A aplicabilidade da lei de improbidade administrativa aos agentes políticos


Porbarbara_montibeller- Postado em 18 abril 2012

Autores: 
GUEDES, Cássio Jorge Tristão

RESUMO

Existe entendimento de que a lei de improbidade administrativa não se aplica aos agentes políticos, uma vez que os atos de improbidade nada mais seriam do que infrações politico-administrativas, sendo que para tais atos existiria outro diploma legislativo (Lei n° 1.079/50), de modo que a sua aplicação representaria verdadeiro bis in idem. No entanto, nenhum agente público esta imune à aplicação da lei n° 8.429/92. Os atos de improbidade administrativa não se confundem com os impropriamente denominados crimes de responsabilidade, uma vez que aqueles configuram ilícitos de natureza cível, enquanto estes são infrações politico-administrativas. É possível, portanto, que pelo mesmo fato, responda o agente político por ato de improbidade administrativa e por crime de responsabilidade, não havendo que se falar em dupla punição.

Palavras chaves: A natureza jurídica dos crimes de responsabilidade e dos atos de improbidade administrativa, Aplicação conjunta das leis n° 8.429/92 e 1.079/50 aos agentes políticos: bis in idem?

ABSTRACT

There is understanding that the law of administrative misconduct does not apply to politicians, since the acts of misconduct would be nothing more than political-administrative violations, and for such acts exist another piece of legislation (Law No. 1.079/50) so that its application would represent true bis in idem. However, no public official is immune from the application of Law No. 8.429/92. Acts of administrative dishonesty should not be confused with the inaccurately called crimes of responsibility, since those illicit shape of a civil nature, while these are violations of administrative policy. It is therefore possible that the same facts, the political agent to respond by an act of improper conduct and criminal liability, there is no talk about that double punishment.

Keywords: The legal liability of the crimes and acts of administrative malfeasance, Joint Application of Laws No. 8.429/92 and 1.079/50 political agents: bis in idem?


1.     INTRODUÇÃO

É fundamental, para que o Estado de cumprimento aos seus deveres constitucionais, que os agentes públicos observem os princípios da Administração Pública, descritos no art. 37 da Constituição Federal de 1988. Com a finalidade de dar efetividade ao princípio da moralidade, foi editada a lei n° 8.429/92 servindo como eficaz instrumento de combate à corrupção pública.

Em seu art. 37, § 4°, a CF determina que os atos de improbidade administrativa importarão suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. A lei n° 8.429/92 regulamentou o comando constitucional, elencando os atos de improbidade praticados por agente público, servidor ou não, contra a administração direta ou indireta, nas três esferas de governo, ampliando o rol de medidas punitivas, acrescentando: perda dos bens e valores acrescidos ilicitamente; multa civil, proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário.

Os atos de improbidade dão classificados em três espécies: a) constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo mandato, função, emprego ou atividades nas entidades mencionadas no artigo 1° da lei (art. 9°); b) constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário, qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 2° da lei (art. 10); c) constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições (art. 11).

O sujeito passivo será aquele atingido pelo ato de improbidade administrativa (art. 1°): a) administração pública direta e indireta ou fundacional de qualquer dos poderes dos entes da federação; b) entidades para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual; c) entidades que recebem subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão publico bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se nesses casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.

Por sua vez, o sujeito ativo é aquele que pratica a conduta ímproba (art. 2°): reputa-se agente público todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no art. 1°.

Os agentes públicos podem ser classificados em: a) agentes políticos; b) servidores públicos; c) particulares em colaboração. Os agentes políticos são os responsáveis pela formação da vontade política do Estado, são eles: chefe do poder executivo e auxiliares diretos (ministros e secretário estaduais e municipais); membros do Poder Legislativo (senadores, deputados federais, estaduais e distritais e vereadores); membros da magistratura e do Ministério Público; membros dos Tribunais de Contas; diplomatas. Servidores públicos são os agentes públicos que possuem vínculos com a Administração Pública: servidores estatutário, empregados públicos, servidores temporários e militares. Particulares em colaboração são as pessoas naturais que exercem função pública, com ou sem remuneração, sem possuírem qualquer vínculo com o Estado. Classificam-se em particulares por colaboração com o Poder Público por: delegação; requisição, nomeação ou delegação; gestão de negócios.

