Biodireito, complexidade e responsabilidade: uma análise jurídica da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil


Pormarina.cordeiro- Postado em 02 abril 2012

Autores: 
DUARTE, Isabel Cristina Brettas

Resumo

O presente artigo versa sobre o Princípio Responsabilidade de Hans Jonas, tendo por escopo analisar juridicamente a liberação pelo Supremo Tribunal Federal das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. Verificou-se que a dignidade humana foi o critério hermenêutico utilizado pelo STF no julgamento da ADIN 3.510, tendo sido utilizada como principal argumento para a solução da controvérsia jurídica, servindo de diretriz material para a identificação do Princípio Responsabilidade, partindo do pressuposto de que existem direitos e princípios implícitos ou decorrentes que pertencem ao corpo fundamental da Constituição Federal, mesmo não constando expressamente no texto constitucional. A questão posta exemplifica a necessidade do Direito de enfrentar esse tipo de discussão de forma inovadora e reflexiva, pois as implicações tecnocientíficas no seio da sociedade multicultural são uma realidade inexorável.

Palavras-chave: biodireito; complexidade; responsabilidade.

This paper focuses on the Principle of Responsibility Hans Jonas, with the aim to analyze legally release the Supreme Court of the research with embryonic stem cells in Brazil. It was found that human dignity was the criterion of interpretation used by the Supreme Court in the trial of ADIN 3510 and was used as the main argument for the settlement of legal dispute, serving as guidance material for identifying the liability principle, assuming that there rights and principles or implied therefrom, which belong to the main body of the Federal Constitution does not expressly mentioned in the text. The question posed exemplifies the need for law to tackle this kind of discussion in an innovative and reflective, as the techno-scientific implications within the multicultural so ciety is an inexorable reality.

Keywords: biolavo; complexity; responsibility.

 

Texto

 

Introdução

1 O agir bi otecnológico no contexto do biodireito

2 A complexidade, o direito e a ciência

3 O princípio responsabilidade de Hans Jonas

4 A liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil à luz do princípio responsabilidade

    4.1 A fundamentação constitucional da ADIN 3.510: vinculações ao princípio responsabilidade

Conclusão

Referências

 

Introdução

O presente artigo é fruto da pesquisa desenvolvida na dissertação de Pós-Graduação Strictu Sensu – Mestrado em Direito da URI – Campus de Santo Ângelo, intitulada “O Princípio Responsabilidade de Hans Jonas e sua aplicabilidade no contexto da Bioética: uma análise jurídica da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil”, defendida no dia 22 de junho de 2009. Por razões metodológicas, ora optamo s por enfocar o estudo da matriz teórica do trabalho, qual seja, o Princípio Responsabilidade, e sua aplicação na liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil, principalmente no que toca às considerações finais da pesquisa, mas isso exige que se contextualize essa temática e sua importância no âmbito do Biodireito. 

Ao que se constata, a Biologia vem alterar por completo as noções tradicionais de procriação e filiação, fazendo-se imprescindível a junção entre Bioética e Biodireito, ou seja, da ética, com os valores morais de uma sociedade e, ao mesmo tempo, limitando e impondo leis que assegurem o respeito à vida humana, de forma a coagir e a limitar o progresso científico. Há de se destacar que a abordagem do assunto sob a lente dos direitos humanos ganha destaque no século XX, em especial após a II Guerra Mundial, quando é proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, bem como após a promulgação, pela ONU, em 10 de novembro de 1975, da Declaração sobre a utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade.2 

O Direito é um fenômeno do mundo da cultura, a qual está imbricada na sociedade, demonstrando que a discussão ultrapassa as lindes jurídicas, penetrando nas diferentes formas de culturas e sociedades que coexistem na contemporaneidade – numa situação multicultural por excelência. E do reconhecimento de que a ciência também é falha decorre a insegurança - pode-se dizer que hostilizada na seara jurídica -, que traz o medo e a desconfiança ao novo. Nesse sentido, lembra ao Direito – em sua arraigada busca pela segurança jurídica de que a insegurança, a provisoriedade e a relatividade fazem parte da nossa condição humana. 

Apesar de e justamente por ser um tema polêmico sobre o qual não há respostas objetivas e imediatas, o importante e gratificante é trilhar o caminho, descobrindo que a cada passo dado, haverá muitos outros passos. Por isso, o papel do Direito é trilhar esse caminho juntamente com outras áreas do conhecimento, de forma a estar num permanente processo de discussão e reflexão. O Direito emerge das relações sociais, seu desenvolvimento através dos tempos obedeceu inexoravelmente aos vetores culturais, que trazem implicações jurídicas. Assim, se mudam os tempos, mudam as vontades – e muda o Direito, que necessita amparar eficazmente as novas demandas que lhe são colocadas. 

Assim, a questão central deste trabalho, cujo desafio é respondê-la no decorrer da pesquisa, é verificar se o Princípio Responsabilidade jonasiano está presente na decisão do STF que liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil, investigando como a referida decisão albergou esse princípio e se de fato a sua consideração é imprescindível no deslinde da questão, a partir da premissa de que é preciso pensar a mudança de paradigmas[3] trazida pela ciência, situação esta vivenciada na sociedade multicultural. Afinal, tais rupturas não só têm o condão de transformar conceitos, mas também de transformar a vida das pessoas, ensejando, também, transformações no conhecimento jurídico e, principalmente, o anseio por novos conhecimentos que precisam se integrar ao arcabouço jurídico para que o Direito possa dar respostas satisfatórias e coerentes às novas questões que lhe são postas. 

