A bioética aplicada no processo civil brasileiro


Pormarina.cordeiro- Postado em 02 abril 2012

Autores: 
RALA, Eduardo Telles de Lima

SUMÁRIO: Resumo. 1. Introdução. 2. Bioética. 2.1. Aspectos históricos. 2.2. Conceito. 2.3. Princípios. 2.3.1. Princípio da autonomia. 2.3.2. Princípio da não maleficência. 2.3.3. Princípio da beneficência. 2.3.4. Princípio da justiça. 3. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. 4. Jurisdição e a efetividade da ordem jurídica justa. 5. Conclusão. Notas bibliográficas.


Resumo

O presente ensaio surgiu da necessidade de apresentação de um texto como requisito para avaliação do módulo Teoria Geral do Processo, ministrado pelo Professor Doutor Flávio Luís de Oliveira, no Curso de Especialização em Direito Civil e Processual Civil – Turma 2004, do Centro de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino de Bauru.

Buscou-se demonstrar a necessidade da aplicação da Bioética ao Processo Civil Brasileiro no sentido de redimensionar a sua aplicação frente às problemáticas enfrentadas por toda a sociedade no que concerne à tutela de direitos individuais que abrangem a vida e a saúde.

No item 1, introduzimos o ensaio trazendo à baila alguns pontos sensíveis que demonstram a necessidade da aplicação e do estudo da Bioética pelos aplicadores do Direito. Nos itens 2 e 3 explicamos e conceituamos Bioética e Princípio da Dignidade da Pessoa Humana para, no item 5 – após a apresentação do tópico número 4 que estudamos a Jurisdição e a Efetividade da Ordem Jurídica Justa –, concluirmos da necessidade que os aplicadores do Direito tem de redimensionar conceitos, aprofundar as discussões para, efetivamente, apresentar melhores soluções jurisdicionais, na esteira da aplicação da Bioética à luz da Dignidade da Pessoa Humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil, apresentado no artigo 1.º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.


1. Introdução

O direito processual brasileiro está assumindo, nos últimos anos, um papel social fundamental frente às problemáticas que envolvem lesões de direitos materiais relacionados à vida e à saúde do ser humano. Porém, a busca das soluções a estes problemas, no judiciário, ainda está condicionada aos sistemas probatório e recursal que vigem em nosso país. Entretanto, a jurisdição brasileira possui ferramentas principiológicas e fundamentais para inovar em suas decisões, abrindo um leque de possibilidades jurisdicionais para que o "consumidor" da justiça saia satisfeito de seu litígio, mesmo que, legalmente, não exista direito amparando-o. [1]

Sabe-se, porém, que o atendimento dos objetivos-fins do processo é deveras demorado e, por assim dizer, tenebroso para aqueles indivíduos que buscam uma solução para os problemas que atingem àqueles direitos materiais lesionados. Alguns aplicadores do Direito possuem, arraigados em seus fundamentos profissionais, doutrinas positivistas, engessadas pela falta de atualização e dogmatizadas pelo desconhecimento do arcabouço de princípios que norteiam, não somente um país, mas todo o planeta, decorrentes de situações tenebrosas sofridas pela humanidade nos últimos séculos. Assim, nos litígios acerca de bens materiais como a vida e a saúde, estamos enfrentando, além da morosidade do sistema judiciário, o despreparo dos aplicadores do direito, tanto técnico como científico, bem como, a quantidade de recursos que podem ser utilizados para a consecução dos fins almejados pelas partes.

Ora, assim surge uma controvérsia moral: como compatibilizar à rapidez das soluções biomédicas e biotecnológicas com a morosidade das decisões jurisdicionais? Como preservar a dignidade humana do indivíduo que litiga que busca no Judiciário a reparação pelos danos causados por serviços de saúde despreparados e corporativistas?

Não se busca na doutrina teorias eficazes para a humanização do direito processual civil, e sim, alternativas, ou melhor, ferramentas que ajudam a "maquilagem" de um sistema judiciário falido e engessado pela burocratização de um sistema recursal degradante e protelatório.

Muito menos, na legislação, busca-se ferramentas eficazes para a desobstrução do Poder Judiciário, permitindo aos Juízes uma melhor realização de suas funções na tutela de direitos individuais não patrimoniais e com fundo evidentemente social e urgente.

