A cidadania como status de discriminação e exclusão dos direitos humanos


Porwilliammoura- Postado em 12 junho 2012

Autores: 
ZART, Ricardo Emilio

A cidadania como status de discriminação e exclusão dos direitos humanos

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O conceito de cidadania; 3. Limitações aos direitos da pessoa pelo status cidadania; 4. A cidadania como fator de garantia dos direitos humanos; 5. Conclusão; 6. Referências

1. Introdução

A questão da cidadania no mundo globalizado e globalizante, bem como os seus reflexos nos direitos fundamentais é cada vez mais relevante, principalmente no que diz respeito ao chamado Direito Comunitário.

Não se trata aqui da cidadania vista pelo prisma da soberania interna dos Estados, mas sim, pelo seu aspecto cosmopolita, conforme pensamento de Kant, considerando as restrições sofridas pelos direitos fundamentais das pessoas denominadas “estrangeiras”, dentro do atual sistema da globalização.

Os confrontos entre imigrantes oriundos do norte da África e a polícia francesa, em 2005, a construção do muro separando os Estados Unidos do México, com o intuito de restringir a imigração latina, são exemplos de como a cidadania pode ser usa a fim de limitar os direitos fundamentais de pessoas que não tenham o status de cidadãos destes países.

O intuito do presente estudo é, com base no alerta já lançado pelo jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli, é apresentar os problemas que já vem surgindo por conta da má utilização do conceito de cidadania, como excludente de direitos fundamentais, bem como as propostas possíveis para solucionar este problema.

2. O conceito de cidadania

A cidadania, no sentido empregado pela soberania interna do Estado, normalmente é conceituada como a possibilidade de participação na vida política do Estado.

Como exemplo disto, tem-se a conceituação clássica de cidadania e cidadão dada pelo Professor José Afonso da Silva:

Cidadania [...] qualifica os participantes da vida do Estado, é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política. Cidadão, no direito brasileiro, é o individuo que seja titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas conseqüências.[2]

Porém, conceito marcante para se falar de cidadania foi o apresentado por Thomas H. Marshall[3], em 1949, que o decompõe em duas partes fundamentais: a primeira diz que a cidadania seria um estado atribuído àqueles que são membros de pleno direito de uma determinada sociedade; e, a segunda afirma que a cidadania seria também um estado ao que se associam, pela lei, todos os direitos, de forma que esta se converte na denominação compreensiva de todo o conjunto de direitos que o autor considera como “direitos de cidadania”, quais sejam, os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais.

Para Ferrajoli, este conceito apresentado por Marshall, principalmente em sua segunda parte, se mostra confuso e retrógrado. Para ele, não é correto se falar na divisão proposta pelo chamado “direito de cidadania” apresentado por Marshall. Aponta, inclusive como distinção clássica, a divisão meramente em direitos da pessoa e direitos do cidadão, com base na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789, sendo os primeiros direitos da personalidade, que alcançam todos os seres humanos enquanto individuas, e, os direitos do cidadão os que tratam de direitos políticos inerentes aos cidadãos de determinado Estado.[4]

Não há dúvida que esta diferença reconhecida por Ferrajoli quanto aos direitos da pessoa e os direitos do cidadão é importante para se definir o status de cidadão, ou seja, aquele que tem possibilidade de participar ativamente da vida política do Estado.

Porém, o que se discute do uso indevido do conceito de cidadania, é a limitação proposta por Marshall dos direitos considerados por ele como civis e sociais, que seriam exclusivos do titular da cidadania, o que não se pode admitir.

Pelo contrário, cabe constatar que a cidadania dos nossos países ricos representa o último privilégio de status, o último fator de exclusão e discriminação, o último resíduo premoderno da desigualdade pessoal em contraposição coma proclamada universalidade e igualdade dos direitos fundamentais.[5]

E esta visão de Ferrajoli quando diz que a cidadania encarada em sua face do direito internacional se posiciona como fator de segregação, não quer dizer que se retire o valor dado ao conceito interno de cidadania, porém, acaba por discutir qual realmente é a função da cidadania dentro de um mundo globalizado, em que as fronteira nacionais começam a desaparecer e cada vez mais o Estado-nação tem diminuída a sua soberania.

3. