Breves comentários sobre universalismo e pluralismo jurídico


Porwilliammoura- Postado em 12 junho 2012

Autores: 
LIMA JÚNIOR, Cláudio Ricardo Silva

Breves comentários sobre universalismo e pluralismo jurídico

Sumário: 1. Introdução. 2. Pluralismo estatalista e institucionalista. 3. Ordenamentos jurídicos não-estatais. 4. A importância da concepção pluralista. Conclusão. Referências. Notas.

1. INTRODUÇÃO

Em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, Norberto Bobbio sustenta a existência de uma multiplicidade de sistemas jurídicos. A tese é comumente denominada de “pluralismo” e se contrapõe ao chamado “monismo” ou “universalismo” jurídico-normativo.

“A idéia de pluralismo jurídico é decorrente da existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espacio-temporal.” [1]

O ideal do ordenamento jurídico único, que remonta ao Direito Romano e às concepções do Jusnaturalismo Teológico e Antropológico, entende necessário à legitimidade do direito positivo fundamentar-se a ordem histórica em um direito natural, universal, que ostentaria a qualidade de justo por decorrer da natureza ou do esforço racional dos homens. Nesse contexto, mais importante que indagar sobre as relações entre ordenamentos distintos era trabalhar as relações dos diversos direitos particulares com o direito único universal. Sob o império da teoria monista, as principais discussões jusfilosóficas diziam respeito à dicotomia entre direito positivo e direito natural, sendo relegado a segundo plano o estudo das relações entre as variadas manifestações históricas do direito positivo.

Perspectivas específicas de direito, aliadas a uma concepção dilargada de norma jurídica, porém, possibilitaram crescente desprestígio da teoria monista em favor do desenvolvimento de uma visão pluralista do fenômeno jurídico. Manifestando-se enquanto reconhecimento da diversidade das ordens estatais ou das instituições de natureza tida como jurídica no âmbito de um determinado Estado, a teoria pluralista, possibilita a aceitação da produção de normas jurídicas a partir de ordenamentos não-estatais.

Sem a pretensão de esgotar o tema, o desenvolvimento do pensamento pluralista e seus efeitos na teoria do direito é o que se propõe considerar o presente texto.

2. PLURALISMO ESTATALISTA E INSTITUCIONALISTA

O Monismo Estatal foi um fenômeno jurídico que floresceu na cultura moderna européia, a partir dos séculos XVII e XVIII. Corresponde à visão de mundo predominante na sociedade moderna, centrada no interesse do Estado e na ética da racionalidade liberal-individualista. O paradigma entrou em crise de esgotamento e estrutura, em razão do não acompanhamento das profundas transformações econômicas e políticas trazidas pelos conflitos coletivos, a não satisfação das demandas sociais e as novas necessidades criadas pela globalização do capitalismo e sua inserção determinante nas estruturas sócio-políticas, dependentes e periféricas. [2]

Dois foram os processos através dos quais decaiu o monismo jurídico: 1) o historicismo jurídico e o 2) institucionalismo.

Por historicismo jurídico entende-se a corrente de pensamento carreada pela escola histórica do direito, segundo a qual o direito natural nada mais é do que o direito positivo universal ou o jus gentium do direito romano, direito comum a todos os povos, constituído pela razão natural (Gustav Hugo). [3] No dizer de Savigny, o direito natural seria o que se pode extrair da “consciência popular” ou “espírito comum do povo”, razão pela qual a comparação histórica dos diversos direitos nacionais deveria ser a metodologia adotada pela ciência jurídica.

“Essa primeira forma de pluralismo tem caráter estatalista. Há não apenas um, mas muitos ordenamentos jurídicos porque há muitas nações, que tendem a exprimir cada uma num ordenamento unitário (o ordenamento estatal) a sua personalidade, ou, se quisermos, o seu gênio jurídico.” [4]

Com efeito, o Historicismo Casuístico introduz a noção de pluralismo jurídico pela constatação da pluralidade estatal: na medida em que diversos são os Estados nacionais, cada um na exata expressão de seu gênio jurídico, diversos são os ordenamentos existentes em um dado momento histórico, sendo o direito natural, enquanto representação do ideal de justo, o que de permanente se verifique no curso evolutivo das ordens nacionais. No âmbito de uma específica nação juridicamente organizada, contudo, prevalece a concepção monista, sendo entendida a ordem jurídica como produto exclusivo da atividade estatal.

A doutrina de Hugo, Savigny e Puchta acabou por lançar as bases para a teoria predominante no momento seguinte, a saber, o positivismo jurídico. Consoante o juspositivismo, não existe direito além do direito positivo, posto, colocado pelo Estado e por este considerado válido, apto a produzir efeitos. A principal característica do direito positivo é ser criado por uma vontade soberana; logo, onde existir um poder soberano, ali haverá direito. Como cada vontade soberana é, por definição, independente de qualquer outra, cada Direito constitui ordenamento autônomo. A concepção positivista de direito, assim, promove intrinsecamente o pluralismo jurídico estatalista.

Nessa ótica voluntarista, um direito universal somente se produziria na existência de um único poder soberano universal. Com a queda da concepção teológica de mundo na filosofia e nas ciências, rechaçou-se a hipótese de um governo divino representar um poder universal, do qual os singulares poderes estatais fossem manifestações diretas ou indiretas. Ademais, reconhecendo-se como fonte do direito não a razão, mas a vontade, deriva-se, inevitavelmente, o pluralismo jurídico.

O institucionalismo, por sua vez, é a corrente que sustenta haver não apenas diversos ordenamentos jurídicos de uma mesma espécie, mas ordenamentos de muitos e variados tipos. Denominado pluralismo jurídico institucional, tem como tese principal a existência de um ordenamento jurídico onde existe uma instituição, um grupo social organizado. [5]

A expressão “pluralismo” assume, nesse sentido, conteúdo mais pleno. Em verdade, a não se especificar o pluralismo jurídico como estatal ou nacional, entende-se, comumente, traduzir o termo essa perspectiva mais ampla, que concebe como jurídicas ordens normativas diversas da produzida pelo ente estatal formalmente constituído.

“A esta concepção que admite a coexistência de várias ordenações se denomina pluralismo jurídico, e opõe-se ao monismo, teoria que aceita a ordenação do Estado como a maior expressão da normatividade jurídica.” [6]

Tal perspectiva advém das mesmas correntes de pensamento sociológicas, antiestatais, que deram origem à escola do direito livre, que teve como expoente o jurista alemão Eugen Ehrlich e sua obra A lógica dos juristas (Die juristische Logik, Tübingen, 1925). Por considerar o envelhecimento da codificação, sobretudo na França, concluiu-se pela insuficiência do legislador na busca pela solução pacífica dos conflitos, o que promoveu a passagem de uma “jurisprudência exegética” para uma dita “científica”, pautada numa crítica livre em relação ao códigos. [7] Ademais, com as rápidas e profundas transformações introduzidas pela Revolução Industrial do século XIX, acelerou-se o envelhecimento natural da legislação, em um processo que fazia o texto parecer mais antigo e ultrapassado a cada instante, derrubando por terra o dogma da completude do ordenamento. A teoria das lacunas surge, nesse período, como estímulo à criação judicial, de sorte a possibilitar soluções satisfatórias a problemas ignorados pela legislação.

Outro fator que contribuiu para o desenvolvimento da teoria institucional foi o desenvolvimento particular da filosofia social e das ciências sociais do século XX, que, nas diversas correntes em que se manifestaram, apresentaram, como característica comum, a polêmica contra o Estado e o enaltecimento da sociedade abaixo do Estado.