 

1 O agir bi otecnológico no contexto do biodireito

Primeiramente, pode ser traçado um paralelo entre a diferenciação de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais com a que existe entre Bioética e Biodireito. No primeiro caso, os Direitos Humanos ao serem agasalhados em seio constitucional transforman-se em Direitos Fundamentais. A Bioética, quando sai do campo axiológico e é positivada no ordenamento jurídico, transmuda-se em Biodireito.[4] Se inúmeras são as indagações relativas à Bioética, estas multiplicam-se quando há referências ao Biodireito, que é o mais recente ramo do Direito que estuda as normas reguladoras da conduta humana perante as novidades apresentadas pela medicina e exploradas pela biotecnologia, numa visão que engloba o resultado presente e futuro na preservação da dignidade humana. Para Norberto Bobbio: 

A esfera do Biodireito é um campo que se caminha sobre o tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra a pessoa ou a espécie humana. O Biodireito engloba os denomin ados direitos de Quarta geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos dos avanços tecnológicos na biomedicina, nos quais se quer fundamentar a esperança de construção de uma nova humanidade. Após os direitos individuais (de 1º geração), os direitos sociais (de 2º geração) e os direitos ecológicos (de 3º geração), vivemos os de 4º geração, cujas exigências estão concentradas nos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.[5] 

Cabe ao Direito, através da lei, entendida como expressão da vontade da coletividade, definir a ordem social na medida em que dispõe dos meios próprios e adequados para que essa ordem seja respeitada. Criar as leis ou adaptá-las não significa que elas devam evoluir ao sabor dos progressos científicos, fornecendo conceitos adaptados às mudanças sociais que a pesquisa científica induz na definição de vida, pois, isso seria reduzir o Direito a uma função instrumental e livre de todas as referências a valores. Isso porque o Direito veicula um certo número de valores, por conseguinte, deve evoluir para acompanhar o progresso científico e adaptar-se aos avanços médicos, dentro das regras preestabelecias pela sociedade. 

O Biodireito se relaciona a uma nova dimensão dos direitos do homem, com as mesmas características inclusivas da democracia. Os direitos reconhecidos, promovidos e garantidos pelo ordenamento (face jurídica) se vinculam, na mesma pessoa humana, os respectivos deveres para consigo e para as demais pessoas humanas (face ética). Por isso, o Biodireito não deve se nortear pura e simplesmente pelo critério da validade formal, na medida em que expressa o compromisso operacional com a validade substancial, material, isto é, com a validade ética, influenciando o traçado de uma hermenêutica jurídica de promoção da vida.[6] 

Portanto, o ponto crucial do debate uma série de questões relacionadas ao Biodireito reside na falta de informação técnica dos juristas, que desconhecem os problemas biológicos atinentes à vida humana. Esse desenvolvimento da biotecnologia está indissociavelmente atrelado à evolução da sociedade multicultural, mas principalmente quando se fala em manipulações genéticas é que se pode perceber a importância do assunto e o quanto ele carece de reflexão ética acerca dos seus limites. Já houve bastante desencantamento com os rumos da tecnologia, principalmente com sua utilização na Segunda Guerra Mundial, quando surgiu no horizonte um poder tecnológico onipotente, utópico e de efeitos perversos, e também da biotecnologia, com possibilidades de transformações aleatórias do homem e da natureza. Tudo isso traz a necessidade de novos imperativos para o agir tecnológico, que atendam os novos espaços de ação e de poder, principalmente no que tange ao uso responsável da tecnologia,[7] situação esta em relação à qual o Direito não pode ficar à margem. 



2 A complexidade, o direito e a ciência

Na medida em que as potencialidades tecnológicas, que tanto podem ser destruidoras quanto transformadoras, podem provocar consequências imprevisíveis no futuro, verifica-se o temor expressado por Morin: “pressentimos que a engenharia genética tanto pode industrializar a vida como biologizar a indústria”.[8]Essa idéia pode parecer extremista, mas ao analisar as vicissitudes da história humana, percebe-se que nunca houve nada que pudesse representar um caminho tão dicotômico como a manipulação genética,[9] que causa fascinação e perplexidade, aliados ao sentimento de medo e insegurança. Porém a principal preocupação hoje não é julgar a ciência, mas sim de chamar atenção sobre a sua ambivalência, bem como sobre os novos contornos que se desenham na manipulação genética, cujos questionamentos eram até pouco tempo inimagináveis. 

Daí Morin ter afirmado que a ciência é complexa porque é inseparável de seu contexto histórico e social, e que a ciência não é científica, pois sua realidade é multidimensional, ou seja, os efeitos da ciência envolvem riscos e não são simples nem para o melhor, nem para o pior; são profundamente ambivalentes. Isso tudo porque “a ciência é, intrínseca, histórica, sociológica e eticamente, complexa. A ciência tem necessidade não apenas de um pensamento apto a considerar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento para considerar sua própria complexidade e a complexidade das questões que ela levanta para a humanidade”.[10] 

É altamente provável que a ciência seja a mais complexa, poderosa e influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há muitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e estabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensões da vida: “o ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu ídolo ao qual tudo o mais – especialmente outras formas de racionalidade – é sacrificado”.[11] Porém essa racionalidade tem uma faceta objetiva e outra subjetiva, pois as teorias científicas são construções do espírito, não são reflexos do real, por mais que tentem aplicá-lo: são traduções do real numa linguagem que é a nossa, ou seja, aquela de uma dada cultura, num dado tempo. De um lado, as teorias científicas são produzidas pelo espírito humano; portanto, elas são subjetivas. De outro, estão fundamentadas em dados verificáveis e portanto, objetivos.[12] 

Segundo Morin, os cientistas formados segundo os modelos clássicos do pensamento se afastam dessa complexidade, mais precisamente no que se refere ao dogma clássico da separação entre ciência e filosofia, e não conseguem entender que todas as ciências avançadas deste século encontraram e reascenderam as questões filosóficas fundamentais: o que é o mundo? a natureza? a vida? o homem? a realidade? Os maiores cientistas desde Einsten, Boher e Heisenberg transformaram-se em filósofos selvagens. É de se esperar que as transformações que começaram a arruinar a concepção clássica de ciência vão continuar em verdadeira metamorfose. [...] Não haverá transformação sem reforma do pensamento, ou seja, revolução nas estruturas do próprio pensamento. O pensamento deve se tornar complexo.[13] 

O conceito de complexidade está indissociavelmente ligado à ideia do desaparecimento das sociedades como sistemas integrados e portadores de um sentido geral, definido ao mesmo tempo em termos de produção, de significação e de interpretação, o que coloca os seres humanos diante de um mundo objetivo, em que há uma crise dos indivíduos sobrecarregados de problemas para cuja solução já não encontram nenhuma ajuda nas instituições nem civis nem jurídicas nem religiosas, redundando na inquietude, e mesmo angústia, que nascem da perda de nossos pontos de referência habituais.[14] Por isso, é preciso compreender o que foi dito por Morin sobre a complexidade: 