Assim, vê-se, que, frente a direitos materiais lesionados relacionados à saúde e ao bem estar do consumidor (tanto do serviço de saúde, como do serviço da jurisdição), o sistema "processo civil – poder judiciário – recursos" leva, muitas vezes a decisões ineficazes, demoradas e injustas.

Algumas respostas podem ser obtidas no estudo da bioética, aplicando seus princípios, juntamente com os princípios e direitos constitucionais fundamentais, para a efetivação de uma ordem jurídica justa.


2. Bioética [2]

2.1.Aspectos históricos

O termo bioética apareceu no início da década de 1970, mais precisamente, em 1971, com a publicação do livro "Bioethics: bridge to the future." Este livro foi escrito por Van Rensselaer Potter, pesquisador da área de oncologia em Wisconsin, nos Estados Unidos da América, [3] ele relata que:

"O objetivo desta disciplina, como eu vejo, seria ajudar a humanidade em direção a uma participação racional, mas cautelosa, no processo da evolução biológica e cultural. Escolho ‘bio’ para representar o conhecimento biológico, a ciência dos sistemas viventes, e ‘ética’ para representar o conhecimento dos sistemas de valores humanos." (4)

De acordo com a pesquisa da professora Adriana Diaféria, o obstreta holandês André Hellegers, usou o termo bioética para aplicá-lo à ética da medicina e ciências biológicas. [5]

Por outro lado, o estudioso Van Renssealer Potter, citado pelo estudo da professora Maria Helena Diniz, considerou o termo bioética no sentido ecológico, como "a ciência da sobrevivência"[6] sendo bioética

"(...) uma nova disciplina que recorreria às ciências biológicas para melhorar a qualidade de vida do ser humano, permitindo a participação do homem na evolução biológica e preservando a harmonia universal. Seria a ciência que garantiria a sobrevivência na Terra, que está em perigo, em virtude de um descontrolado crescimento da tecnologia industrial, do uso indiscriminado de agrotóxicos, de animais em pesquisas ou experiências biológicas e da sempre crescente poluição aquática, atmosférica e sonora." (7)

Porém, o termo e sua aplicação sofreram evoluções. Atualmente, entende-se a bioética como sendo o diálogo entre os diversos campos do saber, principalmente a filosofia e a ética, no sentido de encontrarem-se soluções para os problemas persistentes da sociedade, quais sejam: pobreza, desigualdade social, lentidão da justiça etc.

2.2.Conceito

Bioética é um neologismo obtido da junção de duas palavras ´bio´ (do latim, bios, significando vida) e ‘ética’ (do latim, ethike, significando ética).

De acordo com a professora Maria Helena Diniz, a "Encyclopedia of bioethics", em 1978, definiu bioética como sendo "o estudo sistemático da conduta humana no campo das ciências da vida e da saúde, enquanto examinada à luz dos valores e princípios morais." [8]

Porém, este conceito foi alterado em 1995, para:

"Bioética é (...) o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar." [9]

Devido a muitas discussões surgidas em decorrência da mudança literal do conceito de bioética, a professora Adriana Diaféria, embasada em estudos de Léo Pessini e Barchifontaine, comenta que

"(...) houve muita polêmica em torno dessa definição, devido à utilização da palavra ‘princípio’, que nos sugeria serem os princípios entendidos como regras normativas inventadas e aperfeiçoados pelos filósofos da moral aplicáveis aos problemas morais, quaisquer que fossem estes problemas. Assim, esta definição enfocava o conhecimento moral para os princípios éticos, excluindo, assim, os relacionamentos, emoções, narrativas, imagens, atitudes e convicções das pessoas envolvidas nos casos médicos, etc., como fontes sérias de conhecimento e normas morais." (10)

Dessa forma, preferiu-se à utilização da expressão "uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar", ao invés de "princípios." [11]

A bioética, lato sensu, deve ser entendida, como a resposta da ética aplicada com relação às novas tecnologias e procedimentos biomédicos, científicos e tecnológicos que interagem ou afetam o ser humano em suas acepções biológica e moral, bem como, strito sensu, atingirá a problemática do avanço predatório do ser humano, ou não, frente ao meio ambiente e a si próprio, oferecendo subsídios para a conciliação dos pontos divergentes.