“Tanto o marxismo quanto a sociologia positivista – para limitarmo-nos às duas maiores correntes da filosofia social – foram animadas por uma crítica contra o monismo estatista, que teve a sua expressão mais intransigente na filosofia hegeliana, mas tinha ramificações muito mais antigas. “ [8]

Ante o soerguimento do Estado e sua tentativa de absorver a sociedade como um todo, a luta de classes tendia a romper os limites da ordem estatal. Novos grupos sociais, como sindicatos, associações e partidos políticos, representativos das relações decorrentes das transformações econômicas e sociais, “colocavam em evidência uma vida subjacente ou contrastante com o Estado, que nem o sociólogo e nem o jurista podiam ignorar.” [9] A sociologia do século XIX, imbuída do espírito científico do período, contribuiu para a derrocada do mito do Estado, do qual fazia parte o dogma da completude. Ao lado da descoberta da importância da sociedade em relação ao Estado, formou-se a consciência do descompasso entre o direito estatal e a realidade social, firmando-se a sociologia como instrumento contra a pretensão totalizante do ordenamento jurídico do Estado.

Como consequência da teoria institucionalista, há o enriquecimento do problema da relação entre ordenamentos: por se considerar “jurídica” toda ordem institucional, em lugar de se analisar pura e simplesmente as relações entre diferentes ordens jurídicas estatais, inserem-se no objeto de estudo as relações entre ordenamentos diversos dos estatais.

3. ORDENAMENTOS JURÍDICOS NÃO-ESTATAIS

Segundo Bobbio, há quatro espécies de ordens jurídicas não-estatais:

a) ordenamentos acima do Estado, como o ordenamento internacional e, segundo algumas doutrinas, a Igreja Católica;

b) ordenamentos abaixo do Estado, propriamente sociais, reconhecidos pelo Estado e por ele limitados ou absorvidos;

c) ordenamentos ao lado do Estado, como a Igreja Católica, conforme determinadas acepções ou a ordem jurídica internacional, na teoria denominada dualista;

d) ordenamentos contra o Estado, como organizações criminosas, seitas secretas ou paramilitares.

O ordenamento jurídico internacional, cuja normatividade decorre da anuência particular de cada Estado soberano, é compreendido pela doutrina ora como acima do Estado, segundo certa corrente do monismo jurídico-internacional, ora como ao lado da ordem nacional, na perspectiva chamada dualista.

A teoria monista sustenta que tanto o Direito Internacional quanto o Interno, Nacional, constituem o mesmo sistema jurídico, havendo apenas uma única ordem jurídica que dá nascimento às normas internacionais e nacionais. [10]

Tal entendimento é corroborado por Kelsen:

"Se esta norma, que fundamenta os ordenamentos jurídicos de cada um dos Estados, é considerada como norma jurídica positiva – e é o caso, quando se concebe o direito internacional como superior a ordenamentos jurídicos estatais únicos, abrangendo esses ordenamentos de delegação – então a norma fundamental – no sentido específico aqui desenvolvido, de norma não estabelecida, mas apenas pressuposta – não mais permite falar em ordenamentos jurídicos estatais únicos, mas apenas em bases do direito internacional". [11]

Com efeito, a se entender a ordem jurídica internacional como superior à nacional, compreende-se a norma nacional de maior hierarquia como norma positiva, portanto, posta e não pressuposta. Sendo a norma fundamental, em Kelsen, o fundamento de validade lógico-transcendental da ordem jurídica – logo, norma pressuposta – teria de situar-se em plano superior à ordem internacional. Nesse sentido, resulta impossível falar em uma “dualidade” de ordens jurídicas, vez que ambas as normas, nacional e internacional, decorrem de um mesmo fundamento de validade. A ordem nacional seria, assim, apenas um assentamento espaço-temporal, tão-somente uma “base” do direito internacional.

