A boa-fé objetiva e os efeitos da supressio e surrectio nos contratos cíveis


Porbarbara_montibeller- Postado em 27 março 2012

Autores: 
MELO, Alcemara Carmem Borges Marques

RESUMO
A boa-fé objetiva assumiu relevo considerável, sobretudo com a edição do Código Civil de 2002. A compreensão de aspectos como a distinção da boa-fé subjetiva, dos efeitos decorrentes de sua aplicação nos contratos cíveis e, mais detidamente, da supressio e surrectio, são valiosos ao reconhecimento de situações concretas.

PALAVRAS-CHAVES
Boa-fé, objetiva, efeitos, contratos, cíveis, supressio, surrectio.

ABSTRACT
The objective good faith has assumed considerable importance, especially with the enactment of the Civil Code of 2002. The understanding of aspects such as the distinction of subjective good faith, the effects resulting from its application in civil contracts, and more closely, of supressio and surrectio are valuable to the recognition of specific situations.

KEY WORDS
Objective good faith, contracts, civil, supressio, surrectio.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Conceito e espécies de boa-fé; 3. Efeitos de boa-fé nos contratos cíveis; 4. Supressio; 5. Surrectio; 6. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

O Código Civil de 2002 está baseado em três novos princípios, quais sejam: operabilidade, eticidade e socialidade.
No aspecto da eticidade, destaca-se a boa-fé como princípio regulador das condutas entre os contratantes, em especial a acepção objetiva de tal princípio, que foi uma das significativas inovações do Código Civil vigente.
Este artigo pretende discorrer, sem esgotar o tema, sobre a supressio e surrectio, dois dos efeitos da boa-fé nos contratos cíveis, tema contemporâneo e interessante, posto que decorre do modelo de eticização de conduta social.

2. CONCEITO E ESPÉCIES DE BOA-FÉ

A doutrina clássica do Direito Civil conceitua a boa-fé como sendo a intenção pura, sem dolo ou malícia, manifestada com lealdade e sinceridade, de modo a evitar o erro ou engano da outra parte.
Daí, poder-se conceituar a boa-fé, com base no artigo 422 do Código Civil de 2002, como um conjunto de deveres exigidos nos negócios jurídicos, impondo aos contratantes um compromisso, essencialmente, de fidelidade e cooperação nas suas relações.
Conceitualmente, a boa-fé se apresenta de duas formas nas relações de cooperação, ambas previstas no Código Civil vigente: subjetiva, também conhecida como a boa-fé psicológica, e objetiva, boa-fé de conduta ou concepção ética da boa-fé.
A boa-fé subjetiva consiste no estado psicológico do agente pelo qual se opõe à má-fé, de modo a não agir de forma prejudicial aos que com ele se relacionam juridicamente, isto é, consiste no agir conforme o direito.
Portanto, a boa-fé subjetiva tem função interpretativa, pois se dá pela análise das intenções da pessoa cujo comportamento se quer analisar. E é nesse aspecto que reside a dificuldade prática de aplicar tal instituto, posto que não serve de parâmetro direto, devendo a má fé ser comprovada.
A boa-fé subjetiva está prevista na parte geral do Novo Código Civil no título que trata das disposições gerais sobre os negócios jurídicos, em especial nos artigos 112 e 113 .
Por sua vez, a boa-fé objetiva, apresenta-se com caráter positivo, impondo a conduta a ser seguida pelos contratantes, servindo de parâmetro direto de aferição da conduta aceitável, pouco importando a sua convicção. A partir da boa-fé objetiva, pode-se indagar qual seria a conduta confiável e leal segundo os padrões culturais do tempo e lugar. A resposta indicará se a conduta foi aceitável ou não.
A par dessas conceituações, pode-se perceber a importância e o revelo hoje reconhecidos à boa-fé, na medida em que serve mais aos interesses da sociedade do que aos interesses particulares.
Ultrapassada a diferenciação entre as duas formas de manifestação da boa-fé, cabe explanar os efeitos que ela gera nas relações contratuais.

3. EFEITOS DA BOA-FÉ NOS CONTRATOS CÍVEIS

A destinação social da boa-fé decorre da necessidade de se guardar o princípio da confiança em detrimento do abuso do direito, o qual se estabelece quando há violação de direitos subjetivos, isto é, quando um interesse se sobrepuja ao interesse reciprocamente contraposto na relação jurídica.
E essa necessidade de estabilidade social faz com que da relação confiança frente ao abuso de direito, surjam os efeitos da boa-fé nos contratos.
Tais efeitos são, segundo lição de Menezes Cordeiro, apud Mezzomo , subdivididos em oito modalidades, quais sejam: supressio, surrectio, venire contra factum proprium, exceptio non adimplente contractus (ou tu quoque), a exceptio doli (desdobrada em exceptio doli generalis e exceptio doli specialis), a inalegabilidade das nulidades formais e o equilíbrio no exercício jurídico. Dentre esses, serão aprofundados apenas a supressio e surrectio.

