Bem jurídico e Direito Penal.


Porbarbara_montibeller- Postado em 26 abril 2012

Autores: 
SCOLANZI, Vinícius Barbosa.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Bem jurídico e bem jurídico penalmente tutelado; 2. Bem jurídico-penal e Constituição; 3. Funções da teoria do bem jurídico; Considerações finais; Referências bibliográficas.


RESUMO

O Direito Penal figura como um dos mais importantes sistemas de controle social institucionalizados dentre os existentes. Busca, por meio da proteção de bens jurídicos, a pacificação e a viabilidade social. No entanto, uma vez inserido em um Estado Democrático de Direito, sua atuação somente pode ser considerada legítima quando voltado à missão que o fundamenta: a proteção de bens jurídicos-penais. Assim, para a perfeita compreensão do Direito Penal, é imprescindível o estudo da teoria do bem jurídico, perquirição que engloba a análise dos conceitos de bem jurídico e bem jurídico-penal, a avaliação do fenômeno de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo Direito Penal e o estudo das limitações que a teoria do bem jurídico impõe ao ius puniendi. Nessa baila, verifica-se que a atividade legislativa de criação de tipos penais incriminadores encontra na teoria do bem jurídico e na Constituição importantes barreiras que as orientam a proteger apenas valores sociais fundamentais e compatíveis com o ordenamento jurídico constitucional.


INTRODUÇÃO

Sabe-se que a sociedade não está imune ao desenvolvimento de conflitos e, por essa razão, faz-se imprescindível a institucionalização pelo Estado de sistemas de controle social formais. O Direito Penal, portanto, exerce função ímpar na sociedade: busca conferir meios para o desenvolvimento social pacífico, através da criação de tipos penais incriminadores, prevendo a aplicação de sanções de caráter penal àqueles que, por meio de seus atos, causem lesão ou exponham a risco concreto de lesão bem jurídico de outrem, tutelado penalmente.

Pode-se esboçar, destarte, uma primeira função do Direito Penal, qual seja, a de proteção da própria sociedade e das relações humanas nela desenvolvidas.

No entanto, conquanto almeje a proteção social, considerando a inserção do sistema penal em um Estado Democrático de Direito, balizado pelos valores da dignidade da pessoa humana e comprometido com a efetivação dos direitos fundamentais – dentre os quais, a liberdade –, tem-se que a incidência do Direito Penal só encontra legitimidade quando desenvolvida em estrita obediência a seu caráter fragmentário e subsidiário, o que se alcança apenas quando a atuação penal estatal é dirigida exclusivamente à proteção dos bens jurídicos mais importantes ao seio social.

Há de se convir, portanto, que o Direito Penal visa garantir o convívio e o desenvolvimento social pleno, por meio da proteção dos bens jurídicos mais importantes à sociedade.

Em outra perspectiva, é também por meio da proteção de bens jurídicos que o sistema penal atinge outra finalidade, consubstanciada na reafirmação dos valores sociais de maior apreço e prestígio, porquanto o processo de seleção daqueles bens jurídicos, agora dotados da qualidade de bens jurídicos-penais, constitui reflexo do que a sociedade considera primordial para a sua proteção.

Denota-se, então, que o Direito Penal visa, primordialmente, garantir o desenvolvimento pleno das relações e do convívio social, por meio da seleção e proteção de bens jurídicos fundamentais que, uma vez inseridos na esfera de proteção penal, são erigidos ao status de bens jurídicos-penais. De modo reflexo, atua ele também como meio de afirmação dos valores sociais mais caros, porquanto são a estes valores que ele dirige a sua proteção.

Assim, é de absoluta relevância para a perfeita compreensão da missão do Direito Penal no Estado Democrático de Direito o estudo da teoria do bem jurídico e das funções por ela desempenhada na atuação estatal na esfera penal.


1. BEM JURÍDICO E BEM JURÍDICO PENALMENTE TUTELADO

Por meio do raciocínio até aqui desenvolvido foi possível fixar que o Direito Penal, este entendido como o Direito Penal democrático, uma vez inserido em um Estado Democrático de Direito, destina-se a promover meios para a existência de uma convivência social pacífica e equilibrada. E o faz por meio da proteção dos bens jurídicos fundamentais ao seio social.

Neste ponto, faz-se mister buscar a correta conceituação de bem jurídico e bem jurídico penalmente tutelado, bem como perquirir seus substratos e sua formação.

Para uma compreensão inicial, segundo lição de Roxin (2006, p. 18-19),

podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta a todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos.