Interessante, contudo, que o monismo jurídico internacional permite, no plano teórico, sustentar-se ideia oposta: considerando a origem comum das normas nacionais e internacionais, é possível escaloná-las hierarquicamente de modo diverso. Propugnando-se pela supremacia do direito interno, reconhece-se, no caso concreto, o direito internacional como mero desdobramento da ordem nacional; defendendo a superioridade das normas internacionais, considera-se que a autonomia estatal encontra limite no ordenamento internacional. Terceira corrente ainda monista, propõe equivalência entre as normas nacionais e internacionais, devendo possível conflito ser suprimido mediante critérios próprios, como o da revogação da lei mais antiga pela mais recente. [12]

A teoria dualista, por sua vez, enxerga distinção clara entre as ordens nacional e internacional. Segundo tal concepção, a ordem jurídica interna compreende a Constituição e o direito infraconstitucional vigente em determinado Estado soberano, ao passo que a ordem externa envolve Tratados e Acordos internacionais, bem como as regras costumeiras que regem o relacionamento entre os diversos Estados. A distinção teria por base o fato de que as ordens nacional e internacional têm origens distintas e objetos diversos: a norma externa só teria aplicabilidade no direito interno caso fosse compatível com a Constituição e o descumprimento de uma norma de direito internacional sujeitaria o infrator a sanções internacionais, produzindo efeitos apenas nessa ordem, em nada influindo, do ponto de vista jurídico, no âmbito interno. No sentido de tal teoria, a ordem jurídica internacional é vista ao mesmo nível da ordem estatal interna, não havendo entre o direito nacional e o internacional relação de natureza hierárquica.

Ordenamentos tidos como abaixo do Estado são os tipicamente sociais, como os sindicatos, associações, partidos políticos e pessoas jurídicas em geral. Como mencionado, para Bobbio, tais ordenamentos podem também ser considerados jurídicos, na medida em que implementam normas garantidas por uma sanção institucionalizada. A norma emanada no âmbito de uma empresa pelo empregador a seus funcionários, por exemplo, seria dotada de “juridicidade” na medida em que sujeita o destinatário a uma sanção pelo descumprimento, consequência essa passível de execução pela instituto social que a deu origem. Tais ordenamentos são reconhecidos pelo Estado, regulados na forma da lei e, por vezes, absorvidos pela ordem jurídica estatal que, por “recepção” ou “reenvio”, no dizer de Bobbio, se vale do regramento por eles produzido.

Considera a doutrina ordenamento ao lado do Estado, além da ordem internacional (na teoria dualista), a Igreja Católica e, de modo geral, as religiões tradicionais, reconhecidas socialmente como instituições perenes no curso histórico. Em razão de uma existência de longa data e da reconhecida influência da normatividade por elas emanada na vida prática da população, costuma-se situar tais ordens religiosas como em posição paralela ao Estado, razão pela qual travariam com a ordem jurídico-positiva estatal relações de coordenação e não de subordinação. Diferentemente de religiões de menor expressividade, que se constituem juridicamente na forma de associações – colocando-se, portanto, no plano teórico, como ordenamentos abaixo do Estado – as ordens eclesiásticas tradicionais ocupariam, segundo alguns autores, o mesmo status social da pessoa jurídica do Estado, o que evidentemente influenciaria no teor das relações entre os correspondentes ordenamentos.

A referência que Bobbio faz à ordem Católica, por exemplo, é digna de nota. Sobretudo na Itália, de onde escreve o autor, é a Igreja Católica Romana instituição de tamanha respeitabilidade que se torna confortável situá-la em plano paralelo ao Estado temporal. Conforme destaca Gustavo Ferreira Ribeiro,

