Biologia do Tao


PorAnônimo- Postado em 31 maio 2010

HABITAR HUMANO
- MATURANA ROMESÍN, Humberto. YÁÑEZ DÁVILA, Ximena. Habitar humano em seis ensaios de biologia-cultural. São Paulo: Palas Athena, 2009.

Capítulo 2 – Biologia do Tao ou o Caminho do Amar

1. Introdução
O Capítulo 2 do livro Habitar Humano “é produto de uma série de conversações entre Ximena Dávila e Humberto Maturana. A noção do Tao trazida à mão pelos autores trata-se de “um convite a um viver no bem-estar psíquico e corporal”, a um “viver sem esforço”, de “ver o presente quando não há preconceito ou expectativa”.
Assim, “o viver ao qual a noção de Tao nos convida, é o viver fundamental do viver do ser vivo em sua natureza biológica que se dá na existência no existir num presente cambiante contínuo”.
Este viver, segundo os autores, “ocorre como um viver no linguajear” e na prática do desapego, que caracteriza a Biologia do Amar. “Por isso o Caminho do Tao é o Caminho do Amar e o Caminho do Amar é a Biologia do Tao”.

2. Filosofia Natural
As noções expostas sobre o Tao advém de uma mirada reflexiva que os autores denominam de “filosofia natural”, que evoca duas perguntas fundamentais: pelo ser e pelo fazer.
A pergunta pelo ser é muito tratada pela filosofia ocidental, mas “a pergunta pelo fazer como pergunta básica”, não está acessível, em virtude da aceitação geral de um “fundamento transcendente para toda existência”.
Os autores então perguntam pelo fazer, mais precisamente, “como fazemos o que fazemos”, afirmando que tal pergunta não chegou a ser feita no pensar científico tradicional até o advento da biologia do conhecer.
A filosofia natural, assim, seria um “entrelaçamento conceitual da Biologia do Conhecer e da Biologia do Amar na Matriz Biológico-Cultural da Existência Humana.

3. Caminho do Tao
Os autores incursionam nos processos biológicos, que como processos do viver e conviver, podem dar origem ao bem-estar psíquico e corporal. Afirmam que a “experiência do Tao não tem a ver com o que se vive, e sim com como se vive o que se vive”. (original sem grifo)
Destacam que é a partir dos “fundamentos biológicos da experiência” que é possível o Caminho do Tao (toda a experiência vivida pelos seres humanos, em qualquer âmbito ou circunstância, ou qualquer que seja o nome que receba, ocorre ”como aspectos de nosso viver humano no fluir de nosso viver biológico”). (original sem grifo)

4. O Presente
“O presente é o próprio suceder do viver. O presente é o ocorrer no ocorrer, o que sucede no fluir do suceder” (p. 64)
Assim como a descrição não substitui o descrito, descrever o presente não o substitui como suceder do viver.
“[...] os seres vivos que existem fora do linguajear [...] vivem no contínuo presente que se vive sem a evocação descritiva de um passado que complica o presente desde a saudade do ausente. Mais: vivem sem pensar nem desejar um futuro que surge da descrição do que se espera que ocorra e modifica o presente desde a frustração, porque não se satisfazem as expectativas que os desejos de um futuro implicam.” (p. 64) (original sem grifo)
Esses animais “simplesmente deslizam num contínuo presente cambiante que surge espontaneamente sem reflexão, momento a momento, no fluir da conservação do bem estar próprio da dinâmica sensorial de cada momento do viver que se vive”.
Viver no presente é viver “sem saudades nem expectativas”, vivendo simplesmente a alegria ou a dor do que há na relação imediata e não do imaginado.
O bem estar se perde quando se vive na consciência do passado e do futuro “que a linguagem faz possível”, gerando frustrações ante os desejos não realizados e o sofrimento que o apego aos desejos não realizados traz.
Mas, o viver humano ocorre no linguajear e o Caminho do Tao, como caminho do viver humano no presente necessariamente ocorre como um viver no linguajear.