A concepção de bem jurídico remonta, primeiramente, à ideia de bem existencial, indispensável ao desenvolvimento social, o qual, consoante lição de Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 232),

[...] é o bem relevante para o indivíduo ou para a comunidade (quando comunitário não se pode perder de vista, mesmo assim, sua individualidade, ou seja, o bem comunitário deve ser também importante para o desenvolvimento da individualidade da pessoa) que, quando apresenta grande significação social, pode e deve ser protegido juridicamente. A vida, a honra, o patrimônio, a liberdade sexual, o meio-ambiente etc. são bens existenciais de grande relevância para o indivíduo.

Mas a simples identificação de um bem existencial não se faz suficiente para promovê-lo ao status de bem jurídico. Antes, deve-se observar se precitado bem possui elementos que indiquem ser ele digno de proteção jurídica em uma relação social. Trata-se do chamando substrato subjetivo do bem jurídico.

O substrato subjetivo do bem jurídico é o interesse do (e para o) ser humano em relação a um determinado bem existencial. A vida é um bem existencial; o interesse do ser humano pela vida (pelo seu surgimento, preservação, evitabilidade da sua destruição arbitrária etc.) constitui o substrato subjetivo do conceito de bem jurídico; esse vínculo ou interesse nada mais significa que uma relação social, que acaba sendo valorada positivamente pelo legislador [...] (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 232).

Nessa perspectiva, uma vez verificado o surgimento de um bem existencial cujo interesse para o desenvolvimento das relações sociais é indiscutível e inegável, sendo ele considerado digno de proteção jurídica, inicia-se uma atividade de reconhecimento e valoração do precitado bem pelo Direito, o qual se torna, finalmente, um bem jurídico.

Bem jurídico, por conseguinte, é o reconhecimento pelo Direito desse interesse do ser humano por um bem existencial. É o Direito que transforma o bem existencial e o interesse humano em relação a ele como bem jurídico. Em outras palavras, bem jurídico é a soma de uma coisa (bem existencial) útil, válida ou necessária para o ser humano como um valor agregado (com uma valoração positiva em razão da função que a coisa desempenha para o desenvolvimento da personalidade do sujeito) (bem jurídico = um bem existencial útil, válido ou necessário ao ser humano + uma valoração positiva desse bem feita pelo legislador) (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 233).

Portanto, nas palavras de Bittencourt (2010, p. 38), bens jurídicos "[...] são bens vitais da sociedade e do indivíduo, que merecem proteção legal exatamente em razão de sua significação social. [...] A soma dos bens jurídicos constitui, afinal, a ordem social".

E segundo raciocínio desenvolvido por Canterji (2008, p. 75),

[...] inicialmente se coloca como missão do Direito Penal a tutela do bem jurídico e, em seguida, afirma-se que bem jurídico é todo Estado Social pretendido que o Direito deseja assegurar contra lesões. Em outras palavras, o objetivo do Direito Penal é a tutela do bem jurídico, podendo esse ser conceituado como todo valor da vida humana protegido pelo Direito.

Destarte, a concepção de bem jurídico revela um interesse existencial da sociedade que, por ser tido como imprescindível à sua própria existência comunitária, recebe um juízo de valoração pelo Direito e passa a gozar de proteção jurídica. Quando essa valoração e proteção é conferida por uma norma penal, a qual prevê tipos penais incriminadores e da cominação de sanções penais, verifica-se a existência de um bem jurídico-penal.

Consoante dicção de Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 233),

O bem jurídico-penal, por seu turno, compreende os bens existenciais (pessoais) valorados positivamente pelo Direito e protegidos dentro e nos limites de uma determinada relação social conflitiva por uma norma penal (bem jurídico-penal = bem existencial + valoração positiva + tutela por uma norma penal). Sendo certo que a norma penal somente tutela o bem no contexto de uma relação conflitiva.

É de se notar, entretanto, que a elevação de um bem jurídico aos status de bem jurídico-penal não pode se afastar da execução de uma atividade seletiva dos valores existenciais estritamente ligada ao caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal, pois somente assim a atuação legiferante penal poderá ser considerada legítima e em consonância com os valores do Estado Democrático de Direito.

Recorde-se que os bens jurídicos não devem receber uma proteção absoluta e uniforme do Direito, senão seletiva e fragmentária: o Direito penal só protege os bens mais valiosos para a convivência e o faz, ademais, exclusivamente frente aos ataques mais intoleráveis de que possam ser objeto (a natureza 'fragmentária' da intervenção penal); e mesmo assim quando não existem outros meios eficazes, de natureza não penal, para salvaguardá-los (natureza 'subsidiária' do Direito penal) (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 235).