2.3.Princípios

A bioética é o estudo epistemológico de áreas do conhecimento que buscam balizar as condutas humanas em vários campos científicos e tecnológicos – principalmente, campos que objetivam o estudo e a manipulação científica e terapêutica da vida –, [12] preocupando-se com a licitude da conduta humana, confrontando-a com os possíveis resultados e suas conseqüências, bem como, de todo o procedimento científico.

Tal balizamento deve ser realizado através dos quatro referenciais ou princípios básicos, que são: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça. Em nosso país, a Resolução do Plenário do Conselho Nacional da Saúde (CNS), n.º 196, de 10 de outubro de 1996, no seu item I, descreve e prevê tais referenciais.

Estes princípios têm origem, basicamente nos preceitos éticos da Medicina. Hipócrates, pai da medicina, desmistificou o ofício médico, deixando aos seus discípulos um Juramento (que é utilizado pelas Academias Médicas de todo o mundo), contendo as diretivas "principiológicas" para que todo médico siga, como explica o professor Joffre M. de Rezende:

"A escola hipocrática separou a medicina da religião e da magia; afastou as crenças em causas sobrenaturais das doenças e fundou os alicerces da medicina racional e científica. Ao lado disso, deu um sentido de dignidade à profissão médica, estabelecendo as normas éticas de conduta que devem nortear a vida do médico, tanto no exercício profissional, como fora dele." (13)

Os princípios albergados pela resolução do CNS n.° 196/96, são decorrentes, prima facie, do juramento Hipocrático. O juramento hipocrático é uma linha ética indispensável aos médicos, predispondo o uso benéfico dos conhecimentos médicos, para a sociedade e para a classe médica em geral.

Assim, nas palavras do professor José Eduardo de Siqueira:

"Definitivamente o clássico paternalismo hipocrático foi superado e passou-se então a debater sobre os limites sensatos do exercício da autonomia pelos pacientes. Abandonava-se a relação radicalmente assimétrica e vertical do paternalismo médico e assumia-se titubeantemente uma relação horizontal e totalmente simétrica." [14]

Dessa forma, foi necessário realizar um redimensionamento principiológico, para a efetivação do que é inerente não só à vida humana, mas a todo o ecossistema e à biosfera e, este redimensionamento acontece através da bioética. Interessante ponto de vista a ser analisado, do professor José Eduardo de Siqueira, de que

"a Bioética veio não como um modismo filosófico passageiro, mas sim para ficar em definitivo incorporada às decisões de todos os profissionais que relacionam-se com os seres humanos e a vida do próprio planeta." (15)

Corroborando do mesmo pensamento, a professora Matilde Carone Salibi Conti, comenta que

"O mundo moderno produziu grandes mudanças nas relações sociais, incluindo, evidentemente, as relações médico e paciente, que saíram de uma verticalidade imperial do médico para uma horizontalidade democrática na tomada de decisões." (16)

Dessa forma, vê-se que a bioética, além de ser uma resposta para os anseios da comunidade científica, é um passo firme e constante para o balizamento dos avanços científicos e tecnológicos, com um avanço em sua mentalidade e em sua aplicabilidade. Além disso, pode-se pensar que a bioética teria também o Direito como disciplina auxiliar e, como disciplina auxiliar, este deve também ser analisado pela bioética, como forma de controle das condutas sociais decorrentes de sua aplicação efetiva.

2.3.1. Princípio da autonomia

A autonomia é a união dos radicais autos, eu e nomos, lei. Significa a capacidade do ser humano desenvolver suas próprias leis e submeter-se a elas. Entende-se que o ser humano é capaz de fazer suas próprias escolhas e suas opções. Portanto, o princípio da autonomia é um dos mais novos na ética médica e pretende demonstrar que ao paciente do tratamento médico é dada a opção de escolha sobre seu destino terapêutico.

