Aspectos polêmicos do Projeto de Lei nº. 5.080/2009 - Nova forma de cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública.


Pormathiasfoletto- Postado em 08 outubro 2012

Autores: 
NASCIMENTO, Eduardo Souto do

 

 

(1) Breve Resumo do Projeto de Lei nº. 5.080/2009.

Tramita na Câmara dos Deputados, já sob forte discussão de advogados e juristas da área tributária, o Projeto de Lei nº. 5.080/2009, de autoria do Poder Executivo, o qual altera substancialmente a Lei nº. 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais) e que engloba, entre seus pontos nevrálgicos, a possibilidade do bloqueio de bens do contribuinte, pela Procuradoria, antes do ajuizamento da respectiva ação de execução fiscal. Trata-se da polêmica “constrição preparatória”, esculpida nos artigos 3º, 4º incisos, 5º parágrafos e 9º do citado projeto de lei.

O projeto de lei se apresenta como uma das medidas previstas no chamado 2º Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça mais Acessível. A justificativa para a propositura do projeto, em linhas gerais, é a possibilidade de aperfeiçoar os instrumentos fazendários para a identificação e consequente bloqueio de bens dos contribuintes devedores, bem como dar efetividade ao processo judicial tributário, de modo a agilizar a recuperação do passivo tributário nacional (valores devidos ao Fisco).

A propositura acabou por causar certo “calor” na comunidade jurídica, porquanto outorga à Fazenda Pública a plena autonomia administrativa para, uma vez inscrito o débito em dívida ativa e diante da inércia do contribuinte, efetuar a constrição do patrimônio do patrimônio deste, sem passar pelo crivo do Judiciário, na medida em que o processo judicial executivo só teria início após a citada constrição, garantindo o débito exeqüendo.

Dentre outras disposições, o projeto autoriza ao Poder Executivo criar uma espécie de central de informações patrimoniais do contribuinte, a fim de facilitar a realização da dívida ativa constituída em nome do devedor. Atualmente, as informações patrimoniais de cada contribuinte encontram-se armazenadas de maneira descentralizada, em diversos órgãos públicos, tais como Detran´s, cartórios de imóveis, Receita Federal, Banco Central do Brasil etc.

Em que pese a premente necessidade de agilização da justiça no país, entendemos que as iniciativas nesse sentido devem se atentar aos princípios constitucionais que norteiam, nesse tempo, a legislação infraconstitucional.

Por tais razões, e a fim de apurar precisamente os possíveis efeitos dessa nova disposição em face da legislação vigente, bem como do impacto processual que possivelmente teremos nos executivos fiscais futuros, caso o texto seja aprovado, entendemos que a questão deve ser submetida a uma análise sob o prisma constitucional, para que, passo seguinte, se possa avançar sobre os meandros da sistemática processual em si.

(2) Da Inconstitucionalidade do Projeto de Lei nº. 5.080/2009.

É cediço ao estudioso do direito que toda inovação no corpo jurídico de uma sociedade deve ser submetida à verificação da compatibilidade da novidade com as disposições jurídicas basilares desse conjunto social, as quais, na esmagadora maioria dos povos, encontram-se fincadas na sua respectiva Constituição.

No estudo presente, não fugiremos dessa regra. Nesse exercício, o que se constata é que as disposições tidas no Projeto de Lei nº. 5.080/2009 acabam por confrontar com princípios fundamentais da Constituição brasileira.

De uma análise do referido projeto de lei, nos seus arts. 3º, 4º e 5º, vê-se clara a possibilidade de bloqueio, pela autoridade fazendária, do patrimônio do contribuinte. Incrivelmente, a iniciativa legislativa autoriza ao Poder Executivo que promova a penhora de bens do contribuinte ainda na fase administrativa, após a inscrição do débito em dívida ativa.

Isso quer dizer que, em termos práticos, estamos diante da própria concretização do adágio “fazer justiça com as próprias mãos”, por parte da autoridade fazendária, a qual estará dotada de plena liberdade para atingir o patrimônio do contribuinte sem qualquer apreciação judicial sobre a legitimidade dessa pretensão.

Pelo menos é o que se depreende das disposições a seguir, todas insertas no citado projeto. Vejamos:

Art. 3º - Os atos de constrição preparatória e provisória serão praticados pela Fazenda Pública credora, cabendo seu controle ao Poder Judiciário, na forma prevista nesta Lei.

Art. 4º- Concluída a inscrição em dívida ativa, será realizada investigação patrimonial dos devedores inscritos por parte da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, da Procuradoria-Geral Federal, da Procuradoria-Geral do Banco Central do Brasil e pelos órgãos correspondentes dos Estados, Municípios e Distrito Federal, caso a referida investigação patrimonial não tenha sido realizada com êxito quando da constituição do crédito. (...)”

Art. 5º Inscrito o crédito em dívida ativa, o devedor será notificado do inteiro teor da certidão para, em sessenta dias, alternativamente (...)