O bem jurídico, destarte, para merecer a tutela penal, necessita revelar dignidade penal, a qual, nas lições de Souza (apud, CRUZ, 2008, p. 48), "é o atributo que reveste direitos e bens jurídicos, os quais, por serem relevantes e fundamentais para o indivíduo e a sociedade, são, em razão disso, merecedores da tutela penal".

Conquanto se encontra intimamente ligado aos valores indispensáveis ao pleno desenvolvimento social, os bens jurídicos sofrem constantes mutações e tendem a acompanhar a alteração do pensamento social acerca dos valores socialmente aceitos, passando, constantemente, por uma análise de adequação social. Logo, "[...] os bens jurídicos não têm uma validade natural e infinita; preferentemente, estão submetidos às mudanças dos fundamentos jurídico-constitucionais e das relações sociais" (ROXIN, 2006, p. 36).

Em suma, denota-se que bens jurídicos são interesses vitais para a existência de uma convivência social pacífica e plena, os quais, por sua imprescindibilidade, gozam de proteção jurídica. Quando essa proteção é conferida pelo Direito Penal, por meio da previsão de crimes e cominação de sanções penais, sempre em consonância com os ideais da fragmentariedade e subsidiariedade deste modelo de controle social, está-se diante de um bem jurídico-penal, noção que constitui todo o alicerce do Direito Penal democrático e da ofensividade.


2. BEM JURÍDICO-PENAL E CONSTITUIÇÃO

O estabelecimento de uma correlação entre bem jurídico-penal e Constituição insere-se na análise do processo de seleção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal. A atividade legislativa destinada à seleção de bens jurídicos-penais e à consequente criação de tipos penais incriminadores não prescinde de limites e diretrizes conferidas pelos valores constitucionalmente consagrados, pois, de acordo com os ensinamentos de Roxin (2006, p. 11),

A questão sobre qual a qualidade que deve ter um comportamento para que seja objeto da punição estatal será sempre um problema central não somente para o legislador, mas, também, para a Ciência do Direito Penal. Há muitos argumentos a favor para que o legislador moderno, mesmo que esteja legitimado democraticamente, não penalize algo simplesmente porque não gosta. […] a penalização de um comportamento necessita, em todo caso, de uma legitimação diferente da simples discricionariedade do legislador.

Portanto, o processo de seleção dos bens jurídicos-penais não se afasta das diretrizes axiológicas consagradas no texto constitucional, de forma a ser na Constituição que esta seleção encontra legitimidade, vez que

[...] de pouco serve a construção de um sistema liberal (e formal) de garantias (de limites ao ius uniendi) se depois o legislador conta com ampla margem para, sem nenhum constrangimento nem censura, ser autoritário (ou vago, ou impreciso) na seleção do bem jurídico (GOMES, 2002, p. 58).

E consoante disserta Cruz (2008, p. 51),

Entende a doutrina, quer a nacional, quer a estrangeira, que o critério de dignidade penal é conferido pela Constituição. É esta que vai fixar os bens jurídicos fundamentais e determinar, explícita ou implicitamente, sejam eles tutelados pelo Direito Penal. Assim, os valores constitucionais fundamentais vão merecer esta forma extrema de proteção.

Assim, a completa investigação sobre o bem jurídico-penal não pode se afastar da análise da forma pela qual a Constituição coordena, limita e legitima o processo de seleção dos bens jurídicos a serem alvo de proteção pelo Direito Penal, e a respectiva criação dos tipos penais incriminadores. E a perquirição ora proposta se inicia com a seguinte indagação: apenas os bens apontados pela Constituição como socialmente relevantes podem ser tutelados pelo Direito Penal, ou podem ser penalmente tutelados outros bens não consagrados expressamente pelo texto constitucional?

Na colocação de Cruz (2008, p. 54),

[...] precisamos saber se o critério apontado para a incidência da tutela penal (fundamentação constitucional) é o único, justificando inclusive a descriminalização de condutas que não tutelem bens jurídicos que sejam reflexos de valores constitucionais, ou se, ao contrário, há uma esfera de liberdade para o legislador que o permite, de acordo com o "ambiente valorativo" da sociedade, fazer incidir sobre outros bens esta forma de tutela.