O professor Paulo Vinícius Sporleder de Souza, lembra, citando Stuart Mill que "sobre si mesmo, sobre seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano." [17]

Ainda, traz a colação o pensamento de Immanuel Kant sobre a autonomia da vontade que

"é a constituição da vontade, pela qual ela é para si mesma uma lei – independentemente de como forem constituídos os objetos do querer. O princípio da autonomia é, pois, não escolher de outro modo, mas sim deste: as máximas da escolha, no próprio querer, sejam, ao mesmo tempo, incluídas como lei universal." (18)

A professora Adriana Diaféria, porém, lembra, citando o The Belmont Report: Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects, que nem todas as pessoas são capazes de se auto-determinar, pois esta capacidade é perdida por algumas pessoas, total ou parcialmente, devido a circunstâncias, doenças ou distúrbios mentais que severamente restrinjam a liberdade. [19]

Dessa forma, a autonomia é decorrente da liberdade (independência do controle de influência) e da ação (capacidade de ação intencional), completando a lição de Beauchamp e Childress, que explicam:

"a autonomia tem diferentes significados, tão diversos como auto-determinação, direito de liberdade, privacidade, escolha individual, livre vontade, comportamento gerado pelo próprio indivíduo e ser propriamente uma pessoa." (20)

De acordo com o professor Francesco Bellino, "o princípio da autonomia estabelece o respeito a obrigatoriedade do consenso livre e informado, para evitar que o enfermo se torne um objeto." [21]

Assim, a professora Adriana Diaféria define que a

"autonomia é poder governar a si mesmo, o que contraria a idéia de heteronomia, que significa ser governado por outrem. Deve-se levar em conta todos os fatores relevantes para decidir agir da melhor maneira para todos, pois se se considera apenas um ponto de vista, não se pode ter moralidade." [22]

2.3.2. Princípio da não maleficência

O princípio da não maleficência, de acordo com a professora Adriana Diaféria, propõe a obrigação de não infligir dano intencional. Deriva da máxima da ética médica "primum non facere." [23]

De acordo com os ensinamentos do professor Francesco Bellino, o princípio da não maleficência (não-malevolência ou não-maleficente), decorre do juramento Hipocrático, prescrevendo a orientação de o médico não realizar condutas que prejudiquem o paciente, devendo ele não fazer o mal àquele que livremente consente e não se opõe. Isso tudo para evitar-se danos e para afastar-se a necessidade de controlar a imposição dos riscos. [24]

Cabe ressaltar a posição do professor Paulo Vinícius Spoleder de Souza que o princípio da não-maleficência integra o princípio da beneficência, contrariando ensinamento de autores como Beauchamp e Childress.

2.3.3. Princípio da beneficência

O princípio da beneficência decorre do termo "bonum facere", significando o fazer o bem para o paciente. [25]

Este princípio também decorre do juramento hipocrático, estabelecendo que há de se fazer o bem ao paciente.

Conforme lembra a professora Adriana Diaféria, citando o parágrafo 12 do primeiro livro de Epidemia de Hipócrates, "pratique duas coisas ao lidar com as doenças; auxilie ou não prejudique o paciente." [26]

O pensador W.K. Frakena comenta que o

"Princípio da Beneficência não nos diz como distribuir o bem e o mal. Só nos manda promover o primeiro e evitar o segundo. Quando se manifestam exigências conflitantes, o mais que ele pode fazer é aconselhar-nos a conseguir a maior porção possível de vem em relação ao mal." (27)

Portanto, o princípio da beneficência, é o benefício do paciente ou do sujeito da pesquisa, pois ele atua em favor de quem sofre ou de quem está em situação passiva nos tratamentos terapêuticos, "fazendo um maior bem, com o menor dano possível." [28]

.3.4. Princípio da justiça

O princípio da justiça, como visto acima, surgiu em 1994, e propõe uma repartição equânime dos benefícios e dos ônus, para evitar discriminações e injustiças nas políticas e nas intervenções sanitárias. [29]

De acordo com a professora Adriana Diaféria,

"seria uma visão de justiça distributiva, onde a visão de justiça compensatória não é muito utilizada pelos bioeticistas, principalmente pelos anglo-saxões, quem entendem este pincípio de forma diversa." (30)

Dessa forma, propõe-se com o princípio da justiça uma distribuição igualitária dos benefícios médicos e terapêuticos para aqueles que necessitam mas de acordo com sua necessidade e medido por critérios diferenciadores.