§4º. O devedor ou responsável legal que não praticar um dos atos descritos nos incisos I a III do caput deverá relacionar quais são e onde se encontram todos os bens ou direitos que possui, inclusive aqueles alienados entre a data da inscrição em dívida ativa e a data a entrega da relação, apontando, fundamentalmente, aqueles que considera impenhoráveis.

(...)

§6º Transcorrido o prazo de que trata o caput sem que o devedor tenha praticado um dos atos previstos nos incisos de I a III, a Fazenda Pública deverá efetuar os atos de constrição preparatória necessários à garantia da execução.

(...)

Em face desse quadro, vários apontamentos podem ser realizados, a fim demonstrar, no mínimo, a duvidosa constitucionalidade do malfadado projeto de lei.

Em primeiro lugar, frise-se que o direito de propriedade, esculpido no art. 5º, XXII, do Texto Constitucional, foi elevado à cláusula pétrea, sendo direito irretocável de todo cidadão brasileiro, e dentro dessa classe claro encontram-se os contribuintes com débitos inscritos em dívida ativa.

Por essa razão, é evidente a agressão ao direito constitucional de propriedade, na medida em que o contribuinte poderá ser privado de todos os seus bens por vontade unilateral da Fazenda e sem qualquer perquirição judicial acerca da validade ou não da cobrança promovida pelo Fisco.

O que assusta o estudioso do projeto é a inexistência de previsão de qualquer controle de legalidade, por um órgão independente, com o fim de impedir que erros comumente cometidos pelo Fisco, tais como a cobrança de tributos já quitados, de contribuintes isentos ou imunes da respectiva obrigação, sejam levados a cabo pela Administração Fazendária e, com a determinação do bloqueio unilateral do patrimônio do contribuinte, este enfrente prejuízos imensuráveis em sua vida econômica, sem qualquer respaldo jurídico.

Sem contar que, caso seja aprovado nos moldes em que se encontra, o supracitado projeto ainda desrespeita frontalmente o art. 5º, LIV, segundo o qual “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

O novel projeto outorga à Fazenda Pública respectiva a possibilidade de constrição do patrimônio do suposto devedor tributário, cabendo ao Poder Judiciário apenas o posterior controle (e podemos ler controle da legalidade) dos atos de constrição praticados.

Portanto, exclui-se a necessidade de formação de regular processo judicial para a prática de atos constritivos, cabendo à própria Fazenda Pública, sob critérios por ela mesma desenhados, promovê-los.

Na esteira do art. 5º, LIV da Magna Carta, não há qualquer dúvida acerca da orientação do constituinte de 1988, no que concerne à indispensável instauração de processo judicial para que haja constrição de bens. O Projeto de Lei nº 5.080/2009, infelizmente, não tramita observando essa regra.

A par disso, importa mencionar que a intervenção estatal no patrimônio do indivíduo sempre deve ser precedida da aquiescência do Poder Judiciário, sendo este o único órgão de onde se deve partir a aprovação da pretensão constritiva, após a escorreita verificação do ordenamento jurídico vigente à época.

Tristemente, as disposições do malfadado projeto de lei ainda atingem outros preceitos constitucionais.

Isso porque acaba por delegar ao Poder Executivo, representado pela respectiva Procuradoria, a prática de ato que até então é resguardada única e exclusivamente ao Poder Judiciário.

Cumpre observar que sob a ótica constitucional, temos a prática de atos típicos do Poder Judiciário pelo Poder Executivo, em plena violação ao Princípio da Separação dos Poderes.

Ora, se assim se permitir, temos nítida afronta ao Princípio Constitucional da Separação dos Poderes, instalado no art. 2º da Carta Constitucional, que reproduzimos neste instante a título ilustrativo:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

Seguindo esse caminho, é inevitável a pergunta: onde está a independência do Poder Judiciário em face de tal medida?

Será salutar para o Estado Democrático de direito permitir que uma das partes na ação exacional, unilateralmente, e a seu “bel prazer”, invada o patrimônio da parte contrária, sem que esta tenha tido a chance mínima de manifestar-se e de ver reconhecido seu direito ao contraditório e à ampla defesa?

Como o contribuinte poderá refutar a pretensão fazendária, no caso de erro da própria autoridade exeqüente, sem ver seu patrimônio prejudicado?

Por essas razões, fica cada vez mais áspero o caminho de quem tenta concatenar os ditames do Projeto de Lei nº. 5.080/2009 com os contornos constitucionais, na medida em que se verifica que vários de seus dispositivos atentam perigosamente em desfavor de garantias fundamentais dos contribuintes.

Por último, não deve escapar à nossa análise que a Carta Constitucional adotou em seu bojo, expressamente e sem qualquer sombra de dúvidas a seus estudiosos, o modelo jurisdicional de solução de conflitos.

Ora, se a própria Constituição apregoa, peremptoriamente, que nenhuma questão será afastada da apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV), isso significa que a via eleita constitucionalmente, para sanar os litígios, é justamente a via jurisdicional.

