Carandiru, polícia operativa (justiceira) e a "guerra de todos contra todos"


Porwilliammoura- Postado em 25 abril 2013

Autores: 
GOMES, Luiz Flávio

 

LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista, diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do Portal atualidadesdodireito.com.br. Estou no blogdolfg.com.br

 

ALICE BIANCHINI, doutora em Direito penal pela PUC/SP e coeditora do Portal atualidadesdodireito.com.br.

 


 

Ninguém pode negar a importância de uma polícia armada que se responsabilize pela manutenção da ordem, sobretudo nos momentos de grande desordem social. O problema, no nosso país, é que a policiais são imputados frequentemente vários atos que teriam sido cometidos de forma arbitrária, vingativa, excessiva, ou seja, fora da lei. Polícia fora da lei é uma contradição insuperável. No caso Carandiru o Tribunal do Júri, com grande acerto, concluiu que os policiais militares praticaram excesso.

 

 

Majoritariamente a sociedade brasileira não concorda com a atuação abusiva da polícia. Em pesquisa de 2008, respondendo ao questionamento “A atividade da polícia é muito perigosa; é bom que a polícia atire primeiro para fazer pergunta depois”, somente 5% esteve plenamente de acordo, contra 81% que se posicionou totalmente contrário. No quadro abaixo podem ser conferidas as demais percepções da sociedade sobre o tema (clique aqui). 

 

O massacre de 111 presos, em 1992, é emblemático na nossa história, não só porque gerou o nascimento do PCC (hoje o crime organizado violento mais poderoso do país), senão, sobretudo, porque ele retrata uma espécie de política de Estado (vigente até hoje no Estado de São Paulo), atribuída e executada por alguns setores da polícia militar, que estariam autorizados a praticar todo tipo de excesso e de arbítrio.

 

 

Trata-se da chamada polícia operativa, cujo conceito, consoante Juarez Cirino dos Santos, foi desenvolvido nos países centrais e “deformou a missão da Polícia, que pretende acabar com a criminalidade pela eliminação dos autores de crimes (autores reais, potenciais e suspeitos).”

 

 

A polícia operativa é excessiva, abusiva, e tem no extermínio a sua meta, ou seja, ela se julga acima das leis, assumindo como sua finalidade a de eliminar quem é considerado (ou eleito como) inimigo, em geral de forma impune, seja em razão do parcial, mas forte apoio popular, seja em virtude da conivência de muitas autoridades constituídas.

 

 

A polícia operativa não tem nada a ver com o Estado de direito, que se caracteriza pela previsão e cumprimento de normas jurídicas que asseguram os direitos e garantias fundamentais das pessoas, sobretudo diante do poder punitivo do Estado.

 

 

O oposto do Estado de direito é o Estado de exceção, cuja marca principal é a suspensão desses direitos e garantias, ao mesmo tempo em que impõe novo ordenamento jurídico, de acordo com a vontade do governante (assim ocorreu no regime stalinista, no regime nazista, no Estado Novo de Getúlio Vargas, nas ditaduras militares etc.).

 

 

O regime de exceção, no seu estágio patológico, alcança o chamado Estado de Polícia, que atua completamente fora da legalidade, protagonizando uma espécie de poder punitivo do terror ou subterrâneo.

 

 

Esse Estado de Polícia se transforma num poder escatológico (terrorífico e morticida) quando adota como política (pública) o extermínio dos considerados inimigos, ou seja, a eliminação física dos indesejados, sem o controle dos juízes (que muitas vezes deixam de cumprir seu papel de semáforo vermelho para o arbítrio - Zaffaroni).

 

 

A sociedade e o Judiciário (ou parcelas suas) que apoiam esse expurgo violento, que não colocam limites na atuação da polícia, mesmo sabendo que a violência só gera mais violência (desde o massacre do Carandiru mais de 12 mil pessoas foram assassinadas pela polícia somente no Estado de São Paulo; ao mesmo tempo, mais de mil policiais foram executados nesse mesmo período), retratam um estágio incivilizacional muito preocupante, porque composta de “animais [claramente] não domesticados” (como diria Nietzsche).

 

 

A tese “bandido bom é bandido morto” divide a sociedade. 43% dos brasileiros estão de acordo, em certa medida, com ela, contra 48% que discordam total ou parcialmente. Abaixo podem ser encontrados os dados completos (clique aqui).

 

A chamada polícia operativa (política de extermínio), em plena pós-modernidade, significa o retorno do que Hobbes chamava de “estado de natureza”. Este filósofo, nascido em Londres (1588-1679), acabou testemunhando a Guerra Civil Inglesa, que culminou com a execução do rei Charles I.