Existe, no entanto, entendimento de que a lei de improbidade administrativa não se aplica aos agentes políticos, uma vez que os atos de improbidade nada mais seriam do que infrações politico-administrativas, sendo que para tais atos existiria outro diploma legislativo (Lei n° 1.079/50), de modo que a sua aplicação representaria verdadeiro bis in idem. O tema é extremamente divergente na doutrina e na jurisprudência.

Serão postos em confronto os mais variados entendimentos sobre o assunto, de modo a contextualizar a problemática e facilitar a compreensão da conclusão que se pretende afirmar: a lei de improbidade administrativa se aplica aos agentes políticos.

2.     REFERENCIAL TEÓRICO

 

O Supremo Tribunal Federal - STF[1], em sessão plenária, prolatou decisão na qual afirmou que o ordenamento constitucional distingue o regime de responsabilidade dos agentes políticos dos demais agentes públicos, de forma que aqueles (no caso do julgamento, Ministro de Estado), por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (art. 102, I, “c”, CF e Lei n° 1.079/50), não se submetem ao regime da lei de improbidade administrativa.[2]

Quanto ao mérito, o Tribunal, por maioria, julgou procedente a reclamação para assentar a competência do STF para julgar o feito e declarar extinto o processo em curso no juízo reclamado. Após fazer distinção entre os regimes de responsabilidade político-administrativa previstos na CF, quais sejam, o do art. 37, § 4º, regulado pela Lei 8.429/92, e o regime de crime de responsabilidade fixado no art. 102, I, c, da CF e disciplinado pela Lei 1.079/50, entendeu-se que os agentes políticos, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade, não respondem por improbidade administrativa com base na Lei 8.429/92, mas apenas por crime de responsabilidade em ação que somente pode ser proposta perante o STF nos termos do art. 102, I, c, da CF. Vencidos, quanto ao mérito, por julgarem improcedente a reclamação, os Ministros Carlos Velloso, Marco Aurélio, Celso de Mello, estes acompanhando o primeiro, Sepúlveda Pertence, que se reportava ao voto que proferira na ADI 2797/DF (DJU de 19.12.2006), e Joaquim Barbosa. O Min. Carlos Velloso, tecendo considerações sobre a necessidade de preservar-se a observância do princípio da moralidade, e afirmando que os agentes políticos respondem pelos crimes de responsabilidade tipificados nas respectivas leis especiais (CF, art. 85, parágrafo único), mas, em relação ao que não estivesse tipificado como crime de responsabilidade, e estivesse definido como ato de improbidade, deveriam responder na forma da lei própria, isto é, a Lei 8.429/92, aplicável a qualquer agente público, concluía que, na hipótese dos autos, as tipificações da Lei 8.429/92, invocadas na ação civil pública, não se enquadravam como crime de responsabilidade definido na Lei 1.079/50 e que a competência para julgar a ação seria do juízo federal de 1º grau.  Rcl 2138/DF, rel. orig. Min. Nelson Jobim, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 13.6.2007. (Rcl-2138) (sem marcação no original)

Esse entendimento foi acompanhado por parte da doutrina.

Indubitavelmente, os atos de improbidade podem gerar responsabilidade do agente público. Quando se tratar de apurar a responsabilidade administrativa (ou seja, não penal), deve ser ter o cuidado de verificar a categoria a que pertence o agente público, já que, sendo agente público, as sanções a serem impostas são de natureza político-administrativa, podendo ser encontradas nas leis n° 1.079/50 e 7.106/83, ou no decreto-lei n° 201/67, a depender das funções desempenhadas pelo agente.

Os agentes políticos, precisamente porque não sujeitos a qualquer hierarquia e ainda porque contam com regime jurídico especial, afastam-se do sistema normativo da lei de improbidade administrativa. Raciocinar em sentido contrário seria admitir flagrante violação à regra do ne bis in idem. A sanção decorrente de uma infração político-administrativa (ou de atos de improbidade administrativa) não conflita com a sanção penal, quando o caso, porque elas não se confundem, ou seja, possuem natureza jurídica diversa. Não se pode, entretanto, admitir a mesma consequência (cumulativa) quando se tratar de duas sanções de natureza intrinsecamente idênticas. Isso é o que ocorre em relação às infrações de natureza político-administrativa (às vezes chamada impropriamente de “crimes de responsabilidade”) e às contempladas na Lei de improbidade administrativa, que configuram matéria de Direito sancionador, não de Direito penal. Impor duas sanções (ou seja: fazer incidir dois regramentos jurídicos) da mesma natureza, com idênticos fundamentos, significa patente infringência do ne bis in idem (BIANCHINI E GOMES, 2008, pg. 49).

