Cabimento da transação penal na ação penal privada


Porwilliammoura- Postado em 23 novembro 2011

Autores: 
SILVEIRA, Gabriela Garcia

Cabimento da transação penal na ação penal privada

A Lei dos Juizados Especiais Criminais veio para atender os anseios de efetividade processual da comunidade jurídica e dos cidadãos em geral, estabelecendo definitivamente o modelo consensual de justiça no Brasil, trazendo consigo algumas inovações destinadas à resolução amigável dos conflitos de menor impacto social, sendo os principais: o acordo civil (art. 72), o aumento dos casos de representação (art. 88), a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89).

A Lei 9090/95 trouxe princípios inovadores, tais como: a oralidade, a simplicidade, a informalidade, a economia processual, a celeridade, bem como a busca constante de transação e conciliação, mas sem excluir os princípios gerais do processo penal.

Sua competência, como já exposto, refere-se às infrações de menor potencial ofensivo que não configure as circunstâncias de competência do procedimento comum ou especial e cuja pena máxima abstrata não exceda dois anos de duração, seja de reclusão, detenção ou prisão simples; abrangendo também todas as contravenções penais (independente da pena).

A transação penal encontra-se prevista na lei em tela, em seu artigo 76, que preceitua que:"Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta". Ou seja, as partes estabelecem um acordo, após preenchido os requisitos legais, aplicando assim uma medida alternativa ao autuado.

Entende-se por requisitos legais, a ausência dos impedimentos previstos em lei, quais sejam: a condenação anterior ao crime pela pratica de crime a pena privativa de liberdade e a ocorrência anterior de transação penal dentro do prazo de 5 anos.

Ademais, o dispositivo em questão prevê o cabimento da transação penal nas ações penais públicas incondicionadas, e nas ações penais públicas condicionadas. No entanto, no que tange a aplicação da transação penal na ação penal privada, o art. 76 da Lei n° 9.099/95 é omisso. Seria tal omissão proposital, havendo incompatibilidade entre a ação penal privada e o instituto da transação penal? Ou pode-se dizer que houve uma falha do legislador?

Segundo Rômulo Moreira o instituto não é aplicável na ação penal privada, pois esta é movida pelo principio da oportunidade e da disponibilidade. Além do mais, alega que a base principiológica da ação privada é incompatível com a transação penal.

Neste sentido, Ada Pellegrini (Ibid., p. 267) chegou a defender a exclusividade da transação e suspensão condicional do processo às ações penais públicas, sob a fundamentação de que na ação privada já vigoraria o princípio da oportunidade e que qualquer acordo seria tido como perdão ou perempção.

Negrão (2001, p. 33) também é adepto da interpretação literal do art. 76:

"em uma interpretação literal do art. 76, caput, da Lei nº 9.099/95, verifica-se que não é possível à transação penal nos crimes de ação penal privada. De fato, no aludido preceito, o legislador utilizou as expressões: ‘havendo representação' (crime de ação pública condicionada); ‘ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada'; ‘o Ministério Público poderá'. Assim, tudo leva a crer ser impossível a transação penal."

Cezar Roberto Bittencourt (2003, p. 603) textualmente nega a possibilidade de aplicação dos institutos às ações penais exclusivamente privadas, não só pela ausência de previsão legal; pela interpretação literal dos arts. 76 e 89 da LJE, que só se referem à iniciativa negocial do Ministério Público, nada falando quanto ao querelante; e, por fim, pela inconstitucionalidade por ele vislumbrada na oposição de limites à continuidade da ação penal privada mesmo depois de ter a vítima vencido os impedimentos de ordem pessoal que motivariam sua inércia e a decadência do direito de queixa.

Eugênio Pacelli (2003, p. 633) não admite nem a transação penal nem suspensão condicional do processo, por vislumbrar incompatibilidade entre o sistema de composição civil do art. 74 da referida lei e a ação penal privada. Afirma que, no sistema processual clássico, por expressa disposição do art. 104, § único, do Código Penal, a reparação do dano não implica em renúncia ao direito de queixa, o que não se dá no âmbito dos juizados especiais, onde a composição extingue a punibilidade pela renúncia.

Por outro lado, alguns doutrinadores já vêm aceitando a transação penal nos delitos de ação privada. Até Fórum Nacional dos Juizados Especiais - Fonaje - já se manifestou nesse sentido. O fundamento adequado é a analogia in bonam partem. Assim, diante de uma lacuna legal, caberia a aplicação analógica do art. 76 da Lei n° 9.099/95 aos delitos de ação penal privada, pois seria benéfica para o autor dos fatos.

Segundo o entendimento de Jesus 2006, p. 4) a analogia no processo penal consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante

Neste sentido, Grinover et al. (2005, p. 150) afirma que "é possível ao Juiz aplicar por analogia o disposto na primeira parte do art. 76, para que também incida nos casos de queixa [...]"