“O Sumo Pontífice, durante a Idade Média, era o chefe dos Estados Pontifícios. Tal situação perdurou até 1870, quando a unificação italiana provocou o desaparecimento dos Estados do Papa. Roma, antiga sede territorial do Estado Pontifício, foi anexada ao Reino Italiano e uma lei italiana de 1871 outorgou à Santa Sé a manutenção do papel espiritual da religião católica, o usufruto de palácios e a imunidade diplomática de seus membros. A soberania territorial, entretanto, havia se esfacelado. A situação foi resolvida em 1929, quando Mussolini assinou os Acordos de Latrão. Os Acordos compreenderam a um tratado político – reconhecimento de Roma como a capital italiana; uma concordata – que regula o Estatuto da Igreja com a Itália; e uma convenção financeira (de acordo com Pellet).” [13]

Como consequência dessa origem, é atualmente o Vaticano caso singular no cenário internacional. Para alguns doutrinadores, apresenta a instituição duas personalidades jurídicas distintas: como pessoa jurídica de direito público internacional, tem a prerrogativa, dentre outras coisas, de assinar tratados e ser membro de organizações internacionais; como sede da religião Católica, seria o território o centro gestor do trabalho espiritual pela Igreja desenvolvido.

Com efeito, alguns doutrinadores chegam a sustentar dever haver rígida distinção entre Vaticano e Santa Sé, este sendo a representação do poder espiritual, enquanto aquele a manifestação do poder temporal. Para outros autores, contudo, a existência de duas personalidades jurídicas não se sustenta: a utilização de um ou outro nome nos tratados seria mera casuística, já que resta resolvida a questão da inconteste soberania no microterritório destinado à Igreja (Cidade do Vaticano).

É em razão dessa peculiar característica que se toma a Igreja Católica como paralela ao Estado, enquanto ordenamento. A despeito de não se verificar situação semelhante em instituição religiosa diversa, é possível situar no mesmo plano teórico do Estado formal ordem outra de natureza religiosa, porquanto se utilize, como critério, não a existência de soberania – posto que muitíssimo restrita – mas a plausibilidade da normativa que promana e a respeitabilidade dos provimentos institucionais no seio social.

Por fim, menciona Bobbio a existência de ordenamentos contra o Estado. Ante o peso da perspectiva jurídico-positiva estatalista torna-se um tanto dificultoso aceitar a existência de uma ordem jurídica contrária ao Estado. Por essa razão, não é demais repetir que, para Bobbio, é jurídica qualquer norma pertencente a um ordenamento que garanta a execução de suas regras por uma sanção institucionalizada. Significa dizer que, para o autor, na medida em que existe um grupamento social organizado, que garante pela previsão de sanção a execução de normas de conduta válidas em seu âmbito de atuação, está-se diante de um ordenamento jurídico, composto por normas, por definição, jurídicas. Assim sendo, jurídica seria a organização criminosa do Primeiro Comando da Capital, de São Paulo; ou a ordem da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro; tais ordenamentos são materialmente contrários ao Estado, pois promovem regras de conduta cujo conteúdo é incompatível com o do ordenamento estatal.

4. A IMPORTÂNCIA DA CONCEPÇÃO PLURALISTA

Contemporaneamente, verifica-se, assim, significativo pluralismo. Tanto no âmbito estatal, pelo reconhecimento da pluralidade de Estados soberanos que emanam ordens jurídicas autônomas, quanto, no interior de cada Estado, pela autoridade de uma multiplicidade de ordenamentos institucionais, que se relacionam entre si e com o Estado, apoiando-o, sobordinando-o, a ele se conformando ou com ele mantendo franca contradição, constata-se a quebra do monismo estatalista e o avanço para uma concepção de direito cada vez mais comprometida com sua origem social.

O pluralismo institucionalista a que Bobbio faz alusão muito tem a ver com a luta social pela implementação do ideal de justiça. Constatado que é a ordem jurídica do Estado incapaz de regular sistematicamente toda situação passível de verificação prática – ou, ao menos, de fazê-lo satisfatoriamente, para referir ao entendimento de Kelsen – necessária se faz a participação efetiva de instituições sociais na promoção de subsídios à decisão justa.