Numa tentativa de dar aplicação simultânea as leis n° 1.079/50 e 8.429/92, merece destaque o posicionamento do Min. Carlos Velloso, vencido na votação, no sentido de que os agentes políticos respondem pelos crimes de responsabilidade tipificados nas respectivas leis especiais, mas, em relação ao que não estiver tipificado como crime de responsabilidade, e estiver definido como ato de improbidade, devem responder na forma da lei própria. Em sentido semelhante:

Por fim, advoga-se o entendimento de que as Leis n 1.079-50 e 8.429-92 convivem harmoniosamente no sistema, sendo independentes as vias respectivas, mas será incabível formular na ação de improbidade pedido de aplicação de sanções de natureza política (perda do cargo, suspensão dos direitos políticos), já que elas emanam naturalmente da ação penal de apuração de crime de responsabilidade. Em compensação, subsistiriam outras sanções sem tal natureza (como, v.g., multa civil, reparação de danos, proibição de benefícios creditícios ou fiscais etc). Tais sanções não decorriam de crime de responsabilidade, regulado por lei especial, mas sim de conduta de improbidade sem caracterização delituosa. De fato, examinando-se o elenco de sanções contemplado no art. 12 da Lei n 8.429-92, é possível vislumbrar a existência, lado a lado, de sanções político-administrativas e exclusivamente administrativas. Daí a distinção feita por alguns intérpretes e que, em nosso entender, melhor se harmoniza com o sistema atualmente em vigor e com o princípio da moralidade administrativa (CARVALHO FILHO, 2008, pg. 946).

Um terceiro entendimento, admitindo a coexistência plena entre responsabilização política e improbidade administrativa, também foi apreciado e rejeitado nesse julgamento. Pela sua importância, transcreve-se o voto vencido do Min. Joaquim Barbosa:

O Min. Joaquim Barbosa acompanhou o voto vencido do Min. Carlos Velloso quanto à conclusão de que os fatos em razão dos quais o Ministério Público Federal ajuizara a ação de improbidade não se enquadravam nas tipificações da Lei 1.079/50 e de que não seria aplicável, portanto, o art. 102, I, c, da CF. Em acréscimo a esses fundamentos, asseverava, também, a existência, no Brasil, de disciplinas normativas diversas em matéria de improbidade, as quais, embora visando à preservação da moralidade na Administração Pública, possuiriam objetivos constitucionais diversos: a específica da Lei 8.429/92, que disciplina o art. 37, § 4º, da CF, de tipificação cerrada e de incidência sobre um amplo rol de possíveis acusados, incluindo até mesmo pessoas que não tenham vínculo funcional com a Administração Pública; e a referente à exigência de probidade que a Constituição faz em relação aos agentes políticos, especialmente ao Chefe do Poder Executivo e aos Ministros de Estado (art. 85, V), a qual, no plano infraconstitucional, se completa com o art. 9º da Lei 1.079/1950. Esclarecia que o art. 37, § 4º, da CF traduziria concretização do princípio da moralidade administrativa inscrito no caput desse mesmo artigo, por meio do qual se teria buscado coibir a prática de atos desonestos e antiéticos, aplicando-se, aos acusados as várias e drásticas penas previstas na Lei 8.429/92. Já o tratamento jurídico da improbidade prevista no art. 85, V, da CF e na Lei 1.079/50, direcionada aos fins políticos, ou seja, de apuração da responsabilização política, assumiria outra roupagem, porque o objetivo constitucional visado seria o de lançar no ostracismo político o agente político faltoso, cujas ações configurassem um risco para o estado de Direito; a natureza política e os objetivos constitucionais pretendidos com esse instituto explicariam a razão da aplicação de apenas duas punições ao agente político: perda do cargo e inabilitação para o exercício de funções públicas por 8 anos. Dessa forma, estar-se-ia diante de entidades distintas que não se excluiriam e poderiam ser processadas separadamente, em procedimentos autônomos, com resultados diversos, não obstante desencadeados pelos mesmos fatos. Salientando que nosso ordenamento jurídico admitiria, em matéria de responsabilização dos agentes políticos, a coexistência de um regime político com um regime puramente penal, afirmava não haver razão para esse mesmo ordenamento impedir a coabitação entre responsabilização política e improbidade administrativa. Entendia que eximir os agentes políticos da ação de improbidade administrativa, além de gerar situação de perplexidade que violaria os princípios isonômico e republicano, seria um desastre para a Administração Pública, um retrocesso institucional. Por fim, considerava que a solução então preconizada pela maioria dos Ministros, ao criar nova hipótese de competência originária para o Supremo (CF, art. 102), estaria rompendo com a jurisprudência tradicional, segundo a qual a competência da Corte só poderia ser estabelecida mediante norma de estatura constitucional, sendo insuscetível de extensões a situações outras que não as previstas no próprio texto constitucional. Destarte, a ação proposta deveria ter seu curso normal perante as instâncias ordinárias.  Rcl 2138/DF, rel. orig. Min. Nelson Jobim, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 13.6.2007. (Rcl-2138) (sem marcação no original)