A complexidade é um problema, é um desafio, não é uma resposta. O que é a complexidade? [...] Num primeiro sentido, a palavra complexus significa aquilo que está ligado em conjunto, aquilo que é tecido em conjunto. E é este tecido que se deve conceber. Tal como a complexidade reconhece a parte da desordem e do imprevisto em todas as coisas, também reconhece uma parte inevitável de incerteza no conhecimento. É o fim do saber absoluto e total. A complexidade tem a ver, ao mesmo tempo, com o tecido comum e com a incerteza.[15] 

É sabido que uma das facetas da modernidade é a ciência, e como afirmou Beck, duas guerras mundiais, a invenção de armas destrutivas, a crise ecológica global e outros desenvolvimentos do presente século poderiam esfriar o ardor até dos mais otimistas defensores do progresso por meio da investigação científica desenfreada. Mas a ciência pode – e deve – ser encarada como problemática nos termos de suas premissas.[16] Dessa forma, uma das facetas da modernização – e portanto da globalização e também do multiculturalismo – é o desenvolvimento científico e tecnológico, que aumenta a chamada complexidade.

egundo Morin, há que fazer um progresso da idéia de progresso, o qual deve deixar de ser noção linear, simples, segura e irreversível para tornar-se complexa e problemática. A noção de progresso deve comportar auto-crítica e reflexividade.[17] Com relação a esse progresso, Morin também referiu que o dinamismo do conhecimento científico sustenta uma curiosidade inesgotável, pois um conhecimento, uma descoberta, a resolução de um enigma faz surgir novos enigmas, novos mistérios: “a aventura do conhecimento é non stop, porque, quanto mais se sabe, menos se sabe. Quanto mais sábio, mais ignorante. Essa aprendizagem da nossa ignorância é positiva já que nos tornamos conscientes da ignorância de que éramos inconscientes. Portanto, existe um dinamismo que está no seu próprio movimento”.[18] 

Assim, a partir da vivência da complexidade, houve um crescente despertar de consciência ética em relação a diversos desafios levantados pelos avanços científicos e pelo progresso econômico e técnico, pois começou a se perceber que “nem toda descoberta científica e nem toda vantagem tecnológica trazem sempre efeitos puramente benéficos para as pessoas e a sociedade. Ela acorda da visão ingênua de uma ciência isenta de interesses espúrios e de uma técnica limpa e benéfica”,[19] mesmo porque não há instante isolado, neutro ou indiferente para a vida. Esta é sua essencial não-neutralidade, pois o ser humano é um ser não neutro por excelência.[20] 

 

3 O princípio responsabilidade de Hans Jonas

Hans Jonas[21] destacou-se principalmente por seus estudos na área da ética aplicada ao contexto da civilização tecnológica, o que está mais ligado ao último período da sua obra.[22] Uma das mais importantes vozes filosóficas do final do século XX, sua pesquisa convergiu para a análise de como proteger a vida humana em seu sentido mais abrangente – físico e espiritual - da tecnologia dentro de uma ética que não a tradicional: a ética da responsabilidade, que veio complementar e coroar seu estudo. 

Hans Jonas criticou na obra “O Princípio Responsabilidade”[23] a falta de limites com que o homem tem perseguido o seu sonho, sonho este que se revelou uma utopia, criticando pormenorizadamente o ideal utópico de Bacon, Marx e Bloch. Criticou o sonho da prosperidade material conseguida pelo poder-dominação sobre a natureza, prosperidade esta que inegavelmente aconteceu, porém desacompanhada de um desenvolvimento ético e espiritual, consubstanciado na ligação do ser humano consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com o sentido transcendente da vida.[24] 

A proposta de Jonas se contrapunha ao imperativo kantiano, proposto nos moldes do positivismo jurídico que vigorava no século XIX, sob a influência da Escola Positivista de Augusto Comte. Kant propunha a construção de uma teoria pura do Direito, garantindo a segurança da sociedade ao sustentar, em suma, que só é direito aquilo que o poder dominante determina e o que ele determina só é direito em virtude dessa circunstância.[25] Assim, a ética acabava sendo um elemento estranho ao Direito, quase que extrajurídico, pois haveria uma lei ética autônoma e independente, imune às críticas produzidas no campo da ciência. 

A ciência racional devia possuir princípios gerais a priori, isto é, independentemente das contingências e circunstâncias externas. Sua teoria do conhecimento[26] visava determinar os princípios que governam o entendimento

humano e os limites de sua aplicação. Já Hans Jonas, ao afirmar que nenhuma ética tradicional nos instrui sobre as normas do bem e do mal às quais se devem submeter as modalidades inteiramente novas do poder e de suas criações possíveis, alertou para a insuficiência desse modelo kantiano. Por ter consciência de suas possibilidades e ter suficiente liberdade em sua escolha, o homem é responsável por seus atos, pois é criador deles. 

O ponto de partida do livro é justamente a figura de Prometeu desacorrentado,[27] símbolo das novas e imensas possibilidades com que a técnica moderna equipa o agir humano, alterando essencialmente o horizonte e as coordenadas espaço-temporais em que se inscreve e onde desdobra seus efeitos o agir humano. Esse agir está a exigir uma normatização ética que seja adequada e proporcional a sua natureza e à nova ordem de grandeza e de poder no espaço onde se desenrola esse agir e as novas dimensões de responsabilidade que esse mesmo agir suscita.[28] 

Assim, como se pode perceber, desde o prefácio Hans Jonas já introduz a ideia a ser desenvolvida, de que “o Princípio Responsabilidade contrapõe a tarefa mais modesta que obriga ao temor e ao respeito: conservar incólume para o homem, na persistente dubiedade de sua liberdade que nenhuma mudança das circunstâncias poderá suprimir, seu mundo e sua essência contra os abusos de seu poder”.[29] Daí ter sido categórico quando afirmou que nenhuma motivação, por mais louvável que seja, poderá servir de desculpa para as insuficiências filosóficas da argumentação. Hans Jonas se dedicou a explicar como a natureza modificada do agir humano também impõe uma modificação na ética, explicando o modo como a técnica moderna afeta essa natureza do agir humano, e até que ponto ela torna sob seu domínio algo diferente do que existiu ao longo dos tempos. 