Nesse sentido, poderosa é a reflexão que induz Lon L. Fuller, em O caso dos exploradores de cavernas. Consoante a fictícia narrativa [14], cinco exploradores de cavernas ficam presos após um deslizamento de terra que fecha a única saída da gruta em que se encontram os participantes de uma expedição. A despeito do grande esforço despendido pela Sociedade Espeleológica, que exauriu todos os seus fundos, os subvencionados pelo Poder Legislativo e os obtidos em uma campanha de arrecadação, o dispendioso resgate somente chega ao fim decorridos 30 dias do início das buscas – tempo suficiente para todos os envolvidos morrerem de inanição. No vigésimo dia do resgate, após a descoberta de que os exploradores possuíam um rádio transmissor, é a eles informado que o resgate levará, pelo menos, mais dez dias, tempo em que, com absoluta certeza, não sobreviveriam sem alimentação. É dada a informação de que, caso se alimentassem de carne humana, haveria grande chance de sobrevivência. Os exploradores decidem sacrificar um dos cinco para que a sobrevivência dos outros quatro fosse garantida. Roger Whetmore propõe um sorteio para a escolha daquele que seria sacrificado. Antes do sorteio, desiste de participar e sugere que se espere mais uma semana. Os companheiros acusam-no de traição e, quando do sorteio, Whetmore é o escolhido. O explorador foi morto e sua carne serviu de alimento para seus companheiros que sobreviveram e foram salvos no trigésimo dia após o início do resgate. Após o resgate, os sobreviventes vão a julgamento e, em primeira instância, são condenados à pena de morte. Em segunda instância, são analisados por quatro juízes: Foster propõe a absolvição, baseando-se numa posição jusnaturalista; Tatting esquiva-se de decidir, alegando estar muito envolvido emocionalmente, mas acaba por afirmar que entende dever ser mantida a decisão de primeiro grau; Keen condena os réus e acusa Foster de usar lacunas na lei para defender os acusados, além de sugerir que o caso não deveria ser decidido por eles; Handy apresenta uma pesquisa realizada para saber a opinião pública que revela que 90% das pessoas absolvem os réus, votando o juiz com a opinião pública. Ocorrendo empate no julgamento, é mantida a decisão de primeiro grau, sendo os réus condenados à morte e realizada a execução, à forca, às 06h00 de uma sexta-feira.

O caso evidencia a injustiça capaz de decorrer da aplicação cega do direito estatal. O fato típico “matar alguém” certamente se verificou, ao que era cominada, na legislação aplicável, a pena capital. Ocorre que praticaram os agentes a conduta em evidente estado de necessidade, situação prevista de forma expressa como excludente da antijuridicidade na maioria das legislações nacionais – o que conduz à inevitável conclusão de que, a despeito da tipicidade do fato, não houve crime no caso em comento, vez que este, consoante a universal doutrina de Welzel, é o fato típico, antijurídico e culpável. Ademais, no esteio da brilhante argumentação de Foster, independentemente de previsão legal, teriam os réus de ser absolvidos, vez que, isolados da sociedade, encontravam-se em estado de natureza, onde vige a lei do mais forte. É legítima a defesa da própria vida em face do perigo iminente. A situação lastimável em que se encontravam não poderia ser imputada a qualquer deles, mas, uma vez tendo ocorrido, justificou a defesa da individualidade pelo meio violento. Ademais, em apego ao resquício de moral em cada agente, decidiram agir em espírito coletivo, sujeitando a decisão a um resultado aleatório – o que revela honestidade e sentimento humanitário. Evidente, portanto, que o ato foi tomado apenas como última medida, em razão da extrema necessidade. Injusta, absurda e impiedosa foi a decisão relatada, condenando os agentes quando era impossível exigir conduta diversa.