 

 

Sua vida filosófica centrou-se, não por coincidência, em temas como paz, segurança, estado, guerra e ordem. A primeira paixão (ou ameaça) dos homens [seres humanos], num contexto bélico, só pode ser o medo de morrer. O ser humano do tempo de Hobbes, em países violentos como o Brasil (18° país mais violento do mundo), não é muito distinto do ser humano do século XXI (que vive com medo de morrer, de ser atacado, de ser vitimizado), sobretudo se ele habita os deteriorados e grandes centros urbanos.

 

 

Dentre tantas outras, duas teses hobbesianas se destacam: (a) a da necessidade de um poder soberano (de um Estado, de uma República), indivisível e indiscutível, que significaria a submissão total e absoluta de todos os súditos [o exagero dessa tese é, por todos, notado]; (b) a da imprescindibilidade do Estado (da República, de leis, da força do Estado), porque sem Estado a selva é o nosso destino.

 

 

Durante o tempo em que os homens (seres humanos) vivem sem um poder comum (um Estado) capaz de mantê-los todos sob determinada ordem, “eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens” (“Bellum omnium contra omne”).

 

 

Se temos medo de morrer (de sermos atacados, de sermos vitimizados), torna-se a preservação da vida a base da nossa existência (o eixo do nosso “contrato social”). Para preservarem suas vidas (seu patrimônio, suas liberdades), os homens da era da pós-modernidade, em países de capitalismo selvagem (esse é o caso do Brasil), forjaram um “estado generalizado de guerra” (não declarada), em que “todo homem [desconhecido] é inimigo de todo homem” (Hobbes).

 

 

Em pleno século XXI, mesmo depois da revolução industrial, da revolução francesa, da revolução tecnológica e da revolução comunicacional, grande parcela dos habitantes da Terra vive a barbárie da “vida solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”, que caracteriza o “estado de natureza”. Em plena era da pós-modernidade muitos seres humanos continuam mais preocupados com a sobrevivência que com a própria convivência.

 

 

É quase que impossível imaginar a coexistência em uma sociedade sem que o Estado detenha o “monopólio legítimo da violência” (Max Weber). O Estado é imprescindível, mas o problema é que ele, muitas vezes, também é excessivo (tirânico, autoritário, selvagem).

 

 

Conclusão: tanto a ausência de Estado (da República) como o Estado excedente (abusivo, justiceiro) nos leva ao “estado de natureza” (que gera a guerra de todos contra todos). Não só a ausência do Estado nos leva à selva do medo, também os seus excessos (os excessos dos seus agentes, especialmente dos agentes encarregados da segurança pública e da Justiça). Se sem o Estado a selva e a barbárie são o nosso destino, com sua presença excessiva, torturante e mortífera (é a isso a que conduz a política do extermínio), chegamos ao mesmo resultado. Não é com selvageria, que faz parte do caos brasileiro, que o Brasil vai um dia se transformar numa nação próspera.

 

 

A polícia operativa (violenta, excessiva, abusiva) nos evoca aspectos relevantes da criação autoritária do próprio Estado brasileiro. José de Souza Martins (O Estado de S. Paulo de 18.09.11, p. J5), a propósito, escreveu:

 

 

“Nossas polícias, remotamente, surgiram como alternativa para o jagunço privado dos potentados locais, quando se constituiu o Estado nacional. Quando do combate ao cangaço, nos anos 20 e 30, literalmente não havia diferença entre a composição dos bandos de cangaceiros e a composição da polícia que os combatia. No fundo, os policiais não atuavam como agentes do serviço público, mas como cangaceiros do Estado. A mentalidade era a mesma. O recrutamento dos policiais ainda se dá na camada da população mais próxima da mentalidade localista, para a qual os valores e distinções de público e privado são tênues e em que a farda legitima ímpetos de poder pessoal e não a impessoalidade do Estado”.

 

 

O caso Carandiru, como se vê, ao constituir mais um triste capítulo do nosso autoritarismo (de origem étnica e racial), normalmente impune, acabou gerando não só o maior crime organizado no nosso território (o PCC), senão também a consolidação da nossa imagem de um país extremamente violento (Brasil é o 18º no ranking dos países mais violentos do planeta).

 

 

 

Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_percepcoes/percepcoes.pdf. Acesso em: 20.04.2013. p. 249.

 

Sobre o tema, sugerimos a entrevista de Camila Caldeira Nunes Dias, disponível em:http://atualidadesdodireito.com.br/tertulias/2012/08/21/violencia-pcc-e-prevencao-do-crime-camila-caldeira-nunes-dias/.  

 

Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/Artigo%20OAB.pdf. Acesso em: 20.04.2013.

 

Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_percepcoes/percepcoes.pdf. Acesso em: 20.04.2013. p. 249.

 

Levantamento realizado pelo Instituto Avante Brasil com dados do PNUD e UNODC da ONU - atualizado em abril/2013. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/iab/wp-admin/post.php?post=19941&action=edit. Acesso em: 20.04.2013.