O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam-se na ação, seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam um planejamento de longo prazo. Essa proximidade de objetivos era válida tanto para o tempo quanto para o espaço. O alcance efetivo da ação era pequeno, o intervalo de tempo para previsão, definição de objetivo e imputabilidade era curto, e limitado o controle sobre as circunstâncias. O longo trajeto das consequências ficava ao critério do acaso, do destino ou da providência. Por conseguinte, a ética tinha a ver com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, com as situações recorrentes e típicas da vida privada e pública.[30] 

Esse novo problema ético é produzido pelo hiato entre a força da previsão e o poder do agir. É aqui que o reconhecimento da ignorância torna-se o outro lado da obrigação do saber, como um necessário autocontrole sobre o excesso de poder. Até então, nenhuma ética anterior havia considerado a condição global da vida humana e o futuro distante, de modo que “o fato de que hoje eles estejam em jogo exige, numa palavra, uma nova concepção de direitos e deveres, para a qual nenhuma ética antiga pode sequer oferecer os princípios, quanto mais uma doutrina acabada”.[31] 

Assim, Jonas trouxe o imperativo kantiano, que dizia: “Aja de tal modo que tu também possas querer que a tua máxima se torne lei geral”, contrapondo-o a um novo imperativo, adequado ao novo tipo de agir humano: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou, expresso negativamente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; ou, simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra; ou, em um uso novamente positivo: Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer”.[32] 

Dessa forma, os novos tipos e limites do agir exigem uma ética de previsão e responsabilidade compatível com esses limites, que seja tão nova quanto as situações que emergem das obras dohomo faber na era da técnica. Mas o próprio homem passou a figurar entre os objetos da técnica. O homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a re-fabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto, numa verdadeira culminação dos seus poderes.[33]Para Jonas, o homem quer tomar em suas mãos a sua própria evolução, a fim não meramente de conservar a espécie em sua integridade, mas de melhorá-la e modificá-la segundo seu próprio projeto. 

Por isso, “saber se temos o direito de fazê-lo, se somos qualificados para esse papel criador, tal é a pergunta mais séria que se pode fazer ao homem que se encontra subitamente de posse de um poder tão grande diante do destino”.[34] Somos permanentemente confrontados com perspectivas finais cuja escolha positiva exige a mais alta sabedoria – uma situação definitivamente impossível para o homem em geral, pois ele não possui essa sabedoria. O poder tecnológico transformou sonhos em realidade, ou melhor, transformou aquilo que costumava ser exercícios hipotéticos da razão especulativa em esboços concorrentes para projetos executáveis. 

Assim, quando a natureza nova do nosso agir exige uma nova ética de responsabilidade de longo alcance, proporcional à amplitude do nosso poder, ela também exige, em nome daquela responsabilidade, uma nova espécie de humildade – uma humildade não como a do passado, em decorrência da pequenez, mas em decorrência da excessiva grandeza do poder, pois há um excesso do poder de fazer sobre poder de prever e sobre o poder de conceder valor e julgar. Graças ao tipo e à magnitude dos seus efeitos de bola-de-neve, o poder tecnológico nos impele adiante para objetivos de um tipo que no passado pertenciam ao domínio das utopias. Por isso, disse que na escolha entre eles deveríamos escolher entre extremos de efeitos distantes, em sua maioria desconhecidos.[35] 

Jonas esclareceu – no que se refere à heurística do medo - que não se trata de um temor do tipo “patológico”, que nos acomete de forma súbita diante do seu objeto, e sim de um temor do tipo espiritual, como resultado de uma atitude deliberada. O que basta para um prognóstico de curto prazo, intrínseco a todas as obras da civilização técnica, não pode bastar para o prognóstico de longo prazo almejado na extrapolação requerida pela ética. A certeza de que desfruta a primeira, sem a qual a empresa tecnológica inteira não poderia funcionar, encontra-se para sempre recusada à outra. Porém, para Jonas, isso não impede a projeção de efeitos finais prováveis ou apenas possíveis. E o mero saber sobre possibilidades, certamente insuficiente para previsões, é suficiente para os fins da casuística heurística posta a serviço da doutrina ética dos princípios.[36] 

Como se depreende do pensamento jonasiano, o princípio ético fundamental, do qual o preceito extrai sua validade, é o seguinte: a existência ou a essência do homem, em sua totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir.[37] Quando Hans afirmou com relação ao primeiro imperativo, de que exista uma humanidade, que “em virtude do imperativo de que deva existir uma humanidade, a rigor não somos responsáveis pelos homens futuros, mas sim pela idéia do homem, cujo modo de ser exige a presença da sua corporificação no mundo”, refere-se ao dever de existir mas também do modo de existir da posteridade. Assim, tratava-se de uma responsabilidade ontológica da idéia de homem, a qual engendra um imperativo categórico, não hipotético.[38] 

Nesse contexto, o caráter vindouro daquilo que deve ser objeto de cuidado constitui o aspecto de futuro mais próximo da responsabilidade,[39] e a única certeza, paradoxalmente, seria a da incerteza. Ela significa que o inesperado e o imprevisível são indissociáveis dos assuntos humanos.[40] Isso quer dizer que temos que contar com o novo, embora não possamos calculá-lo. Invenções e descobertas futuras não podem ser antecipadas e incluídas em cálculos futuros. O único certo é que elas acontecerão e algumas delas terão um significado prático enorme e mesmo revolucionário.[41] Daí sua preocupação com a prevenção.[42] 

Ao princípio da esperança,[43] Hans Jonas contrapôs o Princípio Responsabilidade, e não o princípio medo – confusão esta que não pode ser feita em razão da sua heurística do medo, já mencionada anteriormente, cujos termos são completamente distintos de um princípio medo. Mas certamente, assiste razão a Jonas quando afirmou que o medo pertence à responsabilidade, tanto quanto a esperança. Já que ele tem uma imagem menos cativante, e mesmo uma certa máreputação psicológica e moral em círculos bem pensantes, novamente assumiu sua defesa, pois “o medo é hoje mais necessário do que o foi em outros tempos, quando, confiando-se no rumo correto das ações humanas, se podia desprezá-lo como uma fraqueza dos pusilânimes e dos medrosos”.[44] 

Sobre a esperança, disse que é uma condição de toda ação, na medida em que ela supõe ser possível fazer algo e diz que vale a pena fazê-lo em uma determinada situação, pois é uma das condições da ação responsável não se deixar deter por esse tipo de incerteza – os homens experientes sabem que um dia podem ter desejado não ter agido desta ou daquela forma – assumindo-se, ao contrário, a responsabilidade pelo desconhecido, dado o caráter incerto da esperança; isso é o que chamamos de “coragem para assumir a responsabilidade”. O medo que faz parte da responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não agir, mas aquele que nos convida a agir. Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da responsabilidade; fundamentalmente vulnerável.[45] 