Em um primeiro momento, sustentou-se a ideia de que apenas os valores literalmente consignados na Constituição poderiam ser objeto da tutela penal, já que a Carta Magna constitui o alicerce da teoria do bem jurídico. A esse respeito, duas correntes de pensamento se desenvolveram: a rígida ou inflexível e a genérica ou flexível.

Com base na ordem de valores (Wertordnung) mais importantes da nação (que emana naturalmente da Constituição), um determinado setor da doutrina, de inspiração constitucionalista em sentido estrito (concepção rígida), procura deduzir diretamente da Magna Carta os objetos de proteção penal, que teriam (ademais) caráter vinculante (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 262).

Com base nessa concepção, a Constituição – alicerce de todo o sistema penal – apresenta, expressamente e de forma vinculante, os valores sociais mais importantes para a comunidade, os quais são dotados de dignidade penal e, portanto, merecedores da proteção do Direito Penal. A atividade legislativa, assim, estaria plenamente vinculada às indicações constitucionais relativas à tutela penal, tendo o legislador apenas a função de transportar os valores indicados pelo texto constitucional como bens jurídicos-penais para os tipos penais incriminadores.

Mais uma vez apontando os ensinamentos de Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 263), "A tarefa do legislador, portanto, não seria outra senão a de incorporar ao ordenamento jurídico-penal os valores mais importantes plasmados de modo vinculante na Constituição (Grundnorm)".

Ainda a defender a noção de que apenas os valores indicados pela Constituição podem ser erigidos ao status de bens jurídicos-penais, para a corrente genérica ou flexível, "[…] a norma constitucional não constitui o fundamento obrigatório de dedução lógica dos bens jurídicos (obrigação de criminalização), senão unicamente um marco de referência" (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, 2009, p. 264).

Desta forma, na linha de entendimento desta segunda concepção, a Constituição apenas estabelece uma diretriz para que a atividade legislativa seja desenvolvida, inexistindo o caráter vinculante inerente à corrente rígida, o que importa dizer que o legislador possui discricionariedade para selecionar bens jurídicos-penais e, assim, criminalizar condutas, desde que aqueles bens estejam insertos no conjunto de valores expressamente indicados pela Magna Carta.

Portanto, o legislador pode conferir ou não proteção penal aos bens jurídicos indicados pelo texto constitucional, mas não pode inserir no âmbito de proteção do Direito Penal, sob pena de torná-la ilegítima, valores não consagrados pela Constituição.

No entanto, o entendimento majoritário atual acerca da seleção dos bens jurídicos dotados de dignidade penal não mais se orienta pela ideia de que a Constituição é a única fonte de escolha dos valores a serem tutelados pelo Direito Penal. Atualmente busca-se conferir à Carta Magna uma função orientadora desta atividade seletiva, a permitir que bens jurídicos não expressamente consignados em seu texto sejam erigidos à posição de bens jurídicos-penais, desde que, de outro norte, não compreendam valores com ela incompatíveis.

Nessa perspectiva, dissertam Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 266):

A atual e majoritária tendência doutrinária (trend) não se centra, como vimos, na exigência de que o bem jurídico em Direito penal deva ter necessariamente relevância ou plasmação constitucional expressa. A flexibilidade das últimas opiniões constitucionalistas culminou com a formulação da tese de que o bem jurídico-penal conta com legitimidade e validade se não é incompatível com a Constituição (leia-se com o quadro de valores estampados na Constituição).

Com efeito, não se pode conceber um sistema penal absolutamente engessado em razão da possibilidade de apenas selecionar como bens dotados de dignidade penal aqueles expressamente indicados pelo texto constitucional. O Direito Penal é manifestação reflexa da sociedade e dos valores por ela consagrados, cuja evolução e modificação é experimentada a cada momento, em velocidade muito superior à possibilidade de modificação do texto constitucional, de maneira que submeter a tutela penal à prévia alteração de uma Constituição rígida poderia acarretar a sua própria ineficiência. Afinal, segundo aduz Greco (2008, p. 67),

A seleção de bens jurídicos varia de sociedade para sociedade. O critério de seleção será valorativo-cultural, de acordo com a necessidade de cada época, de cada sociedade. Existe uma zona de consenso, comum a toda e qualquer sociedade, no sentido de proteção de determinados bens, com a criação de certas figuras típicas, como é o caso do delito de homicídio, roubo etc. Contudo, existem zonas de conflito, nas quais condutas que são incriminadas em determinada sociedade já não o são em outras, a exemplo do que ocorre com a punição pelo aborto e pelo homossexualismo.