Ressalte-se ainda que Guilherme Souza Nutti (2008, p. 759) também julga correta a aplicação da analógica do art. 76 da Lei n° 9.099/95 aos delitos de ação penal privada: "Crimes de ação penal privada - não vemos nenhum sentido em terem eles sido excluídos do contexto da transação. [...] Por isso, concordamos plenamente com a postura sugerida por Grinover, Magalhães, Scarance e Gomes, no sentido de ser admitida a transação, por analogia in bonam partem (é favorável ao autor do fato), também na órbita da ação penal privada.

Outra fundamentação para este corrente é devido o principio constitucional da igualdade. Assim, ao conceder o benefício da transação penal somente aos autores de delitos de ação

penal pública, teria o legislador ferido o princípio da igualdade. Para Tourinho Filho (2008, p. 109), o autor da ação penal privada faz jus ao beneficio da mesma forma que o autor da ação publica faz.

Nesta esteira, além do questionamento da aplicação da transação penal nos crimes de ação penal privada os doutrinadores também discutem aa legitimidade ativa para a proposta da transação penal nos referidos crimes, pois o artigo 76 da Lei 9.099/95 é claro ao mencionar que:"o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta".

Diante da literalidade do artigo ao outorgar a legitimidade apenas ao Ministério Público, em se tratando de ação penal privada quem teria então legitimidade para propor a transação penal?

Para o professor Luiz Flávio Gomes e Patrícia Donati de Almeida esta legitimidade é transferida para a vítima. Para eles, tanto o parquet como a vítima pode se recusar a oferecer a transação. Quando a recusa partir do MP e, desde que fundamentada, caberá ao juiz aceitá-la. No entanto, quando não fundamentada, se o magistrado entender que é caso de aplicação do instituto, poderá, valendo-se do art. 28 do CPP e remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, a quem caberá decidir.

Para os doutrinadores acima, em contrapartida, em sendo o caso de ação penal privada e a vitima se negar a oferecer a transação penal, mesmo que sem fundamentar a sua decisão, pode o réu postular a medida, uma vez que trata-se de um direito do réu.

Luiz Flávio Gomes e Patrícia Donati de Almeida alegam que, de acordo com a estrutura conferida pela legislação brasileira, não se admite que o juiz, de ofício, ofereça a transação penal.

Para Roberto Podval (2002, p. 1911), "Em se tratando de ação penal privada a diferença está no fato de ser o querelante a parte legítima para propor a transação ou mesmo rejeitar a sua possibilidade. Não cabe aqui falar-se em direito subjetivo do querelado, mas sim de opção das partes em transacionarem.

O próprio Eugênio Pacceli (2003, p. 634), a princípio contrário à admissibilidade da transação penal e da suspensão condicional do processo na ação penal privada, ao final de sua exposição sobre o tema, passa a admitir a transação na impossibilidade real de composição civil, admitindo a suspensão do processo através do recurso à analogia in bonam partem, refutando os argumentos que se apóiam na disponibilidade da ação penal privada. Segundo ele, a suspensão do processo se insere no mesmo âmbito de disponibilidade da ação, podendo o querelante dela se valer ou não; aduz, por fim, que se o próprio Estado abdica da obrigatoriedade da ação penal para celebrar a suspensão condicional do processo, não há razões para que o querelante dela não possa lançar mão.

Outra parte da doutrina afirma que o Ministério Público é o defensor do interesse social, desta forma teria a legitimação necessária para propor a transação mesmo nos delitos de ação penal privada, devendo, portanto, ser seu titular, mesmo que na sua função constitucional de fiscal do cumprimento das leis. Magalhães Pinto (2002) seguindo esta corrente, afirma que "o Parquet é a própria sociedade em juízo, e somente essa instituição teria a legitimação necessária para iniciativa de tamanha importância".

Já uma terceira corrente opina pela faculdade do juiz em fazê-lo de ofício, homologando-a em seguida, o que é menos aceitável na prática, pois implicaria a instauração do processo penal ex ofício. Tanto é que a FONAJE substituiu seu Enunciado n° 49, o qual prescrevia que "Na ação de iniciativa privada, cabe a transação penal e a suspensão condicional do processo, por iniciativa do querelante ou do Juiz"15. para o Enunciado n° 90, o qual simplesmente atesta o cabimento da transação penal na ação penal privada, não mencionando sequer eventual legitimidade do juiz.