Já a responsabilidade é o cuidado reconhecido como obrigação em relação a um outro ser, que se torna preocupação quando há uma ameaça à sua vulnerabilidade, e que como já dito, pressupõe o medo, o qual está presente na questão original.[46] Jonas pregou, então, a recuperação de um respeito e de um medo que nos protejam dos caminhos do nosso poder, por exemplo, de experimentos com a constituição humana. Para ele, o paradoxo atual está em que precisamos recuperar esse respeito a partir do medo.[47] 

Portanto, o estudo da obra “O Princípio Responsabilidade”, de Hans Jonas, adquire novas dimensões, relativamente recentes na seara jurídica; pois faz parte de uma moderna cultura jurídica, surgida a partir das novas exigências da sociedade em termos de novas interpretações e novas práticas, na busca por uma prática jurídica voltada às necessidades, conflitos e problemas da vida humana em todos os seus aspectos: social, cultural, política, filosoficamente. Esse é o desafio do debate sobre o Princípio Responsabilidade: a complexidade da vida humana e da tecnociência traz novos desafios ao Direito, pois exige novas reflexões, posturas e cuidados, principalmente no sentido de (re)definição de regras, limites, procedimentos; regulamentação esta à qual o Direito não pode se furtar. 



4 A liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil à luz do princípio responsabilidade

Recentemente, o STF esteve diante da difícil tarefa de decidir se deveria manter, à luz da Constituição da República Federativa do Brasil, a autorização dada pela Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, no art. 5º e §§, para fins de pesquisa e terapia, sob determinadas condições, ao uso de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro.Alegou a Procuradoria-Geral da República, por meio do Procurador da República, que tal autorização violaria o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, objetos respectivos do art. 5º,caput, e do art. 1º, inc. III, da CF/88.[48] Em votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.510-0 , o Supremo Tribunal Federal, no dia 29 de ma io de 2008, liberou o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas no Brasil. Seis dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal votaram pela manutenção do mencionado artigo 5º da Lei de Biossegurança, que permite a utilização, em pesquisas , dessas células fertilizadas in vitro e não utilizadas. 

Foram apontados na ação, como parâmetros constitucionais de verificação mais evidentes, o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a garantia da inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput), o direito à livre expressão da atividade científica (art. 5º, IX), o direito à saúde (art. 6º), o dever do Estado de propiciar, de maneira igualitária, ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde (art. 196) e de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica (art. 218, caput). De todos eles, é possível afirmar que o princípio da dignidade humana mereceu especial realce, de forma que a argumentação, de uma ou outra forma, esteve a ele vinculada. E nem poderia ser diferente, já que os princípios são, dentre as formulações do sistema ético-jurídico, os mais importantes a serem considerados, pois sempre influirão no conteúdo e alcance de todas as normas, de forma efetiva e concreta.[49] 



4.1 A fundamentação constitucional da ADIN 3.510: vinculações ao princípio responsabilidade

Em que pese a impossibilidade metodológica de análise de um a um dos votos e argumentos em sede desta pesquisa, é necessário trazer à baila alguns dos principais argumentos que embasaram a decisão do Supremo Tribunal Federal.[50].O voto do ministro Gilmar Mendes[51] é um dos mais reveladores em termos de explicitar como a decisão do STF como um todo contemplou o Princípio Responsabilidade: 

Trago à tona as lições de Hans Jonas para afirmar que o Estado deve atuar segundo o princípio da responsabilidade. As novas tecnologias ensejaram uma mudança radical na capacidade do homem de transformar seu próprio mundo e, nessa perspectiva, por em risco sua própria existência. E o homem tornou-se objeto da própria técnica. Como assevera Hans Jonas, o homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto. O homo faber ergue-se diante do homo sapiens. A manipulação genética, um sonho ambicioso do homo faber de controlar sua própria evolução, demonstra a necessidade de uma nova ética do agir humano, uma ética de responsabilidade. 

Como se pode perceber, o ministro enfatizou que ao princípio esperança (Prinzip Hoffnung, de Ernst Bloch), contrapõe-se o princípio responsabilidade (Prinzip Verantwortung, de Hans Jonas): “a Constituição de 1988, ao incorporar tanto o “princípio-responsabilidade” como o “princípio-esperança”, permite que nossa evolução constitucional ocorra entre a ratio e a emotio. O certo é que o ser humano, diante das novas tecnologias, deve atuar de acordo com uma ética de responsabilidade”. 

Segundo o ministro, a questão está em saber se a Lei n° 11.105, de 24 de março de 2005, regula as pesquisas científicas com células tronco embrionárias com a prudência exigida por um tema ética e juridicamente complexo. Dessa forma, com base nos fundamentos constitucionais do direito à saúde e à livre expressão da atividade científica, julgou totalmente improcedente a ADIN 3.510. Portanto, o principal foco do entendimento do ministro foi no sentido de que o exercício concreto de um direito básico e inalienável que é o direito à busca da felicidade e também o direito de viver com dignidade, direito de que ninguém pode ser privado, mas que deve ser exercido com responsabilidade. 

O sistema jurídico brasileiro é interpretável a partir da idéia de sistema hierarquicamente organizado, estando a Constituição Federal no topo dessa hierarquia. A decisão do STF não fugiu dessa máxima. Na esteira de Alexy, os princípios não precisam ser estabelecidos explicitamente, podendo ser derivados de uma tradição de normas e decisões que são a expressão de concepções difundidas acerca de como deve ser o Direito.[52] Nesse sentido, o Princípio Responsabilidade não apresenta previsão expressa a seu respeito no texto constitucional brasileiro, mas isso não impede seu reconhecimento, uma vez que ele é imposição natural de qualquer sistema constitucional de garantias fundamentais. Isso porque se trata de um elemento intrínseco essencial de qualquer documento jurídico que vise instituir um Estado Democrático de Direito, como a Constituição Federal brasileira. 

Os princípios podem se apresentar explícitos, com maior nitidez e segurança, embora limitados pelas possibilidades da linguagem, ou implícitos, mas, numa formulação como na outra, exercendo idêntica importância sistemática e axiológica, pois “o Direito não é só o conteúdo imediato das disposições expressas, mas também o conteúdo virtual de normas não expressas, porém ínsitas no sistema”.[53] Mas certamente que todos os princípios, inclusive os implícitos, têm sede direta no ordenamento jurídico, de forma que os princípios implícitos podem ser reconhecidos no ordenamento, como o fez o ministro Gilmar Mendes em seu voto. 