O Relatório Belmont, citado pela professora Adriana Diaféria, coloca as seguintes ponderações:

"Quem deve receber os benefícios da pesquisa e os riscos que ela acarreta? Esta é uma questão de justiça, no sentido de ‘distribuição justa’ ou ‘o que é merecido’. Uma injustiça ocorre quando um benefício que uma pessoa merece é negado sem uma boa razão, ou quando algum encargo lhe é imposto indevidamente. Uma outra maneira de conceber o Princípio da Justiça é que os iguais devem ser tratados igualmente. Entretanto esta proposição necessita uma explicação. Quem é igual e quem é não-igual? Quais considerações justificam afastar-se da distribuição igual? (...) Existem muitas formulações amplamente aceitas de como distribuir os benefícios e os encargos. Cada uma delas faz alusão a algumas propriedades relevantes sobre as quais os benefícios e encargos devam ser distribuídos. Tais como as propostas de que: 1º) a cada pessoa uma parte igual; 2.º a cada pessoa de acordo com a sua necessidade; 3.] a cada pessoa de acordo com o seu esforço individual; 4.º a cada pessoa de acordo com a sua contribuição à sociedade; 5.º) a cada pessoa de acordo com o seu mérito." [31]

No direito, principalmente no Direito Constitucional, o princípio da Justiça (baseado nos ensinamentos de Aristóteles, quando este propôs a justiça formal) [32] é utilizado de forma a conceder os benefícios legais àqueles que têm direitos iguais, e tratar desigualmente aqueles que são desiguais.

É uma interpretação, de certa forma, que não atinge os princípio da beneficência, pois não faz o bem igual para todos, mas, como ensina a Ética Individualista, o conceito de bem para um é diferente para outro. Para os cristãos, a parábola do bom samaritano é aplicável à qualquer situação, desde que seja abstraída todas as diferenças entre o autor e o receptor da bondade. Para os hindus, fazer o bem é deixar que cada indivíduo siga seu próprio "karma" (destino), em sua reencarnação ele poderá usufruir um bem maior, ou superior.

 

3. Princípio da dignidade da pessoa humana

Juntamente com a instituição de um Estado Democrático de Direito, são evidenciados, no Título I, os princípios fundamentais, sendo o da dignidade da pessoa humana um deles [33].

De acordo com a doutrina de Alexandre de Moraes,

"A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos." [34]

A dignidade da pessoa humana, na lição do professor José Afonso da Silva "é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida." [35]

A professora Maria Helena Diniz comenta que,

"Os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1.º, III) e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Deveras a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecerá sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico. Conseqüentemente, não poderão bioética e biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna." (36)

Miguel Reale, em sua obra "Pluralismo e liberdade", comenta que "(...) o processo de objetivação histórica levou a uma conquista axiológica: a do reconhecimento do valor da pessoa humana enquanto ‘valor-fonte’ de todos os valores sociais e, destarte, o fundamento último da ordem jurídica, tal como formulado, seja pela tradição do jusnaturalismo moderno, seja pela deontologia, no âmbito do paradigma da filosofia do direito." [37]

A dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, fornece ferramentas para a redução das injustiças cometidas nos diversos níveis sociais, culturais e econômicos. Além disso, são evidentes as diferenças entre regiões geográficas, bem como, diferenças no trato político-social. Com este princípio, é possível a redução destes problemas, bem como, ele se torna fundamento para teses sociais mais apuradas, que objetivam não somente, no campo científico-tecnológico, mas também no campo sócio-cultural, a consecução de um fundamento de toda República; assumindo estes preceitos, o Brasil terá condições de enfrentar os problemas sociais, sendo grave, a situação deplorável que está nosso sistema judiciário. Os grandes prejudicados não são os "ricos" litigantes, mas aqueles que não conseguem tratamento de saúde de qualidade e, quando o tem, mesmo precário, ainda não são bem atendidos, devendo recorrer àquele sistema trino, já citado, defasado, moroso e injusto. Aí, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser aplicado, juntamente com outros princípios constitucionais, como o da saúde, no artigo 6.°, além daqueles princípios bioéticos já elencados, principalmente, os princípios da não-maleficência e o da justiça.


4. Jurisdição e a efetividade da ordem jurídica justa

Segundo ensinamento dos professores Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, a jurisdição:

"é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve com justiça." (38)

Assim, destaca-se que o Estado se substitui aos titulares daquele direito material lesionado e, o Estado dará uma solução imparcial e justa para aquele conflito. Continuam, os nobre professores:

"A realização do direito objetivo e a pacificação social são escopos da jurisdição em si mesma, não das partes." (39)

É evidente que a jurisdição tem por finalidade a pacificação social, mesmo que essa pacificação seja entre sujeitos particulares, o Estado tem por dever fundamental fomentar isto. Porém, hodiernamente, a jurisdição ("juris" + "dicto"= dicção do direito) não pode mais ser entendida como a aplicação do direito legal, ou seja, da "letra fria" da legislação. A jurisdição moderna possui, como já explicitado, ferramentas principiológicas, principalmente fundamentadas no princípio da dignidade da pessoa humana, que a autorizam fazer justiça.