A impressão é que o projeto de lei em estudo anda na contramão da toada constitucional, porquanto admite a nefasta possibilidade de que atos de constrição do patrimônio do contribuinte sejam praticados sem qualquer intervenção jurisdicional, tudo pela via administrativa e ao pleno favor dos interesses fazendários.

Sob a ótica constitucional, e em breves linhas, são essas as considerações que merecem destaque, sem prejuízos dos entraves de ordem infraconstitucionais que passaremos a abordar no tópico seguinte.

(3) Aspectos Processuais do Projeto de Lei nº. 5.080/2009.

Superada a discussão à luz da Constituição Federal, impende analisarmos a nova proposição em seus aspectos prático-processuais, de modo a atestarmos se a tão propagada evolução do processo fiscal deu-se para ambos os lados, contribuinte e fisco, ou se as melhorias recaíram somente para um dos lados.

O primeiro ponto a ser ressaltado, sob o prisma processual, é a possibilidade de impugnação administrativa pelo contribuinte devedor, do ato constritivo da Fazenda Nacional em seu patrimônio.

Notificado sobre o bloqueio de seus bens ainda em fase administrativa, caberá ao contribuinte, no prazo de 30 dias a contar do recebimento da notificação, argüir matéria de defesa em seu favor. É o que preconiza o artigo 7º do projeto de lei. Confira-se:

Art. 7º. A contar da notificação, o devedor poderá argüir, no prazo de trinta dias, fundamentadamente, sem efeito suspensivo, perante a Fazenda Pública, o pagamento, a compensação anterior à inscrição, matéria de ordem pública e outras causas de nulidade do título que possam ser verificadas de plano, sem necessidade de dilação probatória.

Parágrafo único. A rejeição de qualquer dos fundamentos da argüição pela Fazenda Pública não impede a sua renovação em sede de embargos à execução. (grifo nosso).”

Colhe-se do artigo que o contribuinte terá oportunidade de manifestar-se acerca dos atos constritivos praticados pela Fazenda, contudo, à referida argüição não será atribuído efeito suspensivo, o que acaba por tolher a viabilidade prática dessa arguição.

Outro ponto delicado do projeto quanto à sistemática processual está inserido no art. 13, o qual determina que a Fazenda Pública deverá providenciar o ajuizamento da execução fiscal, ressalvado o disposto no §1º do art. 17, no prazo de trinta dias, contados da efetivação da primeira constrição.

Caso a Fazenda não providencie o referido ajuizamento, não está sujeita a qualquer punição, nem ao menos à desconstituição dos atos constritivos, o que prejudica e muito a vida do contribuinte, pois enquanto a Fazenda Nacional não ajuizar o executivo fiscal, abrindo prazo para oposição de Embargos, os bens do contribuinte ficarão bloqueados administrativamente, tudo ao alvedrio da parte exeqüente.

E as agruras impostas aos contribuintes, infelizmente, não terminam por aí. O malsinado projeto prevê, expressamente, que a oposição de Embargos à Execução Fiscal não terá efeito suspensivo, prosseguindo o executivo fiscal em paralelo ao julgamento dos Embargos.

A atribuição de efeito suspensivo aos Embargos será faculdade do juiz, o qual, para tanto, deverá atestar a relevância dos fundamentos dos Embargos, ou se o prosseguimento da execução for manifestamente suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação (art. 25 e § único).

Por fim, há previsão expressa no projeto no sentido de que as demais ações “autônomas”, v.g., ações anulatórias, mandados de segurança, ações declaratórias, quando ajuizadas em face de débitos inscritos em dívida ativa, deverão correr no Juízo das Execuções e não mais no Juízo comum (Vara da Fazenda Pública), na esteira do quanto disposto no art. 26 da inovação legislativa em apreço:

Art. 26. Quando o devedor se opuser à inscrição em dívida ativa ou à execução por meio de ação autônoma, será ela distribuída ao juiz competente para conhecer da execução fiscal e dos embargos, que restará proventos.

§1º A propositura, pelo devedor, de a ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto, quando o objeto da defesa ou do recurso administrativo for idêntico ao da ação judicial.

§2º A propositura de qualquer ação relativa ao débito inscrito na dívida ativa não inibe a Fazenda Pública de promover-lhe execução, todavia, se relevantes os fundamentos e diante de manifesto risco de dano de difícil ou incerta reparação, ficará suspensa a execução, mediante garantia consistente em depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro-garantia.

(4) Conclusão.

De tudo aqui exposto, pode-se aventar que as modificações legislativas em discussão na Câmara dos Deputados, se aprovadas e inseridas no ordenamento jurídico, vão implicar em um agravamento aos direitos do contribuinte em face da Fazenda Nacional, na medida em que as alterações conferem ao fisco nacional plenos poderes de constrição do patrimônio do devedor, em pleno desrespeito a dispositivos constitucionais.

O projeto ainda está em votação na Câmara dos Deputados e, se aprovado, seguirá ao Senado Federal. Vamos aguardar o resultado.

 

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