Segundo Ingo Sarlet, o princípio da dignidade humana constitui uma categoria axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-la de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades modernas contemporâneas. Nesse sentido, uma definição clara do que seja efetivamente esta dignidade parece não ser possível: ela simplesmente existe, algo que se reconhece, se respeita e protege, por ser uma qualidade intrínseca da pessoa humana, “um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”.[54] 

A liberdade de pesquisa é manifestação da liberdade humana e compreende não apenas a liberdade de descobrir, de procurar respostas às questões que o pesquisador se põe nos laboratórios e nos espaços de investigação, mas também à liberdade de experimentar e de buscar aplicar o quanto investigado e descoberto naquela primeira fase.[55] Nesse contexto, a Constituição Federal brasileira, em seu artigo 225, § 1º, II, estabelece que o Poder Público tem o dever de preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país, fiscalizando as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação do material genético. Assim, tal regra constitucional admitiu que é possível a atividade biotecnológica e, portanto, a engenharia genética,[56] sempre que tal manipulação for usada para os fins de efetivar o direito estabelecido no artigo 225, visando alcançar um meio ambiente ecologicamente equilibrado. 

Agora, efetivamente, “há questões que nunca antes foram objeto de legislação, caindo sob a alçada das leis com que a cidade global tem de se dotar para que possa haver um mundo sustentável para as gerações humanas que ainda virão”.[57] Nesse sentido, é possível afirmar que o Princípio Responsabilidade só pode ser bem compreendido se entendido no contexto da complexidade e da necessidade de diversos e conscientes olhares – e por via oblíqua, no contexto do multiculturalismo –, pois não pode ser cotejado apenas à luz do Direito, cuja tendência moderna é justamente se voltar para as novas questões com as quais a sociedade se depara hodiernamente, prestando uma contribuição que passa pela reflexão e normatização, como é o caso da liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. 

Portanto, acreditamos que a decisão, enquanto parâmetro comportamental, coaduna-se com diferentes realidades e pontos de vista existentes na sociedade multicultural, pois os princípios constitucionais estão em conformidade com o princípio responsabilidade jonasiano, e ambos estão contemplados na Constituição Federal e na decisão do STF. Não há como fugir dessa conclusão: o intérprete tem sempre de constatar que o sistema jurídico-legal – escrito e não escrito – está assentado em princípios,[58] tendo na referida decisão prevalecido o da dignidade humana, com o qual se vincula o Princípio Responsabilidade. 

 

Conclusão

É um grande desafio para o Direito enfrentar as questões trazidas pelo Princípio Responsabilidade no âmbito jurídico. Quando pensamos essas questões no seio da decisão proferida pelo STF na ADIN 3.510, percebemos que tudo isso foi cotejado sob as considerações feitas acerca do princípio da dignidade humana, considerando aqui seus desdobramentos, como o direito à saúde e à livre expressão da atividade científica. Como referido pelo ministro Gilmar Mendes, a Constituição de 1988, ao incorporar tanto o princípio responsabilidade de Hans Jonas quanto o princípio-esperança de Ernst Bloch, permite que nossa evolução constitucional ocorra entre a ratio e a emotio

Assim, é possível afirmar que o Princípio Responsabilidade não aparece de forma expressa, mas por seu status constitucional, permeia toda a ordem constitucional, estando indissociavelmente atrelado ao princípio da dignidade humana. O Princípio Responsabilidade é uma exigência elementar da dignidade da pessoa humana, consagrando o Estado de Direito enquanto tal; um princípio que mesmo não sendo objeto de uma legislação específica, se impõem a todos porque expressa os valores a que ao Direito cabe tutelar. 

Portanto, a dignidade humana foi o critério hermenêutico utilizado pelo STF no julgamento da ADIN 3.510, tendo sido utilizada como principal argumento para a solução da controvérsia jurídica. Esse princípio assumiu posição de destaque na decisão, pois serviu de diretriz material para a identificação do Princípio Responsabilidade que lhe subjaz. Impossível não salientar, nesse ínterim, que foi um critério basilar, mas não exclusivo, já que outros referenciais também podem ser identificados. 

Estamos diante de uma posição jurídica diretamente embasada e relacionada à dignidade da pessoa, sendo que do princípio da dignidade da pessoa humana é possível deduzir autonomamente, posições jurídico-subjetivas fundamentais. Salvo melhor entendimento, é isso que parece representar o fato dos ministros terem se servido do entendimento de Sarlet, que, aliás, coaduna-se com o que pretendemos afirmar: “Nada impede que se busque, com fundamento direto na dignidade da pessoa humana, a proteção – mediante o reconhecimento de posições jurídico-subjetivas fundamentais – da dignidade contra novas ofensas e ameaças, em princípio não alcançadas, ao menos não expressamente, pelo âmbito dos direitos já consagrados no texto constitucional”.[59] 

Nesse contexto, coaduna-se tanto com a dimensão natural quanto com a dimensão cultural da dignidade, na medida em que a dignidade também possui um sentido cultural, por ser fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo. É, assim, uma construção que se apresenta como limite e como tarefa dos poderes públicos, entre os quais o Judiciário: na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade é algo que necessariamente pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado; como tarefa imposta ao Estado, reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade.[60] 

As preocupações de Hans Jonas possuem um alto teor de compromisso com a dignidade humana, pois trouxe uma preocupação fundamental quando se trata da técnica: o problema a ser enfrentado não é somente quando a técnica é mal-empregada, isto é, para maus fins; é também quando ela é beneficamente empregada, ou seja, para fins legítimos. Isso porque a técnica tem em si um lado ameaçador, que pode se revelar a longo prazo, e talvez numa situação irreversível. O alcance do tema proposto – de sobremaneira ético e jurídico - é incomensurável, pois “o homem é, na medula, na essência, na racionalidade, um fenômeno ético, e a investigação científica não pode desconsiderar a dignidade da pes soa humana nem pode atravessar as fronteiras que separam a sociedade do laboratório, os bens espirituais dos interesses concretos e materiais da empresa, do capital e do lucro”, de forma que, parafraseando Paulo Bonavides quando afirmou que quem diz dignidade humana diz justiça,[61] quem diz dignidade humana diz responsabilidade. 