Contudo, Tourinho Filho defende ao o contrário, ou seja, a legitimidade do juiz, conforme disposição abaixo:

Quando o juiz decreta a prisão preventiva sem provocação de ninguém, não estará ele exercendo o direto de ação penal cautelar? Sua decisão não será uma resposta jurisdicional dada a si próprio? Quando ele concede habeas corpus de ofício, não

estará, também, dando uma resposta jurisdicional a ele mesmo? Quem provocou esta atividade jurisdicional?

Ainda alegam alguns doutrinadores, que alguma alternativa transacional deve ter cabimento, mesmo porque o legislador, no art. 89, só teve em consideração a pena mínima do delito e de modo algum deixou transparecer que quisesse excluir qualquer modalidade de ação penal (pública ou privada).

O fato de o art. 89 mencionar exclusivamente "Ministério Público", "denúncia", não é obstáculo para a incidência da suspensão na ação penal privada, por causa da analogia (no caso in bonam partem), que vem sendo reconhecida amplamente na hipótese do art. 76.

Não há dúvida que há um interesse maior na efetiva realização de uma política-criminal alternativa, assim como o interesse do próprio acusado de valer-se, querendo, dessa resposta estatal alternativa.

A jurisprudência, por sua vez, tem firmado entendimento dominante no sentido de aceitar a aplicação dos institutos da LJE nas ações penais privadas, conforme seguem abaixo:

" Suspensão condicional do processo instaurado mediante ação penal privada: acertada, no caso, a admissibilidade, em tese, da suspensão, a legitimação para propô-la ou nela assentir é do querelante, não, do Ministério Público. (STF – HC 81720 – SP – 1ª T. – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 19.04.2002 – p. 00049)

No STJ, igualmente a tese da admissibilidade tem sido acatada senão com base da analogia in bonam partem, na ausência de qualquer critério segregante vinculado à modalidade de ação penal:

O benefício previsto no art. 76 da Lei n.º 9.099/95, mediante a aplicação da analogia in bonam partem, prevista no art. 3º do Código de Processo Penal, é cabível também nos casos de crimes apurados através de ação penal privada (HC n.º 31.527/SP).

A Lei n.º 9.099/95 aplica-se aos crimes sujeitos a procedimentos especiais, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permitindo a transação e a suspensão condicional do processo inclusive nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada (RHC n.º 8.480/SP). E no mesmo sentido (HC n.º 33.929/SP; HC n.º 30443/SP; HC n.º 17601/SP; HC n.º 13.337/RJ).

Nos autos do RHC n.º 8.480/SP, em suas razões de decidir, o Min. Gilson Dipp assim se manifestou:

" Não vislumbro óbice à aplicação da Lei n° 9.099/95 aos crimes sujeitos a procedimentos especiais. desde que obedecidos os requisitos autorizadores, entendendo pela possibilidade da transação e da suspensão do processo até mesmo nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada."

O critério que define a incidência da lei, afora os requisitos subjetivos, é o menor potencial ofensivo da conduta praticada, que deve ser aferido pela pena mínima cominada ao delito.

Maiores restrições vem sendo dispensadas, tendo em vista que o fim precípuo da lei dos Juizados Especiais é justamente a negociação – o que faz com que se entenda que a sua aplicação deve ser a mais ampla possível, ultrapassando-se eventuais contrariedades pela hermenêutica penal e pelos fundamentos e princípios da própria lei.

Conforme já mencionado, os princípios da disponibilidade e da oportunidade são os orientadores da ação penal exclusivamente privada, tendo o legislador relegado ao ofendido (ou seu representante legal) o juízo de oportunidade e conveniência quanto à instauração da ação, o que é reforçado pela existência de institutos como a decadência, a renúncia, o perdão e a perempção.

No que concerne ao acordo civil, por expressa disposição da lei em estudo, este acarreta a renúncia ao direito de queixa. Consequentemente, entendeu a lei que se a vítima se compôs com o autor do fato em relação à reparação dos danos civis, dele obtendo a desejada satisfação, não mais se justifica o ajuizamento da ação penal nas infrações penais de menor potencial ofensivo (PELLEGRINI, 1999, p. 136).

Portanto, diante dos julgados e dos argumentos dos doutrinadores conclui-se que a transação penal prevista nos juizados especiais criminais decorre essencialmente da política criminal que informa o referido diploma e, sendo disposição benéfica, nada impede que seja utilizado o recurso da analogia permitindo a sua aplicação no âmbito das ações penais exclusivamente privadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

-BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte Geral. 8. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2003.

-CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 8. ed. rev. atual. Saraiva: São Paulo, 2002.

-JESUS, Damásio de. Direito penal: vol. 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.

-MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal – 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005.

-NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

-PACELLI, Eugênio de Oliveira. Curso de processo penal – 2. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2003.

-PELLEGRINI, Ada [et al.]. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei n.º 9.099/95. 4. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

-ZAFFARONI, Eugênio Raul e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: Parte Geral. 4. ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.