV, será exposta a mesma doutrina de Austin, com algumas críticas e pontos divergentes.

Na sociedade existem formas diversas de exprimir desejo e de exprimir que algo é proibido. Tais formas são aplicadas de acordo com a situação social em que se encontra o indivíduo ou depende da vontade humana naquele momento e contexto. Pode ser expresso um desejo, uma ordem, um aviso. Coma, brinque, não mate, são formas de expressar desejo a alguém para que aquela pessoa se submeta a tal desejo. A essa expressão de vontade, chamamos de imperativo.

Em diversas situações sociais do cotidiano nos dirigimos a alguém com esse tom de imperatividade, mas não necessariamente poderá ser interpretado como um comando, mas como um pedido, por exemplo, “passe-me o sal, por favor”, como um aviso, “não se mexa!”, pode ser que haja alguma cobra por perto e esse aviso é para evitar um mal maior, ou ainda, “não me mate”, quando a pessoa está sob ameaça de alguém, dá um tom de imploração.

Quando se emite uma ordem, não necessariamente é um mal ou ameaça, mas também pode exprimir um comando. São formas diferentes de imperativo. Comandar é exercer uma superioridade hierárquica sobre outrem, mas não quer dizer que seja um comando para fazer algo ruim. Comando é um apelo para que uma ordem seja obedecida e que respeitada a autoridade de alguém, ou seja, para observar normas hierárquicas.

Tais distinções feitas entre as diversas formas de expressão do ser humano são “grosseiras”.

Hart apresenta o exemplo de um assaltante de banco para exprimir a idéia dessas formas de expressão humana. Lança mão desse artifício para melhor demonstrar o aspecto distintivo que nos leva a falar em ordem do assaltante, ao invés de um simples pedido ou imploração, pois quando o assaltante diz ao bancário para passar o dinheiro, não está fazendo um pedido, mas dando uma ordem, apesar de não ser o superior hierárquico do empregado, porém naquele momento assume ares de superior, visto que por meio da força está submetendo sua vítima às suas vontades. Assim, no caso em tela, utilizam-se as expressões “ordens baseadas em ameaças” e “ordens coercitivas” quando há anuência do empregado ao entregar o dinheiro. Já no caso do empregado, podem ser usadas as palavras “obediência” e “obedecer” para demonstrar a atitude da vítima em relação ao seu algoz e ao “cumprimento” das ordens impostas por ele.

“[...] Comandar é caracteristicamente exercer autoridades sobre homens, não o poder de lhes infringir um mal,e, embora possa estar ligado com ameaças de um mal, um comando é primariamente um apelo não ao medo, mas ao respeito pela autoridade” (HART, 1994, p. 25).

Claro que o comando expressa logo a idéia de autoridade e se aproxima muito mais do direito do que da ação do assaltante em relação à sua vítima, que está pautada em ameaças, apesar das ameaças se mostrarem, enganadoramente, um comando, segundo Austin (p. 25).

2. O Direito como ordens coercitivas:

O controle feito pelo direito, por meio de leis, é o controle por diretivas, que são gerais de duplo sentido.

No Estado moderno, as diversas leis que existem dão idéia de que todos os indivíduos dentro daquele espaço territorial em que foram demarcadas as fronteiras daquele Estado estão sujeitos ao império de tais leis, mas no que tange ao caso do assaltante de banco que dá ordens ao bancário para que ele lhe entregue o dinheiro são ordens que se aplicam somente àquela ocasião, ou seja, não são ordens perenes, a não ser que esse assaltante esteja ditando ordens aos seus comparsas que deverão obedecer-lhe, mas ao empregado do banco são ordens passageiras, pois finda a ação do roubo, o bancário não mais obedecerá àquelas ordens.

Porém, quando a ordem emana de leis promulgadas pelo Estado, estas são dirigidas a todos os indivíduos que estão sob o comando daquele e são ordens de cunho perene.