Assim, o Direito é chamado a fazer frente às novas necessidades e expectativas sociais, ou melhor, o sistema jurídico enquanto instituição que detém poder para trazer mudanças que venham a atender os novos anseios e interesses das sociedades. Porém, seus instrumentos, por si só, são incapazes de dar respostas e soluções para os novos questionamentos da sociedade. Isso é facilmente perceptível em se tratando dos avanços da biotecnologia, em que há um misto de fascinação e perplexidade em relação ao desconhecido. Na esteira do ensinamento de Luhmann, o Direito é um reforço para se enfrentar as incertezas trazidas pelas complexidades modernas, na medida em que as sociedades passam por intensas mudanças de padrão e paradigmas.[62] 

É nesse sentido a contribuição da dissertação cujos principais apontamentos se encontram neste trabalho: proporcionar um instrumental teórico-reflexivo para o Direito a partir do princípio responsabilidade de Hans Jonas, que sirva não apenas para a análise da decisão do STF sobre a liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil, mas que se estenda a outras discussões igualmente novas e importantes que grassam na seara jurídica. O Direito não fornece obrigatoriamente as melhores soluções, nem soluções definitivas; oferece, sim, uma solução jurídica, sujeita à provisoriedade. 

Portanto, esperamos ter contribuído para aproximar o compasso entre a ciência e o Direito e também outras áreas do conhecimento, com vistas à constante construção de uma sociedade cujas leis estejam à altura das intensas transformações ocorridas no seio do multiculturalismo que permeia a era biotecnológica vivenciada pela sociedade brasileira. A questão jurídica envolvendo as pesquisas com células-tronco foi somente uma das problemáticas que têm se levando a desafiar o Direito, mas muitas outras podem se servir dessas reflexões – complexas e responsáveis, que, à guisa de conclusão, podem e devem continuar cada vez mais intensamente. 




Referências

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[2] Declaração sobre a utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade. Disponível em: http://www.rolim.com.br/2002/_pdfs/063.pdf. Acesso em 26 set. 2007. O artigo 6º dispõe que “Todos os Estados adotarão medidas tendentes a estender a todos os estratos da população os benefícios da ciência e da tecnologia e a protegê-los, tanto nos aspectos sociais quanto materiais, das possíveis conseqüências negativas do uso indevido do progresso científico e tecnológico, inclusive sua utilização indevida para infringir os direitos do indivíduo ou do grupo, em particular relativamente ao respeito à vida privada e à proteção da pessoa humana e de sua integridade física e intelectual”. 

[3] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 45. Segundo o autor, “o paradigma é aquilo que está no princípio da construção das teorias, é o núcleo obscuro que orienta discursos teóricos neste ou naquele sentido. Existem paradigmas que dominam o conhecimento científico numa certa época e as grandes mudanças de uma revolução científica acontecem quando um paradigma cede seu lugar a um novo paradigma, isto é, há uma ruptura das concepções do mundo de uma teoria para outra”. 

[4] SÉGUIN, Elida. Biodireito. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2001, p. 33. 

[6] WOLKER, Antônio Carlos e MORATO LEITE, José Rubens. Os novos direitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 310. 

[7] ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de Paul; PESSINI, Leo (Org.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 138. 

[8] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 18. 

[9] SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do péndulo: bioética e a lei implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 160. 

[10] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 09. 

[11] SOUZA, Ricardo Timm de. Bases filosóficas atuais da Bioética e seu conceito fundamental. In: PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 114. 

[12] MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade. Trad. Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 38. 

[13] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 09-10. Para o autor, “o progresso da ciência é idéia que comporta em si incerteza, conflito e jogo. Não se pode conceber absoluta ou alternativamente Progresso e Regressão, Conhecimento e Ignorância. E para que haja novo e decisivo progresso no conhecimento, temos de superar esse tipo de alternativa e conceber em complexidade as noções de progresso e de conhecimento” (p. 105). 

[14] TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje. Trad. Gentil Agelino Titton. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 60. 

[15] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 495. 

[16] BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1997, p. 109. 

[17] MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 98. 

[18] MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade. Trad. Nurimar Maria Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 76. 

[19] JUNGES, José Roque. Bioética: perspectivas e desafios. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999, p. 09. 

[20] SOUZA, Ricardo Timm de. Bases filosóficas atuais da Bioética e seu conceito fundamental. In: PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 108. 

[21] De origem judia, Jonas nasceu na cidade de Mönchengladback, na Alemanha, em 1903, e morreu em Nova York, em 1993. Recém-formado, freqüentou as aulas de Martin Heidegger na Universidade de Freiburg, em 1921, transferindo-se juntamente com seu mestre para a Universidade de Marburg, em 1924. Hans Jonas emigrou para a Inglaterra e a Palestina, deu aula em Ottawa, Jerusalém, Nova York e Munique, e finalmente se estabeleceu nos Estados Unidos. 

[22] O primeiro período da sua obra é o da filosofia da religião, em que pesquisou sobre agnose, o segundo período é o da filosofia da natureza, marcada pela biologia da vida, quando então estuda o fenômeno, o metabolismo e as atividades vitais do ser humano, enquanto o terceiro período é o da filosofia da nova ética, em que faz uma reflexão ética diante do progresso tecnológico. É neste período da obra jonasiana que o presente trabalho se detém. Para melhores esclarecimentos, vide SIQUEIRA, José Eduardo de. El princípio de responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth. [online]. 2001, vol.7, no.2, p.277-285. Disponívelem:. Acesso em 05/01/2009. 

[23] Esta que é considerada sua obra principal, publicada em 1979, constitui a razão principal para a outorga do título doutor honoris causa em Filosofia, concedido em julho de 1992 pela Freie Universität Berlin. Em fevereiro de 1993, depois de receber em Udine, Itália, uma homenagem e um prêmio pela tradução italiana de sua obra principal, Hans Jonas faleceu em New Rochelle, estado de Nova Iorque (JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: o Princípio Responsabilidade. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais da Ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 193-206). 

[24] BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 9. 

[25] KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Editora Martim Claret, 2005. 