5. A Experiência
Os autores afirmam que “O mundo humano como mundo que se vive no linguajear na geração de domínios de coordenações de coordenações de fazeres pode ser vivido como um contínuo presente que se vive em seu mero ocorrer, sem reflexão que olhe o curso desse viver” (como os animais não-linguajantes), em contraposição à vida “que traz à consciência como aspecto do viver cotidiano o sofrimento pela frustração ante as expectativas e os desejos não satisfeitos” (como a esmagadora maioria dos humanos).
Mas, a dúvida que fica é como isso pode ser possível ???
Segundo se depreende, seria através dessas reflexões própria dos humanos, ou seja, do mesmo caminho da consciência que traz à mão o sofrimento pelas frustrações e expectativas, que se poderia encontrar “o caminho desde o qual se vê esse apego e é possível perguntar-se sobre a legitimidade da dor e do sofrimento que gera, assim sobre o caminho de ação que nos poderia liberar dessa dor e sofrimento.
O caminho experencial, assim (admitindo-se implicitamente como fazem os autores, que os humanos não conseguem simplesmente viver como os animais num presente contínuo cambiante), seria o caminho da busca, através da própria capacidade de linguajar, da liberação do sofrimento.
Todavia é difícil entender como isso se daria (como se pode alcançar o bem-estar psíquico e corporal, vivendo o presente, sendo humano na linguagem ? simplesmente não evocando as saudades e as expectativas ??)
Ao fim e ao cabo, a experiência vem a ser o que dissemos que acontece conosco...

6. O Desapego
Os autores afirmam que é “o apego à dor pela perda do valor e sentido do efêmero desejado o que gera o sofrimento, e não o desejo como tal”, ou seja, “a dor da perda dá valor e sentido ao perdido”.
A liberação da dor e do sofrimento passa pelo desapego, que implica na admissão de que nada tem valor ou sentido em si mesmo. O valor ou sentido que damos ao transitório que perdemos surge, apenas, como um comentário que fazemos sobre as relações sistêmicas a que pertencia o que foi perdido.
A dor e o sofrimento, portanto, existem no apego a um valor ou sentido transcendente que não é. Ao não vemos que somos nós mesmos que damos valor ou sentido ao que distinguimos de acordo com o que desejamos fazer com esse valor ou sentido, entramos em sofrimento quando se nos ocorre a sua perda.
“O caminho que nos libera do apego e, por isso, da dor e do sofrimento é o caminho que nos tira da ignorância que é o não saber o não ser de todo o ser e, em particular, do não ser do ser do valor ou sentido que atribuímos ao perdido” (p. 67/68, grifado no original)
O apego, então, ao contrário do sentido gramatical da expressão, é a crença de o valor e sentido que damos as coisas e as relações existem neles mesmos, de forma transcendente, quando na verdade todo ser é um não ser, ou ainda, só existe quando um observador o distingue.
A morte é a perda do saber viver !
“[...] o viver humano no presente sem dor nem sofrimento requer viver todas as dimensões dos mundos humanos que surgem no linguajear (incluindo o explicar, o compreender, os desejos, as expectativas e a consciência de si, de ser e de estar) [...]” (p. 68)
O Caminho do Tão, assim, implica em “viver no saber que nata tem valor ou sentido em si”, destacando os autores, contudo, “que este modo de viver não pode ser descrito, porque não tem forma preestabelecida ao surgir espontaneamente no presente cambiante que vive quem vive assim”.

7. O Efêmero
Na cultura patriarcal-matriarcal vive-se como se não existissem mudanças (contínua transformação de nossa corporalidade em torno da conservação de uma identidade relacional que também está em contínua mudança) e como se o viver fosse eterno.
Este seria um “viver cego” ante a beleza de nossa transitoriedade, já que “O humano ocorre no efêmero, no trânsito entre um começo e um fim”.
A consciência do efêmero, do passageiro, da transitoriedade do humano, assim, conduziria a um viver no presente na conservação consciente do bem estar que se vive quando se vive sem apego nem rejeição.

8. A Explicação
Os seres humanos existem “na contínua geração de mundos que surgem, de um lado, no entrelaçamento recursivo da dinâmica biológica, que é o espaço de existência desde onde somos seres vivos, e, de outro, no linguajear, que como fluir consensual de coordenações de coordenações de fazeres constitui o âmbito relacional em que existimos como seres humanos na realização biológica da materialidade de nosso viver.” (p. 73).
“Fundamentalmente, o explicar consiste em responder a uma pergunta que procura revelar a origem de alguma coisa com uma história que mostra a forma dessa origem e que é apresentada tentando satisfazer por sua vez as expectativas de quem pergunta e ampliar seu entendimento.” (p. 73)
Segundo os autores existem dois cursos de ações possíveis para “aproximar-se do viver o Caminho do Tão”, como um modo de viver o presente, conforme a emoção com que cada um escuta a explicação do Tao: a) a satisfação do indivíduo “vivendo uma evocação sistêmica da disposição relacional que ele deveria adotar de maneira inconsciente para viver no viver consciente o bem estar que o viver o presente sem apegos traz”; b) “o que escuta quer ouvir a descrição de uma rede ou seqüência de processos que, ao operar, daria como resultado a experiência do viver o Caminho do Tão, entendendo, de maneira racional a natureza dessa experiência e tentando realizar essa seqüência ou rede de processos no próprio viver”.
Esses dois caminhos se entrecruzam na busca da experiência de viver no presente sem apegos.