A Constituição, desta feita, apresenta-se como limite negativo para a criminalização de condutas, na medida em que impede a seleção de bens jurídicos-penais conflitantes com o seu quadro axiológico. A realidade social é, na verdade, a fonte primária dos bens jurídicos-penais.

Destarte, nas palavras de Cruz (2008, p. 55),

[...] considerando que o critério de dignidade penal vai inquestionavelmente ligar-se às condições histórico-sociais de uma dada coletividade, o legislador poderá, com fundamento nesse critério, eleger como dignos de tutela penal bens jurídicos que não apresentam relevância constitucional, ou que somente a apresentam por via reflexa, como é o caso dos crimes contra o patrimônio e contra os costumes.

[...] a ordem dos bens tuteláveis não é idêntica à ordem dos valores constitucionais, sendo que a legitimidade da intervenção penal vai depender da circunstância de o reclamo social ser suficientemente intenso.

E segundo entendimento de Prado (1997, p. 78-79),

A dignidade de proteção de um bem se contempla segundo o valor conferido ao mesmo pela cultura; a necessidade de proteção se assenta em sua suscetibilidade de ataque e a capacidade de proteção se constata em relação à própria natureza do bem respectivo. Os bens dignos ou merecedores de tutela penal são, em princípio, os de indicação constitucional específica e aqueles que se encontrem em harmonia com a noção de Estado de Direito democrático, ressalvada a liberdade seletiva do legislador quanto à necessidade.

Em arremate ao aqui exposto, cumpre salientar que o vínculo existente entre Constituição e Direito Penal, a par das limitações ao ius puniendi exaradas pelos princípios constitucionais penais, também se relaciona com o processo de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo sistema penal. Nessa baila, a Constituição se apresenta como limite à escolha dos bens jurídicos-penais, uma vez que impede sejam dotados de dignidade penal valores incompatíveis com o seu quadro axiológico.

Portanto, não são apenas os bens jurídicos indicados expressamente pela Constituição os possíveis destinatários da tutela penal. Também os valores consagrados pela sociedade, ainda que sem previsão constitucional expressa, podem (e devem) ser protegidos pelo Direito Penal, desde que compatíveis com a Constituição.

 

3. FUNÇÕES DA TEORIA DO BEM JURÍDICO

Uma vez inserido o bem jurídico-penal como fundamento de todo o Direito Penal democrático, é inegável a importância que o estudo teórico a seu respeito possui para a Ciência Penal, pois é nesse contexto que exsurge um outro princípio limitador do ius puniendi, qual seja, o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos. Afinal, retomando o entendimento exposto neste capítulo, a melhor forma de adequar o Direito Penal aos valores consagrados pelo Estado Democrático de Direito é limitar a sua incidência somente às hipóteses em que haja drástica ofensa a um bem jurídico penalmente tutelado, que deve ser reflexo dos valores mais importantes para a convivência social.

Desta feita, segundo Roxin (2006, p. 26), referido princípio, "[...] serve-me, antes de tudo, como linha diretriz político-criminal para o legislador, como arsenal de indicações para a configuração de um Direito Penal liberal e de Estado de Direito".

E consoante preleciona Cruz (2008, p. 45):

O bem jurídico, além de definir a função do Direito Penal, marca os limites da legitimidade de sua intervenção, uma vez que, em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal somente pode interferir na liberdade de seus cidadãos para proteger os bens jurídicos.

Acerca das funções limitadoras oriundas da teoria do bem jurídico (em especial do princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos),Gomes (2002, p. 53-54) salienta que,

como não poderia ser de outra forma, revela o núcleo essencial do denominado princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos que, ao lado de tantos outros princípios fundamentais (da materialidade do fato, da ofensividade, da legalidade, da culpabilidade etc.), tem (também) a função de delimitar o ius puniendi estatal.

O princípio em testilha, consequência lógica do modelo de Direito Penal democrático, ao lado dos demais princípios constitucionais penais apresentados alhures, "constitui (mais) uma barreira – um limite – material ao Direito punitivo estatal, que já não está autorizado, por intermédio de uma criminalização, a tipificar meras atitudes morais ou éticas das pessoas (enquanto tais)" (GOMES, 2002, p. 53).

Portanto, a teoria do bem jurídico impõe mais uma barreira para o direito de punir estatal, já que condiciona a atividade legislativa concernente à criação de tipos penais incriminadores à seleção de condutas que causem lesão (ou exponham a perigo concreto) bens jurídicos dotados de dignidade penal.