[26] Kant elaborou Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft) em 1781, e posteriormente, em 1788, escreveu Crítica da Razão Prática (Kritik der praktischen Vernunft). Ainda, escreveu Crítica do Juízo (Kritik der Urteilsktaft Vernunft) em 1790. Em todas as suas obras Kant procurou dar um fundamento sólido à convicção de que existe uma ordem superior, capaz de satisfazer as exigências morais e ideais do ser humano. 

[27] Por volta da metade do século XX, as expressões “homem prometéico” e “humanismo prometéico” entraram em moda para sugerir qualquer atitude desafiadora ou contestadora dos valores tradicionais. A título de esclarecimento, Hesíodo oferece do mito duas versões complementares. Na Teogonia, ele relata que para acabar com uma querela entre os deuses e os homens, era necessário que se fizesse a oferenda de um sacrifício a Zeus. Prometeu, filho de Jápeto e Clímene, decide enganar o pensamento de Zeus. Divide um boi em duas partes, cobrindo com a pele do animal os bons pedaços do ventre e da carcaça e colocando os ossos sob uma camada de gordura apetitosa. Em represália, Zeus se nega a entregar o fogo aos homens, os protegidos de Prometeu. Este contra-ataca roubando a chama, falta que lhe renderá dupla punição: Hefesto esculpe uma estátua de mulher e envia aos homens esse belo flagelo, enquanto Prometeu é acorrentado a uma coluna e vê seu fígado num perpétuo renascer sendo devorado por uma águia. Três séculos mais tarde, entre 467 e 459, o Prometeu Acorrentado de Ésquilo confere ao mito um alcance religioso e metafísico. Em sua tragédia, primeira obra-prima inspirada no tema, Prometeu – culpado por ter dado o fogo aos homens quando Zeus pretendeu, por capricho, exterminá-los – foi acorrentado e pregado num dos picos mais elevados do Cáucaso. Logo de início este traço não está em Hesíodo – o titã aparece na figura de mártir, abatido por uma injusta divindade. O Prometeu de Ésquilo não é mais aquele benfeitor primordial da Teogonia e, numa grande tirada, o dramaturgo enumera-lhe as dádivas: foi ele quem libertou os homens da obsessão da morte e os fez saber o que é a esperança, além de dar-lhes o fogo que os levará a aprender um sem-número de artes (BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Trad. Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005, p. 784-786). 

[28] GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Hans Jonas: o Princípio Responsabilidade. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais da ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 194. 

[29] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade, p. 23. 

[30] Idem, p. 35-36. 

[31] Idem, p. 41. 

[32] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade, p. 47. 

[33] Idem, p. 57. Isso porque, para Jonas, somente com o progresso moderno, como fato e idéia, surge a possibilidade de se considerar que todo o passado é uma etapa preparatória para o presente e que todo o presente é uma etapa preparatória para o futuro, e por ser ilimitada essa representação, não privilegia nenhum estado como definitivo, deixando a cada um a imediaticidade do presente (p. 55). 

[34] Idem, p. 60-61. 

[35] Idem, p. 63. Segundo Jonas, “Só sabemos o que está em jogo quando sabemos que isto ou aquilo está em jogo. O reconhecimento do malum é infinitamente mais fácil do que o do bonum : o mal nos impõe a sua própria presença, enquanto o bem pode ficar discretamente ali e continuar desconhecido, destituído de reflexão. Não duvidamos do mal quando com ele nos deparamos; mas só temos certeza do bem, no mais das vezes, quando dele nos desviamos. [...] O que nós não queremos, sabemos muito antes do que aquilo que queremos. Por isso, para investigar o que realmente valorizamos, a filosofia da moral tem de consultar o nosso medo antes do nosso desejo. [...] Embora a heurística do medo não seja a última palavra na procura do bem, ela é uma palavra muito útil. Sua potencialidade deveria ser plenamente utilizada” (p. 70-71). 

[36] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade, p. 72-74. 

[37] Idem, p. 85-86. 

[38] Idem, p. 94. Para Jonas, enquanto o imperativo hipotético diz: se houver homens no futuro, então valem para eles tais ou tais deveres que devemos respeitar antecipadamente... o categórico impõe simplesmente que haja homens, com uma ênfase que recai igualmente sobre este que e sobre o que deve existir. 

[39] Idem, p. 187. 

[40] Idem, p. 199. 

[41] Idem, p. 203. 

[42] Idem, p. 204-205. 

[43] JONAS, Hans. O princípio responsabilidade , p. 343. Uma “teoria da esperança” foi proposta pelo alemão-judeu Ernst Bloch (1885-1977) na obra “Princípio Esperança” (Prinzip Hoffnung), de 1959 e também na obra anterior, “Espírito da Utopia”, de 1918, quando então imaginou um homem novo em terra nova. Nesse sentido, afirmou Marchionni que “a utopia genérica de Bloch não resolve o problema, pois a utopia não é um fato novo, ela sempre existiu, e toda geração criou suas utopias nos milênios” (MARCHIONNI, Antônio. Ética: a arte do bom. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 206). 

[44] Idem, p. 351. 

[45] Idem, p. 351. 

[46] Segundo Jonas, Bloch entendia o medo como conseqüência da carência de sonhos em relação ao futuro, quando não se está preparado para as coisas que virão, anulando o homem, enquanto a esperança faria o contrário, reanimando o homem. 

[47] Idem, p. 353. 

[48] O parecer do Procurador da República na época, Cláudio Fonteles, pode ser conferido na íntegra em http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/pdfs/ADI_3510 parecer.pdf. Acesso em 15/6/2008. 

[49] NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 19. 

[50] A base para esse breve comentário sobre a decisão do STF como um todo se encontra no próprio site do STF, disponível em http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI3510CP.pdf. Acesso em 15/06/2008. 

[51] O voto do ministro Gilmar Mendes, na íntegra, está disponív el em http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI3510GM.pdf. Acesso em 15/6/2008. 

[52] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993, p. 104. 

[53] ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 54. 

[54] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 117-118. 

[55] ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Vida digna: Direito, Ética e Ciência (os novos domínios científicos e seus reflexos jurídicos). In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Coordenadora). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 93. 

[56] SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do péndulo: bioética e a lei implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 161. 

[57] MIRANDA, Erliane; TENÓRIO FILHO, Raphael Douglas. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético. In:PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 83. 

[58] NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 23. 

[59] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 81. 

[60] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 121. 

[61] SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 10 e p. 181. 

[62] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. Maria da Conceição Corte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980. 


 

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    Constituição da República Federativa do Brasil