“Ordenar às pessoas que façam as coisas é uma forma de comunicação e efetivamente implica que nos dirijamos a elas, isto é, que atraia a atenção delas ou se tomem medidas para atrair, mas fazer leis para as pessoas não implica tal. Por isso o assaltante, através de uma só e mesma frase, “entregue-me essas notas”, exprime o seu desejo de que o empregado faça algo e efetivamente dirige-se ao empregado, isto é, pratica o que normalmente é suficiente para fazer chegar esta expressão à atenção do empregado” (HART, 1994, p. 27).

Assim, se a ordem dada pelo assaltante fosse para uma sala vazia não surtiria efeito algum. Nesse sentido, fazer leis é diferente de dar ordens, pois as leis têm caráter geral e não pessoal.

A diferença que existe entre o caso do assaltante de banco e a elaboração de leis e sua aplicação, reside no fato de que a relação que se travou entre o assaltante e o empregado foi temporária, ou seja, durante o assalto o ladrão tinha superioridade sobre o bancário, mas acabada a ação de roubo, a superioridade se esgotou. Assim, o assaltante não emite ordens permanentes ao bancário, mas somente naquela ocasião, enquanto que as leis do Estado têm a característica de permanência e abrangência para todos os cidadãos. Essa diferença é crucial para entendermos o caráter das leis e do direito.

Assim, ordenar alguém a fazer algo, implica, necessariamente, chamar atenção daquela pessoa em particular para o cumprimento de uma ordem pessoal e individual, mas ao fazer leis, o legislador não pensa nem se expressa de forma individual ou pessoal, mas de forma coletiva e nem precisa chamar atenção de alguém para que a lei seja efetiva. Essa é diferença entre elaborar uma lei e ordenar algo ao outro. Dentro desse raciocínio podemos inferir que o legisladoque aquela lei seja obedecida por todos, pois tem caráter geral.

[...] O assaltante não emite ordens permanentes para o empregado do banco (embora o possa fazer quanto ao seu bando de sequazes), as quais devam ser seguidas repetidamente por certas classes de pessoas. As leis têm, todavia, de forma proeminente, esta característica de permanência ou persistência [...]” (HART, 1994, p. 28).

Nesse sentido, o exemplo do assaltante é importante para demonstrar a diferença crucial entre ordem e lei. A ordem emanada do ladrão tem caráter temporário por ser somente válida naquele contexto específico, pois o empregado obedeceu às ordens do assaltante somente por que está sofrendo coação, do contrário não teria motivos para obedecer tal comando, já que aquela ordem não tinha cunho de obrigatoriedade, salvo estar sendo dada sob violência. Ao passo que as leis exprimem a idéia de duração.

Capítulo III: A diversidade das leis

Nem todas as leis elaboradas impõem às pessoas que façam ou não façam algo, pois existem leis que concedem aos particulares poderes para outorgarem testamentos, celebrarem contratos ou casamentos, e leis que conferem aos funcionários poderes para proferirem decisões/sentenças no caso de juízes ou a um conselho municipal para elaborar código de postura, enfim, existem leis para determinar comportamentos, mas também para conceder poderes a particulares ou funcionários.

As objeções que são referidas por Hart ao modelo de ordens coercitivas se comparadas com o direito de Estados modernos, se expressam por três grupos principais: o conteúdo das leis, outras ao modo de origem e outras tantas a campo de aplicação.

1. O conteúdo das leis

No que tange ao Direito Criminal, as regras existentes são para ser obedecidas ou desobedecidas, pois exprimem um dever. Se forem desobedecidas tais regras diz-se que um delito ou ilícito foi cometido. Assim, a função da lei criminal é a de prescrever e definir tipos de conduta que são praticadas dentro da sociedade, sendo que tais condutas deverão ser evitadas, independentemente do desejo dos indivíduos.