Não é outra a dicção dos ensinamentos dos professores Cintra, Grinover e Dinamarco:

"A ordem jurídico-positiva (Constituição e leis ordinárias) e o lavor dos processualistas modernos têm posto em destaque uma série de princípios e garantias que, somados e interpretados harmoniosamente, constituem o traçado do caminho que conduz as partes à ordem jurídica justa." (40)

A ordem jurídica justa, à luz da instrumentalidade do processo, é assumir que o processo não está ligado com a lei material. Como estudamos nas Academias, o processo não é somente direito adjetivo e o direito material, não é somente direito substantivo. Como nos ensina Cintra, Grinover e Dinamarco:

"O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos indivíduos que a compões: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por tr~es ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídica. A consciência dos escopos da jurisdição e sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político." [41]

O acesso à justiça, a instrumentalidade do processo como formas da consecução de uma ordem jurídica justa, devem superar os óbices econômicos e jurídicos que se antepõem ao livre acesso à justiça, [42] bem como, o processo como meio de aplicação da jurisdição, deve atender aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da vida e da saúde.

A ordem jurídica justa está para o processo assim como o processo bem realizado está para a pacificação social efetiva. E somente será bem realizado o processo, quando em seu término, a decisão seja justa e eficaz.

Entendemos por ordem jurídica justa quando efetiva-se os princípios constitucionais da cidadania e do acesso à justiça (art. 1.°, I c/c art. 5.° XXXV), assegurando-se a integridade física, moral e social (art. 5.°, X), no sentido de resguardar-se a dignidade da pessoa humana (art. 1.°, III). Além disso, se faz necessário a celeridade dos processos em geral, bem como, a moralidade das decisões, para a efetivação do art. 5.°, III, onde se consagra o direito de não ser submetido a tratamento desumano ou degradante.


5. Conclusão

Atualmente, a realidade biotecnológica versus a realidade social, leva os aplicadores do direito a terem dificuldades de interagirem com as necessidades individuais daqueles que demandam nesta seara.

Fatos como reprodução humana assistida, mudança de sexo, adoção por homossexuais, casamento entre homossexuais, clonagem terapêutica, aborto seletivo, transgênicos, terapia gênica entre outros, faz com que o direito não possa mais ficar inerte naquele princípio "nulla poena sine lege". Os princípios e fundamentos constitucionais estão dispostos sistematicamente de forma a permitir que a consecução de "direitos" pessoais, morais e sociais não reconhecidos pela lei sejam albergados pelas decisões judiciais.

Assim, faz-se necessário um estudo multidisciplinar entre a bioética e o direito, onde seja possível a utilização dos princípios e fundamentos, de ambos os campos do saber, para a efetiva busca de uma ordem jurídica justa e igualitária, no real sentido do artigo 5.°, "caput" da nossa Constituição Cidadã.

Os aplicadores do direito não podem mais utilizar o processo como simples ferramenta protetiva de direitos injustos, muito menos, utilizar o sistema recursal vigente em nosso país como forma de desqualificar as decisões monocráticas no sentido de protelar algo que flagrantemente está errado e injusto.

A bioética veio como forma de abrir o diálogo entre a ética aplicada e as ciências da saúde, porém, temas emergentes com relação àquelas ciências, que estão na pauta das discussões dos países em desenvolvimento, faz com que os bioeticistas tenham que se debruçar sobre questões muito mais significativas e efetivas para a situação social e moral. Assim, o direito, como disciplina auxiliar, deve, ajudar, efetivando os direitos constitucionais, os princípios e garantias fundamentais e, através do processo, deve orientar as decisões no sentido da efetividade de uma ordem jurídica e eticamente justa.

A miscigenação de valores éticos, morais, sociais e religiosos, num primeiro momento, após um diálogo aberto e sem pretensões, ajudará o direito na busca de parâmetros legais suficientes para embasarem as decisões futuras sobre aqueles direitos materiais lesionados. Num segundo momento, pode-se esperar por uma sociedade mais humana e justa.