Admitindo a dupla responsabilização do agente político, destaca-se:

Em primeiro lugar, pode-se afirmar que a tese da não-incidência da Lei n° 8.429/92 para os denominados agentes políticos desconsidera a distinção ontológica existente entre crimes de responsabilidade e atos de improbidade administrativa. Com efeito, os atos de improbidade administrativa não se confundem com os impropriamente denominados crimes de responsabilidade, uma vez que os primeiros configuram ilícitos de natureza civil (extrapenal) – muito embora tenha consequências na esfera administrativa –, enquanto os segundos são infrações político-administrativas (ou politico-constitucionais).

Daí porque os primeiros atos – atos de improbidade administrativa – estão sujeitos a um processo e julgamento realizado exclusivamente pelo Poder Judiciário, isto é, na esfera jurisdicional, valendo-se de um rito próprio sem qualquer aspecto político, enquanto os segundos – crimes de responsabilidade –, conforme destacado, estão sujeitos em relação a alguns agentes a processo e julgamento pelo legislativo (Senado Federal, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais), tendo, assim, forte carga política em sua condução.

Ademais, em vista das sanções possíveis se serem aplicadas, tem-se mais um reforço para a distinção acima. Realmente, não há previsão na lei n° 1.079/50 de outros tipos de penalidades, a não ser a perda do cargo e inabilitação para o exercício da função pública, diferentemente do que ocorre em relação aos atos de improbidade administrativa, que, de conformidade com o § 4° do art. 37 da CF, prevê para o agente ímprobo as sanções de suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, contemplado pelo art. 12 da lei n° 8.429/92, que regula a aplicação das sanções, do que denota haver uma clara distinção entre os crimes de responsabilidade e os atos de improbidade administrativa.

Percebe-se, portanto, que os denominados crimes de responsabilidade não se confundem com os crimes comuns e com outros ilícitos de natureza extrapenal, como os atos de improbidade administrativa, sendo, assim, possível a tramitação de processos simultâneos pelo mesmo fato que importe em responsabilização civil, por crime de responsabilidade e por crime comum, não havendo que falar em dupla punição.

Em segundo lugar, o posicionamento adotado na Reclamação 2138-61/DF também desconsidera o princípio da separação dos poderes ou independência entre as instâncias, consagrado na nossa legislação no art. 935 do CC/2002, olvidando que ‘a ilicitude, enquanto contrariedade do fato à norma de direito, pode se estender a diversos ramos do mesmo ordenamento jurídico, podendo um único fato constituir tanto ilícito penal como civil, administrativo e disciplinar, para citar apenas algumas’.

Ora, a própria Constituição Federal não deixa dúvidas ao dispor que a punição pelos crimes de responsabilidade não impede a incidência de outras sanções cabíveis (Art. 52, parágrafo único, parte final), podendo, portanto, a referida norma ser interpretada no sentido de que será possível responsabilizar o agente pela prática de crime ou até mesmo de eventual ilícito civil, como os que caracterizam atos de improbidade administrativa. Assim, não há que falar em contradição ou superposição de instâncias, uma vez que também é possível que a condenação criminal gere a suspensão ou perda dos direitos políticos, da mesma forma como é possível pela condenação por improbidade administrativa, como se nota pelo art. 15, III e V, da CF (MIRANDA, 2007, pg. 350-352).