À lei penal sempre é associado um castigo ou uma penalidade. Nesse sentido, “em todos os aspectos, há pelo menos uma forte analogia entre o direito criminal e as suas sanções e as ordens gerais baseadas em ameaças ao nosso modelo”. (HART, 1994, p. 34).

Mas em casos diversos há um equívoco quanto a essa analogia. São casos de leis que visam regular uma função de regras social, como: celebração de casamentos, contratos, testamentos válidos e que não obrigam as pessoas a se portarem de determinada maneira quer queiram ou não. Essas leis não impõem deveres ou obrigações, mas dão aos indivíduos a faculdade de dispor de certos dispositivos para a concretização de seus desejos, conferindo-lhes poderes jurídicos legais para criar, obedecendo a certos procedimentos, estruturas de direito que irão exprimir seus desejos dentro de regras preestabelecidas pelo Direito.

Essa forma de expressão de vontades, conferindo aos indivíduos poderes para dar forma e conteúdo às suas relações jurídicas, é uma das grandes contribuições do direito para a vida em sociedade.

Tal expressão de vontades, se cumpridos todos os requisitos legais, não implicará uma sanção coercitiva como no direito criminal, pois todos os atos necessários àquele desejo foram seguidos, porém se houver o descumprimento de algum procedimento indispensável para a prática de um testamento, por exemplo, implicará na sua anulação e não em uma sanção conforme delineado no direito criminal. Mas para que o indivíduo detenha o poder de outorgar testamentos ou celebrar contrato, existem regras que determinam a capacidade ou qualificação pessoal mínima do sujeito, outras regras determinam a forma como testamentos e contratos poderão ser outorgados e celebrados, se por escrito ou oralmente e no caso de testamentos se com a presença de testemunhas. Regras também observam e delimitam a duração mínima e máxima dentro da esfera dos direitos e obrigações que cabe a cada indivíduo envolvido na relação.

Regras também existem no que tange ao poder de legislar. Assim, legislar implica em exercitar o poder jurídico operativo ou eficaz quanto a elaboração de leis que exemplificarão direitos e deveres jurídicos e a não observância das regras de conformação com as regras de capacidade faz com a lei positivada seja ineficaz, logo um ato nulo para a finalidade a que foi criado.

Algumas dessas regras se aplicam a casos específicos, como no caso de regras para a jurisdição de determinado tribunal que julgará de acordo com a especificidade da sua competência. Assim algumas regras se aplicam e especificam que poderá o objeto ser julgado; outras a qualificação ou a identidade dos membros e outras, ainda, ao modo e a forma da legislação e o procedimento a ser seguido pelo legislativo.

Nesse sentido, “a nulidade resulta do não preenchimento de uma condição essencial para o exercício do poder” (HART, 1994, p. 41).

2. O âmbito de aplicação:

No universo de leis, são as leis penais que exprimem o modelo coercitivo. A ordem que está pautada em ameaça configura o desejo de que outros ajam ou se abstenham de agir de determinada forma. Ao assumir um compromisso as pessoas que se comprometeram esperam determinadas atitudes acordadas entre elas reciprocamente. Assim, regras foram criadas para que tal compromisso seja cumprido de forma satisfatória para ambas as partes envolvidas. Nesse sentido, ao nos comprometermos com algo, adquirimos direitos, mas também obrigações com outras pessoas que esperam que sejam adimplidas, ou seja, “exercemos um poder, conferido por regras para o fazer” (HART, 1994, p. 52).

3. Os modos de origem:

O costume é um direito? O costume somente faz parte do direito se está inserido em um sistema jurídico particular, ou seja, se tal costume não faz parte daquela sociedade, não fará parte do seu sistema jurídico particular, logo não será direito. No que tange ao seu reconhecimento jurídico, este lhe é atribuído quando as cortes passam a usá-lo para proferirem decisões nele baseada.

Referência bibliográfica

HART, Herbert. O conceito de Direito. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1994.

Data de elaboração: abril/2009