Notas bibliográficas:

1 Luiza Pastor e Mário Chimanovitch. A humanização da justiça: entrevista com David Diniz Dantas. n.° 1804. Revista Isto É. São Paulo : Editora Três, 2004.

2 Excertos do capítulo 3 da nossa monografia "Clonagem terapêutica: aspectos bioéticos e seus reflexos no direito", apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito de Bauru da Instituição Toledo de Ensino como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em direito sob a orientação do Prof. Ms. Ney Lobato Rodrigues. pp. 19-31.

2 Adriana Diaféria, Clonagem, aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru : EDIPRO, 1999. p. 81.

3 Idem. Op. cit., p. 81.

4 Op. cit., p. 81.

5 Maria Helena Diniz. O estado atual do biodireito. 2. ed. aum.e atual. São Paulo : Ed. Saraiva, 2002. p. 9

6 Idem. Op. cit., p. 9.

7 Op. cit., p. 10.

8 Encyclopedia of Bioethics, 2ª edição, vol. 1, introdução, pág. XXI, W.T. Reich, editor responsável, 1995 apud Adriana Diaféria, op cit, p. 84.

9 Op. cit., p. 84.

10 Adriana Diaféria. Op. cit., p. 84.

11 Pietro de Jesus Lora Alarcón, As conquistas da genética e sua importância na proteção constitucional da vida humana: uma proposta de emenda para a proteção do patrimônio genético humano na Constituição Federal de 1998. Tese de Doutorado. São Paulo : Pontifícia Universidade Católica, orientador: prof. Dr. Luiz Alberto David Araújo, 2002. p. 176.

12 Joffre M. de Rezende, Caminhos da medicina, disponível em <http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/orkos.htm>, acesso em 02.out.2003.

13 José Eduardo de Siqueira, Os princípios da bioética, disponível em <http://www.gobloodless.org/saopaulo/siqueira.doc>, acesso em 02.out.2003.

14 Op. cit.

15 Matilde Carone Slaibi Conti, Ética e direito na manipulação do genoma humano. Rio de Janeiro : Editora Forense, 2001. p. 16.

16 Paulo Vinícius Sporleder de Souza, A criminalidade genética. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 103.

17 Paulo Vinícius Sporleder de Souza, op. cit., p. 103.

18 Op. cit., p. 87. O Relatório de Belmont foi a resposta dada pelo Congresso norte-americano ao aumento das experiências científicas com seres humanos, na década de 1970, instituindo limites éticos para tais experiências.

19 Op. cit., p. 87.

20 Francesco Bellino, Fundamentos da bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Trad. Nelson Souza Canabarro. Bauru : EDUSC, 1997, p. 198.

21 Op. cit., p. 88.

22 Op. cit., p. 85.

23 Op. cit., p. 198-199.

24 Op. cit., p. 85.

25 Op. cit., p. 85.

26 W.K. Frakena, Ética, Rio de Janeiro : Zahar, 1981, p. 61-73, apud Paulo Vinícius Sporleder de Souza, op. cit., p. 104.

27 Matilde Carone Slaibi Conti, op. cit., p. 17.

28 Francesco Bellino, op. cit., p. 199.

29 Op. cit., p. 88

30 The Belmont Report: Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects. DHEW Publications, (OS) 78-0012, Washington, 1978, apud Adriana Diaféria, op. cit., p. 88-89.

31 Adriana Diaféria, op. cit., p. 89.

32 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988, inc. III, art. 1.º.

33 Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo : Atlas, 2002. p. 50.

34 José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. rev. atual. São Paulo : Editora Malheiros, p.105.

35 Op. cit., p. 17.

36 Miguel Reale, Pluralismo e liberdade, São Paulo : Saraiva, 1963, p. 63 e 80 (Cap. 2, nota 57) apud Maria Helena Diniz, op. cit., p. 17, nota 43.

37 CINTRA, A.C.R.; GRINOVER, A.P.; DINAMARCO, C.R. Teoria Geral do Processo. 15. ed. São Paulo : Editora Malheiros, 1999. p. 129.

38 Idem. op. cit. p. 132.

39 Idem. op. cit. p. 33.

40 Idem. op. cit.p. 41.

41 Idem. op. cit. P. 42.