Posteriormente, reapreciando a matéria, o STF avançou na discussão e afirmou não serem todos os agentes políticos que estão excluídos da aplicação da lei n° 8.429/92, mas somente aqueles que possam cometer crimes de responsabilidade previstos na CF e na lei n° 1.079/50 (define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento de diversos agentes políticos). Afirmou-se que os Parlamentares não se enquadram dentre aquelas autoridades, podendo responder por seus atos em sede de ação civil pública por atos de improbidade administrativa[3]. A mesma decisão foi tomada pelo Superior Tribunal de Justiça em relação aos Prefeitos e Vereadores, asseverando-se não haver qualquer antinomia entre o decreto-lei n° 201/67 (dispõe sobre a responsabilidade dos prefeitos e vereadores), que conduz o prefeito a um julgamento político, e a lei n° 8.429/92, permitindo a aplicação conjunta de ambas[4].

Portanto, conforme a jurisprudência do STF e do STJ, os agentes políticos, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade, não respondem por improbidade administrativa com base na lei n° 8.429/92. E, por mais que existam diversas autoridades classificadas como agentes políticos (chefe do poder executivo e auxiliares diretos, membros do Poder Legislativo, membros da magistratura e do Ministério Público, membros dos Tribunais de Contas e diplomatas), apenas as autoridades com foro para processo e julgamento por crime de responsabilidade, elencadas no texto constitucional (arts. 52, I e II; 96, III; 102, I, c; 105, I, a, e 108, I, a), e não lei n° 1.079/50 não estão sujeitas a julgamento também na Justiça Cível Comum pela prática de ato de improbidade administrativa.

A análise que aqui se desenvolverá tomara por base essa conclusão, qual seja: a inaplicabilidade da lei de improbidade administrativa aos agentes políticos com foro para processo e julgamento por crime de responsabilidade elencadas no texto constitucional, já que para eles existem um regime jurídico sancionador diferenciado (lei n° 1.709/50). Em relação aos demais agentes políticos, não há divergência, submetem-se às leis n° 8.429/92 e 1.079/50, motivo pelo qual não serão abordados.

3. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO

3.1 A natureza jurídica dos crimes de responsabilidade e dos atos de improbidade administrativa

As condutas tidas como “crime de responsabilidade”, na verdade, muito embora sejam chamadas de “crime” pela própria CF, não têm natureza penal e sim político-administrativa. É o caso das ações previstas no arts. 4° a 10, 13, 39 e 40 da lei n° 1.079/50, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento de diversos agentes políticos, cuja sanção consiste na perda do cargo, com inabilitação para o exercício de qualquer função pública (art.2). Serão julgadas pelo Poder Judiciário ou pelo Senado Federal, conforme o caso.

Dispondo sobre a responsabilidade dos prefeitos e vereadores, o decreto-lei n° 201/67 é mais preciso e estabelece separadamente: crimes de responsabilidade, com conteúdo realmente penal (art. 1°), e infrações político-administrativas (art. 4°). Os crimes de responsabilidade estão sujeitos a julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores, com pena de privativa de liberdade. As infrações político-administrativas estão sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e são sancionadas com cassação do mandato.

Os atos de improbidade administrativa, diferentemente, possuem natureza civil, não obstante o legislador tenha denominado “pena” as sanções que serão aplicadas aos agentes ímprobos (art.12 da lei n° 8.429/92). O texto constitucional (art. 37, § 4°) deixa isso claro ao dizer que as punições pelos atos de improbidade administrativa serão aplicadas “sem prejuízo da ação penal cabível”. Serão aplicadas as seguintes sanções ao agente improbo: perda dos bens e valores acrescidos ilicitamente, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber incentivos fiscais ou creditícios.

Não está correta, portanto, a tentativa de atribuir a mesma natureza jurídica a tais atos. Enquanto os atos de improbidade administrativa possuem natureza cível (extrapenal), os chamados crimes de responsabilidade possuem natureza jurídica de infrações políticos-administrativas (como corretamente as denomina o art. 4° do decreto-lei n° 201/67).

