Bloqueios de serviços previstos no Marco Civil da Internet são alvos de Ação de Inconstitucionalidade


Porvictormenezes- Postado em 28 maio 2016

 

 

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.527, que questiona a vigência de determinados artigos do Marco Civil da Internet, em breve será levada a julgamento para o Plenário do STF.

Ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal contra trechos de leis ou atos normativos federais ou estaduais, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) tem a finalidade de declarar a incompatibilidade e possível invalidade dos textos ou trechos propostos em relação ao texto constitucional, caracterizando uma forma de controle concentrado de constitucionalidade. Isto significa, portanto, que caso a arguição da ADI nº 5.527 seja acatada, o Marco Civil deverá se adequar à Constituição Federal, evidenciando a invalidade de uma parte do seu texto e a necessidade de sua exclusão ou readaptação ao entendimento do STF.  

Nesse sentido, muito embora exista esse questionamento, o Marco Civil da Internet contém dispositivos interessantes relativos à proteção de registros, dados e comunicações privadas, evidenciadas nos artigos 10 a 12.  A ADI nº 5.527 pretende, portanto, questionar a validade dos seguintes dispositivos:

- Art. 10, § 2o O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial [...] 

Atualmente, o Poder Judiciário pode requerer dos Provedores de Conexão (provedores de acesso ou de Internet, empresas que disponibilizam o acesso à rede) e dos Provedores de Aplicação (empresas que fornecem determinado serviço ou aplicativo específico) acesso às comunicações privadas que sirvam ou sejam necessárias no andamento de processos.

Esse parece ser um questionamento bastante atual, um vez que, recentemente, o aplicativo WhatsApp foi bloqueado no país inteiro duas vezes em virtude de ordens judiciais (relembre aqui) pois a empresa Facebook, dona do aplicativo, se negava a fornecer a cópia das comunicações em um processo de âmbito penal e recentemente habilitou um sistema de criptografia ponta-a-ponta no aplicativo, o que impede o acesso da própria empresa a essas informações.

Essa ação, portanto, pretende questionar a legalidade da disponibilidade dessas conversas e comunicações para o Poder Judiciário frente aos direitos de privacidade e autonomia. Esse questionamento é respaldado, primeiramente, na prerrogativa constitucional de livre comunicação, conforme o artigo 5º, IX  da Constituição Federal, em que é prevista a "livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença", evidenciando a importância das aplicações de Internet como formas de comunicação em diversos aspectos.

Não obstante, o próprio Marco Civil prevê, em seu artigo 10º, que "A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet [...] bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas." 

Abre-se, portanto, uma discussão acerca da constitucionalidade do acesso a esses conteúdos sem prévia autorização, a necessidade de uma justificativa razoável de ordem judicial ou até mesmo do seu sigilo absoluto.

 

- Já o art. 12.  admite a possibilidade de que em operações que envolvam os dados ou as comunicações dos provedores de conexão ou aplicações ocorra a:

III - suspensão temporária das atividades [...];
IV - proibição de exercício  das  atividades [...];

O argumento, portanto, é respaldado pelo entendimento constitucional da ordem econômica e da livre iniciativa (artigo 1º, IV e artigo 170) e da não interferência estatal em serviços que tem um alcance popular gigantesco, além da previsão do inciso XLV do artigo 5º de que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado", notando que o bloqueio de determinados serviços pode prejudicar terceiros e ser danoso a diversos usuários e serviços que dependem do aplicativo para o seu funcionamento. 

 

A ADI nº 5.527, portanto, parece ser uma reação aos recentes bloqueios de aplicativos como o WhatsApp e às possibilidades que as operadoras de telecomunicações podem ter quanto ao acesso à Internet pelos usuários. Entretanto, resta saber se a fundamentação do argumento utilizado efetivamente mostra que os dispositivos do Marco Civil estão ou não em desacordo com as prerrogativas constitucionais.

 

 

A redação da lei pode estar um pouco confusa, mas é importante ver a redação dos incisos na íntegra:

"Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:

[...] III - suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11;

ou IV - proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11.

[...]"

Porque não é atividades em geral, e sim as que envolvem "coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet", nas quais o art. 11 prevê que devem " ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros". 

As infrações aos arts. 10 e 11, que seriam motivo para essa suspensão de atividades, seriam, respectivamente:

- não atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas, quando houver guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet [caput do art. 10]

- não respeitar a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros, em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet [caput do art. 11]

A dúvida fica porque existe, no § 1º do art. 10, o seguinte:

"[...] § 1o O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7o. [...]"

Lembremos que, pelo regulamento do marco civil, não há obrigação de armazenar os dados (art. 11, §1º, Decreto 11.771/2016 - veja mais)

Só que voltemos ao caput do art. 10, que fala de "guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet".

Não se fala em comunicações entre usuários, nem dados pessoais, pois isso é conteúdo do art. 11. E não há dever de fornecer nada no artigo 11! Logo, não fornecer não é infração.

Resumindo: não fornecer comunicações pessoais não é infração! [Eu sei, é preciso um vai e volta nos dispositivos para entender isso, mas aí não estamos falando de inconstitucionalidade, mas de algo corriqueiro em dispositivos legais...]

Então temos uma gambiarra jurídica se alguém afirmar que os provedores estão obrigados, em qualquer circunstância que seja, a fornecer dados pessoais ou comunicações por ordem judicial, sob sanção de bloqueio de atividades que envolvam coleta, guarda ou tratamento de informações e comunicações. O único dever é fornecer registros de conexão e acesso [quando houver].

E aí me parece que o bloqueio do whatsapp, se foi devido a não fornecimento de comunicações, não teria como se justificar pelo marco civil - ao menos não por essa parte alvo da Ação de Inconstitucionalidade. E, se por algum acaso foi usado em justificativa para esses atos, mudar o texto da lei não adiantaria muito, já que de toda forma ele já não permite situações como essa.

Lahis Pasquali Kurtz

Mestra em Direito