De fato, a consideração estrita do direito estatal pode conduzir a absurdos. Interpretar a lacuna legal como permissivo universal ou desconsiderar especificidades fáticas não reguladas pelo ordenamento levará, inevitavelmente, a resultados insatisfatórios. O pluralismo jurídico desempenha, nesse contexto, papel vital: na medida em que diferentes ordens normativas apresentam soluções para questões não enfrentadas pelo Estado, aumenta-se o leque de opções para o julgador, que pode tomar como subsídio à decisão o conteúdo das variadas ordens normativas aplicáveis. A despeito da necessária fundamentação dogmática, é sempre possível basear a argumentação em uma abertura alopoiética do sistema. Complexo é quando, a par do silêncio na ordem estatal, encontra-se mudez nos demais ordenamentos – ou são estes simplesmente desconsiderados, por tidos inaplicáveis. Uma filosofia social pautada na força do agir infraestatal e uma sociologia reveladora de um universo normativo real, pragmático e efetivo diverso do Estado certamente conduzirão ao reconhecimento da coerência da concepção pluralista do direito, perspectiva essa capaz de impulsionar a prática judicial para uma construção mais justa e satisfatória.

Conquanto seja verdadeiro tudo o que se disse, cabe aqui uma palavra de cautela: a despeito do pluralismo que hoje se verifica, o universalismo jurídico persiste como exigência moral e tendência política. Como tendência, tem-se manifestado não mais na crença de um abstrato direito natural, mas na vontade de construir um direito positivo universal – interesse evidenciado, sobretudo, a partir do pós-guerra do século XX, com a criação da Organização das Nações Unidas e o desenvolvimento do direito internacional. Como ideia-limite do universalismo jurídico contemporâneo, tem-se a noção do Estado mundial único. Diferentemente do universalismo de outrora, contudo, não sustenta um Direito natural revelado à razão; prega um Direito positivo levado ao extremo, em ideal normativo de origem histórica – um Direito positivo universal.

A conclusão que se impõe, portanto, é a de que, a par do reconhecimento crescente das ordens jurídicas extra-estatais, traduzida no denominado pluralismo jurídico institucional, tem-se como tendência – verificável em um futuro não necessariamente próximo – o desaparecer do pluralismo estatalista, com o florescimento de um universalismo jurídico estatal, na forma de um monismo juspostivo universal.

CONCLUSÃO

O Monismo Estatal dos séculos XVII e XVIII entrou em crise de esgotamento e estrutura, em razão do não acompanhamento das profundas transformações econômicas e sociais da segunda metade do século XIX. O desenvolvimento de novas perspectivas de direito, aliado a uma concepção lata de norma jurídica possibilitaram o florescimento de uma teoria jurídica significativamente desprendida da teoria do Estado.

A Escola histórica do direito contribuiu sobremaneira para o estabelecimento de uma teoria jurídica pluralista na medida em que, desprendendo-se da perspectiva dominante acerca do direito natural, que o identificava na vontade divina revelada ou na abstrata razão humana, concebeu-o como o direito positivo universal, conforme determinado no que de permanente se verificasse na experiência histórica das nações. Uma vez que cada Estado soberano constituía seu direito positivo, não haveria que se falar em uma ordem jurídica universal, mas em tantas ordens quantas vontades soberanas se verificassem.

Por sua vez, a corrente de pensamento institucionalista, pautada na filosofia social e no pensamento sociológico antiestatal, centrado na polêmica contra o Estado e na descoberta da sociedade abaixo do Estado, favoreceu a construção conceitual segundo a qual o grupo social organizado constitui ordenamento de natureza jurídica, independente do Estado. Ademais, as rápidas e profundas transformações introduzidas pela Revolução Industrial do século XIX, acelerando o envelhecimento natural da legislação, fizeram o direito estatal parecer mais antigo e ultrapassado a cada instante, derrubando por terra o dogma da completude do ordenamento. Reconheceu-se, assim, a necessidade de complementação do direito do Estado por ordens sociais de natureza diversa.