Existe uma diferença muito grande entre as infrações político-administrativas e os atos de improbidade, especialmente no que se refere à finalidade que se pretende atingir com as sanções que lhe são aplicadas. O art. 37, § 4°, CF, regulado pela lei n° 8.429/92, apoia-se no princípio da moralidade administrativa, por meio da qual se teria buscado essencialmente coibir a corrupção pública e reparar o prejuízo causado ao erário. Já, o tratamento jurídico da lei n° 1.079/50, com base no art. 85 da CF, direcionado aos fins políticos, assumiria outra roupagem, porque o objetivo visado seria o de afastar da vida pública o agente político faltoso. Motivo pelo qual os primeiros atos estão sujeitos a um processo e julgamento realizado exclusivamente pelo Poder Judiciário, valendo-se de um rito próprio sem qualquer aspecto político, enquanto os segundos estão sujeitos em relação a alguns agentes a processo e julgamento pelo legislativo, tendo conotação política a sua condução.

3.2 Aplicação conjunta das leis n° 8.429/92 e 1.079/50 aos agentes políticos: bis in idem?

Um mesmo bem jurídico pode ser objeto de tutela de diferentes ramos do direito e por isso a prática de um único ato muitas das vezes pode repercutir em diversas esferas jurídicas. Uma conduta pode caracterizar ao mesmo tempo ato de improbidade administrativa e crime contra a Administração Pública, assim como outra conduta pode se submeter simultaneamente ao Código Penal e à lei que cuida das infrações políticos-administrativas. Não há controvérsias quanto a isso.

É o que ocorre com a probidade administrativa, sendo possível extrair essa conclusão da simples leitura da CF: além de dar ensejo a tipificação dos atos de improbidade (art. 37, §4°), fundamenta a criação dos chamados crimes de responsabilidade (art. 85, V).[5] Exatamente por isso é que por vezes uma única conduta pode caracterizar a um só tempo ato de improbidade e infração político-administrativa. Daí as dúvidas: 1) é possível aplicar cumulativamente as leis n° 8.429/92 e 1.079/50 aos agentes políticos?; 2) o texto constitucional permite a concorrência entre os dois regimes de responsabilidade quando se trata de agente político?

 Respondendo negativamente a ambas as perguntas, Alice Bianchini e Luiz Flávio Gomes, afirmam:

A questão que, numa primeira perspectiva, poderia parecer dificultosa, ganha outros contornos quando se concluiu que tanto os atos de improbidade quanto os “crimes” de responsabilidade (quando destituídos de caráter penal – infrações político-administrativas, portanto) possuem a mesma natureza jurídica, ou seja, representam infrações administrativas e como tal, não podem ser duplamente aplicadas, sob pena de flagrante ofensa ao princípio do ne bis in idem. Ambas, de outro lado, não contam com natureza “penal”. O que as diferencia é o órgão que poderá aplicar as sanções delas decorrentes.

A existência de determinação expressa (possibilidade de o agente público responder por improbidade administrativa e pelo crime – quando existir correspondente tipo penal, CF, art. 37, § 4°) reforça o entendimento de que nem em um (improbidade administrativa) nem em outro caso (‘crimes’ de responsabilidade – melhor denominada infração político-administrativa) se está diante de uma infração penal. Do contrário, não se justificaria a menção feita è responsabilidade penal (2008, pg. 40).

É nessa premissa que se assenta o entendimento prevalecente no STF, porém ela não é verdadeira. O art. 37, §4°, deve ser lido corretamente: a norma constitucional não excepciona a dupla responsabilização do agente político (por atos de improbidade administrativa e por infração político-administrativa), pelo contrário, ela reafirma a independência existente entre as instâncias nos casos em que a prática de um único ato produz efeitos em diversas delas. Tal conclusão fica ainda mais clara quando se analisa o § único do art. 52, que é expresso em afirmar que a punição pelos crimes de responsabilidade (infração político-administrativa) não impede a aplicação de outras sanções cabíveis (inclusive as decorrentes do ato improbidade administrativa).

Ademais, como dito, tais condutas não possuem a mesma natureza jurídica. O fato do ato de improbidade administrativa ser sancionado com a suspensão dos direitos políticos não afasta tal conclusão, uma vez que esse comando decorre da própria CF. É possível que a condenação criminal (por exemplo, por crime eleitoral) gere a suspensão dos direitos políticos (art. 15, III), da mesma forma que condenação por improbidade administrativa também o faça (art. 15, V), sem que com isso se fale em superposição de instância ou bis in idem, como acontece quando se trata de improbidade e infração político-administrativa.