9. O Entendimento
“Falamos de entendimento quando podemos dizer que o que dizemos que sabemos, sabemos num contexto mais amplos de coerências sistêmicas do que o âmbito restrito de coerências operacionais da situação particular que dizemos saber.” (p. 75)
O sistema nervoso opera como uma rede fechada de relações de atividade entre seus componentes, e não faz diferença entre o interno e o externo do organismo (tal distinção pertence ao operar do observador).
O sistema nervoso não interage com o meio, o organismo sim.
Após tecer maiores considerações sobre o sistema nervoso, os autores afirmam que
Na normalidade da conservação do viver de um organismo há equiparidade operacional entre o campo sensorial do organismo e o âmbito de ação que o meio emergente lhe oferece (acoplamento estrutural), de modo que o organismo flui em seu viver na conservação de um máximo bem estar. Quando essa equiparidade se rompe, seja pelas mudanças do meio, seja pela transformação da sensorialidade do organismo no fluir das transformações deste no suceder do viver, ou pelas mudanças que traz consigo o fluir psíquico no mover-se emocional desde a serenidade às expectativas, às ambições, às exigências, às irritações ou aos apegos a valores ou significados imaginados, o âmbito do bem estar do organismo se altera ou se perde. E, quando isso acontece, surge o que um observador vê como ansiedade ou medo ante o ameaçador, ou como frustração ante o insuficiente, numa perda parcial do bem estar relacional, ou eventualmente como morte em algum domínio de existência humana ou do organismo como totalidade.” (p. 77/78) (original sem grifo)

Em suma, nos seres humanos a dor surge pela falta de um valor perdido (como se ele existisse transcedentalmente) e o sofrimento na conservação dessa dor, quando o que deveria ocorrer é a perda de sentido do bem estar relacional, que não altera o viver o presente.

10. A Transformação
“A liberação da dor e do sofrimento, que gera o apego ou sentido que atribuímos ao perdido, produz-se com a ampliação do entendimento que mostra que o valor ou sentido de todas as coisas que surgem no curso do viver humano é somente um modo cultural de olhar e atuar, e não uma propriedade intrínseca delas.” (p. 79)
“[...] a ampliação do entendimento (ou operacional) se produz na dinâmica de distinção por parte do sistema nervoso de configurações relacionais que fazem sentido operacional nos âmbitos do viver humano que surgem no viver nos mundos que surgem em nosso viver no linguajear” (p. 80)
“Todo o valor ou sentido declarado como fonte desejada de bem estar transcendente constitui um viver alienado que cedo ou tarde se viverá em dor e sofrimento por um apego que nos afasta do bem estar do desapego que o Caminho do Tao conserva.” (p. 81)
Finalmente, os autores questionam: “Qual é o viver no bem estar que faz do viver o viver no Caminho do Tao sem falar do Tao ?” ; “Qual é o indício relacional que se for conservado no fluir cambiante do viver humano tem como resultado espontaneamente a ampliação do entendimento sem palavras que leva a viver o que um observador chamaria de viver no Caminho do Tao ?”.
Para em seguida complementarem: “A nossa resposta é: o Caminho do Amar.”