Bobbio sustenta, nesse sentido, a existência de quatro espécies de ordens jurídicas não-estatais, a saber 1) ordenamentos acima do Estado, como o ordenamento internacional e, segundo algumas doutrinas, a Igreja Católica e as religiões tradicionais; 2) ordenamentos abaixo do Estado, propriamente sociais, reconhecidos pelo Estado e por ele limitados ou absorvidos; 3) ordenamentos ao lado do Estado, como a ordem jurídica internacional, na teoria denominada dualista, ou a Igreja Católica, conforme determinadas acepções, em face de seu peculiar desenvolvimento histórico; e 4) ordenamentos contra o Estado, como organizações criminosas, seitas secretas ou paramilitares.

A teoria jurídica pluralista exerce importante papel na busca pela implementação do ideal de justiça. Sendo assente na doutrina que o direito estatal é incapaz de regular satisfatoriamente toda possível conduta social, necessária se faz a existência de instâncias que complementem a produção normativa do Estado, subsidiando a tomada de atitude do corpo social e a formulação da decisão pelo órgão judiciário do Estado.

A despeito do verificado pluralismo estatal e institucional da era contemporânea, permanece o universalismo jurídico como exigência moral e tendência política. Como exigência moral, pelo interesse no ideal da ordem única, perfeita e completa, que materializasse iguais valores para a totalidade dos homens; como tendência, na vontade, cada vez mais manifesta pela comunidade internacional, da produção de um direito positivo universal, verificada na produção de instâncias regulatórias de nível comunitário, a exemplo do Mercosul e da União Europeia, e de nível internacional, como a Organização das Nações Unidas. Paralelamente ao pluralismo jurídico-institucional, tem-se como tendência, portanto, o universalismo jurídico-estatal.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: EdUNB, 1995, p. 162.

COELHO, Luís Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Apud MEDEIROS, Honório de. Op. cit., 2010.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 98.

FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. J. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 2001. Apud TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.

MEDEIROS, Honório de. A respeito do pluralismo jurídico. Disponível em Acesso em: 24 jun. 2010.

RIBEIRO, Gustavo Ferreira. A Santa Sé e a Cidade do Vaticano sob a ótica do Direito Internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.

SILVA, Cissa Maria de Almeida. Do monismo estatal ao pluralismo jurídico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, no 164. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2010.

TEJO, Joycemar. Teorias monista e dualista do direito internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.

NOTAS

[1] MEDEIROS, Honório de. A respeito do pluralismo jurídico. Disponível em Acesso em: 24 jun. 2010.

[2] SILVA, Cissa Maria de Almeida. Do monismo estatal ao pluralismo jurídico. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, no 164. Disponível em: Acesso em: 28 jun. 2010.

[3] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 98.

[4] BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 6 ed. Brasília: EdUNB, 1995, p. 162.

[5] “Instituição”, aqui, não assume o sentido cunhado por Durkheim, de conjunto de regras e procedimentos padronizados socialmente, reconhecidos, aceitos e sancionados pela comunidade. Toma o significado mais amplo e corriqueiro de organização, fundação, grupo social estruturado para um determinado fim.

[6] COELHO, Luís Fernando. Lógica Jurídica e Interpretação das Leis. Apud MEDEIROS, Honório de. Op. cit., 2010.

[7] BOBBIO, Norberto. Op. cit., 2007, p. 266.

[8] BOBBIO, Op. cit., 2007, p. 267.

[9] Idem, p. 268.

[10] TEJO, Joycemar. Teorias monista e dualista do direito internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.

[11] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. J. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 2001. Apud TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.

[12] TEJO, Joycemar. Op. cit., 2010.

[13] RIBEIRO, Gustavo Ferreira. A Santa Sé e a Cidade do Vaticano sob a ótica do Direito Internacional. Disponível em: Acesso em 25 jun. 2010.

[14] FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2006.

Data de elaboração: junho/2010