A resposta para as duas perguntas, portanto, deve ser afirmativa. As leis n° 8.429/92 e 1.079/50 complementam-se, pois protegem a probidade administrativa (bem jurídico tutelado por ambas) sancionando o agente político tanto no aspecto cível, coibindo a corrupção pública e reparando o prejuízo causado ao erário, quanto no político-administrativo, tomando-lhe o cargo e inabilitando-o para o exercício da função pública.  

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Rejeita-se, portanto, o entendimento prevalecente no STF e no STJ, e seguido por parte da doutrina, sobre o assunto. Qualquer entendimento que excepcione à sua aplicação deve ser visto com muito cuidado, sob pena de esvaziar o comando editado pelo constituinte no sentido de garantir uma boa Administração Pública. Assim, não obstante o mérito de tentar dar aplicação simultânea às leis n° 1.079/50 e 8.429/92, diante dos fundamentos apresentados, fica prejudicada também a corrente de pensamento capitaneado pelo Min. Carlos Velloso, no sentido de que os agentes políticos respondam pelos crimes de responsabilidade tipificados na lei n° 1.079/50, mas, em relação ao que não estiver tipificado como crime de responsabilidade, e estiver definido como ato de improbidade, devem responder na forma da lei n° 8.429/92. É o que acontece também com o posicionamento proposto por José dos Santos Carvalho Filho. Tais leis aplicam-se integralmente e conjuntamente.

Filia-se aqui à posição defendida pelo Min. Joaquim Barbosa e por Gustavo Sena Miranda. Nenhum agente público esta imune à aplicação da lei n° 8.429/92. Os atos de improbidade administrativa não se confundem com os impropriamente denominados crimes de responsabilidade, uma vez que aqueles configuram ilícitos de natureza cível, enquanto estes são infrações politico-administrativas. A própria natureza das sanções aplicadas em um ou outro caso confirma essa diferenciação. Não há na Lei n° 1.079/50 outros tipos de penalidade a não ser a perda do cargo e a inabilitação para o exercício da função pública, sanções de conotação política, diferentemente do que ocorre em relação aos atos de improbidade administrativa. É possível, portanto, que pelo mesmo fato, responda o agente político por ato de improbidade administrativa e por crime de responsabilidade, não havendo que se falar em dupla punição ou bis in idem.

5. REFERÊNCIAS

ANDRADE, Flávia Cristina Moura de; PAVIONE, Lucas dos Santos. Improbidade Administrativa. Salvador: Editora Juspodivm, 2010.

BIANCHINI, Alice; GOMES, Luiz Flávio. Agentes políticos não estão sujeitos à lei de improbidade administrativa. In: BOLZAN, Fabrício; MARINELA, Fernanda. Leituras complementares de direito administrativo. Salvador: Editora Juspodivm, 2008.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

MIRANDA, Gustavo Senna Miranda. Princípio do juiz natural e sua aplicação na lei de improbidade administrativa. São Paulo: RT, 2007.

NEIVA, José Antônio Lisbôa. Improbidade Administrativa. Niterói: Impetus, 2009.

Notas:

[1] Rcl 2138/DF, rel. orig. Min. Nelson Jobim, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 13.6.2007. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 23/06/2011.

[2] No mesmo sentido: REsp 456.649-MG, Rel. originário Min. Francisco Falcão, Rel. para acórdão Min. Luiz Fux, julgado em 5/9/2006. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 23/06/2011.

[3] Pet 3923 QO/SP, rel. Min. Joaquim Barbosa, 13.6.2007. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 23/06/2011.

[4] REsp 1.135.767-SP, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 25/5/2010; REsp 1.105.059-SP, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 24/8/2010. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 23/06/2011.

[5] A probidade administrativa é também tutelada em outras passagens do ordenamento jurídico. Por exemplo: se por um lado, o art. 132, IV, da Lei n° 8.112/90, que estabelece o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, define a improbidade como motivo para demissão do serviço público (sanção de natureza administrativa), por outro, a lei complementar n° 64/90, que regula o art. 14, §9°, da CF, em seu art. 1°, I, “l”, determina a inelegibilidade dos que forem condenados à suspensão dos direitos políticos pela pratica de ato doloso de improbidade administrativa (sanção de natureza política). Ou seja, o mesmo bem jurídico pode ser protegido por diferentes ramos do direito e sua violação pode produzir consequências distintas.