11. O Caminho do Amar
Nunca perdendo de vista que os seres humanos vivem no linguajear e que este ocorre no fluir do conviver (que é a realização do próprio viver entrelaçado com o viver de outros em coordenações de coordenações de fazeres), os autores acrescentam que os seres humanos existem também no “fluir de nossas emoções como distintas classes de domínios de condutas relacionais”, e que ambos os aspectos – linguajear e fluir em nossas emoções – também se entrelaçam, naquilo que se chama de conversar.
“Entre todas as emoções que vivemos no fluir de nosso emocionear, o amar é o fundamento do viver no bem estar na aceitação implícita na legitimidade de toda a existência que evocamos ao falr do Caminho do Tao.” (p. 83)
“O que distinguimos em nossa vida cotidiana como amar são as condutas relacionais através das quais alguém, o outro, ou tudo o mais, surge como legítimo outro na coexistência com esse alguém. Como tal o amar é unidirecional, não espera retribuição e é negado pelas expectativas. O amar não é nem generoso, nem altruísta, nem solidário, simplesmente não admite adjetivos.”
“O amar ocorre no flui do viver no presente na legitimidade de tudo, sem dualidade, sem fazer distinções de bom e ruim, de belo e feio.”
Nós, seres humanos, “somos o presente de uma linhagem de primatas bípedes cujo devir evolutivo se produziu em torno da conservação de um conviver no amar, na ternura e na sensualidade num espaço relacional que surgiu com a constituição da família como um âmbito pequeno de colaboração no linguajear”.
“O Caminho do Amar como viver no presente sem apego é o Caminho do Tao vivido no ser social humano, e o ser social humano se vive desde e no viver individual no fluir da convivência no amar que é o conviver social. O conviver fora do amar não é conviver social. O central no amar do Tao não é o que acontece com o outro, e sim o que acontece a alguém consigo mesmo.”
“A existência dos seres vivos é multidimensional. [...] As múltiplas identidades que de fato vivemos ou podemos viver como organismos singulares não se unificam em nossa singularidade orgânica na perda de seus limites operacionais, fisiológicos e relacionais. O que acontece é que as múltiplas identidade que vivemos se entrelaçam como aspectos mais ou menos fluidos da identidade de nosso viver relacional na geração de uma existência psíquica unitária mais ou menos integral através de nosso operar como totalidades em nosso âmbito relacional.”
“Medo, cobiça, ambição, inveja, competitividade são emoções que restringem o olhar e abrem o espaço ao apego. O amar é a única emoção que expande o olhar em todas as dimensões relacionais e amplia o ver, o ouvir, o tocar. De fato, como o amar consiste no abandono das certezas, das expectativas, das exigências dos juízos e dos preconceitos, é a emoção que consiste na realização do caminho do desapego...” (p. 86)
A cultura patriarcal-matriarcal em que vivemos, conforme os autores, está “centrada na desconfiança e no controle, na autoridade e na subjugação, na apropriação e na cegueira perante o outro, nega o amar.”
Segundo ainda os autores, emoções como a solidariedade e a compaixão não fazem parte do amar, “porque não implicam , no operar relacional que as constitui, a unidirecionalidade e abertura no ver o outro e a si mesmo em sua total legitimidade própria do amar.
E, concluem: “Viver na Biologia do Amar implica sair da cultura patriarcal-matriarcal que a nega.”

12. Considerações Finais
Sob o título de “Enlace III” os autores trazem uma última reflexão ao Capítulo estudado, partindo da assertiva de que os seres humanos vivem propondo teorias com as quais tentam explicar os sucederes de seu viver, como se fossem sucederes de uma realidade externa ao viver do observador. Ao assim proceder, operam como observadores objetivos e que aquilo que é proposto como leis da natureza mostram as regularidades do operar da realidade como um âmbito de sucederes independentes do que fazemos para distingui-la.
Os autores sustentam que não é assim, pois “o que fazemos é explicar as coerências de nosso viver com as coerências de nosso viver, e que o que chamamos de leis da natureza tem esse caráter.”
“Nessas circunstâncias, torna-se evidente para nós que nosso conhecer passa a ser nosso operar adequado na realização e conservação de nosso viver enquanto geramos com nosso viver os distintos mundos ou domínios cognitivos que vivemos...” (p. 89)
“O que fazemos é a contínua constatação de que tudo em nosso viver se funda na operacionalidade de nosso viver. E o que pensamos que poderia existir alheio ao operar fundamental de nosso viver se desvanece com tal ao tentar distingui-lo com nosso operar, porque o que quer que surja de nossa distinção surge nas coerências do operar de nosso viver, inclusive quando usamos instrumentos. Mesmo que não queiramos, o cosmos não é nós mesmos, e sim o nosso habitar em nosso habitar.” (p. 90)

Para concluir:

Até que ponto o Caminho do Tao não se confunde com o Budismo ?
O sistema nervoso, tal qual apresentado pelos autores, parece ser a chave para a compreensão da inexistência de um mundo transcendente !