4. SUPRESSIO

Supressio é um termo português para o que os alemães chamam de Verwirkung. Significa a redução do conteúdo obrigacional mediante o fenômeno pelo qual um direito não mais pode ser exercido, posto que não usufruído por determinado período de tempo e a intenção de exercê-lo contrariaria a boa-fé (expectativa) da relação jurídica estabelecida.
Assim, considera-se ocorrida a Supressio quando determinadas relações jurídicas deixam de ser observadas com o passar do tempo e, em decorrência, surge para a outra parte a expectativa de que aquele(a) direito/obrigação originariamente acertado(a) não será exercido/cobrada na sua forma original. Isto é, a supressio consiste no fenômeno da supressão de determinadas relações jurídicas pelo decurso do tempo.
Ao explanar sobre supressio, o Ministro Aguiar Júnior explica dizendo que “Na supressio, um direito não exercido durante um determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa-fé [...]”.
Na mesma linha, e também de forma clara, Duarte (2004, p. 427) conceitua supressio como “o fenômeno da supressão de determinadas faculdades jurídicas pelo decurso do tempo”.
Explanando sobre esse efeito redutor, Costa (2003, p. 217) leciona:
Por igual atua a boa-fé como limite ao exercício de direitos subjetivos nos casos indicados sob a denominação de ´supressio´. Segundo recente acórdão do Tribunal de Justiça do RS, esta ‘constitui-se em limitação ao exercício de direito subjetivo que paralisa a pretensão em razão da boa-fé objetiva’. Exige-se, para a sua configuração, (I) o decurso de prazo sem exercício do direito com indícios objetivos de que o direito não mais seria exercido e (II) desequilíbrio, pela ação do tempo, entre o benefício do credor e o prejuízo do devedor.

5. DISTINÇÃO ENTRE SUPRESSIO, PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA

Conceituada a supressio, necessário se faz diferenciá-la da prescrição e da decadência, por serem esses institutos aparentemente semelhantes.
A prescrição, de forma simples, objetiva e conceitualmente mais aceita, consoante lição de Amorim Filho (apud FIUZA, 2004, p. 250), ocorre “quando se der a perda do direito de ação pela inércia de seu titular, que deixa expirar o prazo fixado em lei, sem exercê-lo”.
Já a decadência, continua Fiuza (2004, p. 250), ocorre “quando se der a perda do próprio direito subjetivo material pela inércia de seu titular, que o não exerce no prazo fixado em lei”.
Daí não se confundirem com a supressio, posto que esta exige, além do decurso do tempo para impossibilitar o exercício do direito firmado, a constatação de que o comportamento tendente a o exercer é inadmissível, segundo o princípio da boa-fé, uma vez que antagônico à expectativa gerada pelo não exercício anterior.
Portanto, para a configuração da supressio, exige-se o decurso do prazo sem exercício do direito com indícios suficientes de que não mais seria exercido (gerando expectativa) e o desequilíbrio entre o benefício almejado pelo credor e o prejuízo a ser suportado pelo devedor com o eventual exercício.

6. SURRECTIO

Para a doutrina alemã, Surrectio é erwirkung e consiste exatamente no fenômeno inverso ao da supressio, haja vista decorrer da ampliação do conteúdo obrigacional mediante surgimento de prática de usos e costumes locais. Na surrectio, a atitude de uma parte faz surgir para a outra um direito não pactuado.
Nas lições de Rosenvald (2005), surrectio é o exercício continuado de uma situação jurídica em contradição ao que foi convencionado ou ao ordenamento jurídico, de modo a implicar nova fonte de direito subjetivo, estabilizando-se para o futuro.
A doutrina tem exigido a conjugação de três requisitos para a ocorrência da surrectio, como advertem Rocha e Cordeiro, apud MEZZOMO :
Exige-se um certo lapso de tempo, por excelência variável, durante o qual se atua uma situação jurídica em tudo semelhante ao direito subjetivo que vai surgir; requer-se uma conjunção objectiva de factores que concitem, em nome do Direito, a constituição do novo direito; impõe-se a ausência de previsões negativas que impeçam a surrectio.

Analisando-se os conceitos de supressio e surrectio, pode-se concluir que tais institutos consagram formas de perda e aquisição de direito pelo decurso do tempo, sem que, com isso, não possa a surrectio vir desacompanhada da supressio.
No nosso Codex encontram-se, por exemplo, os fenômenos da supressio e surrectio no artigo 330 , como bem exemplifica a doutrinadora Diniz, ao comentar que há presunção juris tantum de que o credor renunciou (supressio) ao lugar da prestação quando reiteradamente o devedor o realiza em lugar diverso do pactuado, fato que faz surgir, com igual validade, o direito subjetivo do devedor em continuar a fazer o pagamento em local diverso do contratado (surrectio), não podendo o credor a isso se opor, pois houve a perda do direito pelo decurso do tempo.
Assim, a supressio implicará o surgimento da surrectio desde que se mantenha a coerência entre o que foi suprimido e o que surgiu em decorrência

7. CONCLUSÃO

Diante dessas considerações, percebe-se a importância da boa-fé nos contratos cíveis, posto que a partir destes ocorre a circulação de riquezas e são estabelecidas as regras de convivência social.
Logo, entender a aplicação da boa-fé nas relações jurídicas, assim como identificar corretamente os seus efeitos, sobretudo a supressio e surrectio, é fator imprescindível ao operador do direito, o que demonstra a importância do trabalho em questão, sobretudo na fase de orientação jurídica prestada pela Defensoria Pública aos seus assistidos.

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