Nessa perspectiva, decorrem da teoria do bem jurídico, em especial do princípio dela derivado, dois limites relevantes, assim mencionados por Gomes (2002, p. 55):

(a) o primeiro é de natureza indicativa, é dizer, em decorrência do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, hoje se reconhece (indicativamente) que somente os bens existenciais (individuais ou supra-individuais) mais importantes para o ser humano, é dizer, os que são indispensáveis para o desenvolvimento da sua personalidade, merecem ser contemplados em uma norma como objeto de proteção (e, por conseguinte, da ofensa) penal;

(b) o segundo é de caráter negativo, no sentido de que estamos em condições de afirmar, com boa margem de segurança, ao menos quais bens não podem ser convertidos em objeto da tutela (e da ofensa) penal: a moral, a ética, a religião, a ideologia, os valores culturais como tais etc.

Esses limites impõem ao legislador, portanto, a tarefa de afastar da tutela penal os valores que não podem nela se inserir, tais como a moral, a ética ou a religião, e, ao mesmo tempo, somente direcionar a proteção do Direito Penal aos bens jurídicos mais relevantes à convivência e ao desenvolvimento social pacífico.

Por fim, embora intimamente ligados, deve-se consignar que o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos não se confunde com o princípio da ofensividade, porquanto, ainda na linha de entendimento esposada por Gomes (2002, p. 42-43),

Para bem individualizá-los cumpre sublinhar desde logo que a função principal do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos é a de delimitar uma forma de Direito penal, o Direito penal do bem jurídico, daí que não seja tarefa sua proteger a ética, a moral, os costumes, uma ideologia, uma determinada religião, estratégias sociais, valores culturais como tais, programas de governo, a norma penal em si etc. O Direito penal, em outras palavras, pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de bens jurídicos, isto é, de relações sociais conflitivas valoradas positivamente na sociedade democrática.

O princípio da ofensividade, por sua vez, nada diz diretamente sobre a missão ou forma do Direito penal, senão que expressa uma forma de compreender ou de conceber o delito: o delito como ofensa a um bem jurídico. E disso deriva, como já afirmamos tantas vezes, a inadmissibilidade de outras formas de delito (mera desobediência, simples violação da norma imperativa etc.)

Destarte, ainda que próximos, não se deve confundir a ofensividade com a exclusiva proteção dos bens jurídicos. Este, relacionado às funções do Direito Penal, impede a criminalização de condutas que não lesem bens jurídicos, enquanto aquele, inserido na teoria do crime, aponta a maneia pela qual se deve compreender o delito.

Em conclusão, o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos, consectário lógico da teoria do bem jurídico e pressuposto do Direito Penal democrático, apresenta-se, ao lado dos demais princípios constitucionais penais, como limitador do ius puniendi, regendo a seleção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal, ao apontar os valores mais caros à sociedade, e condicionando a atividade de criminalização às condutas que ofendam intoleravelmente aqueles bens jurídicos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo se chega ao entendimento de que, uma vez inserto em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal não pode se afastar da função primordial que o legitima, qual seja, a de proteger os bens jurídicos mais caros à sociedade, proporcionando, dessa forma, condições para a coexistência pacífica e equilibrada entre os cidadãos, sob o primado dos valores da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos fundamentais, fixando e reafirmando os valores sociais mais importantes, e atuando como limite ao exercício do ius puniendi.

O bem jurídico se posiciona como um dos fundamentos do Direito Penal democrático, de maneira que o estudo e a compreensão do fenômeno de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo sistema de controle penal se fazem absolutamente oportunos.

Nessa perspectiva, tem-se que a atividade legislativa de produção de tipos penais incriminadores, diretamente balizada e limitada pela teoria do bem jurídico de acordo com os valores abarcados explicita e implicitamente na Constituição Federal, só pode conferir dignidade penal a bens jurídicos compatíveis com a Carta Magna.

Atualmente, portanto, a Constituição Federal não é a única fonte de bens jurídicos-penais, mas exerce uma função orientadora da atividade seletiva estatal, a permitir a tutela de bens jurídicos não expressamente consignados em seu texto, desde que não compreendam valores com ela incompatíveis. Somente assim se faz possível considerar legítima a atuação do Direito Penal na sociedade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIANCHINI, Alice; MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Direito penal. Introdução e princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Coleção Ciência Criminais, v.1.

CANTERJI, Rafael Braude. Política criminal e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

CRUZ, Ana Paula Fernandes Nogueira da. A culpabilidade nos crimes ambientais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Série "As Ciências Criminais no Século XXI – v. 5".

GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.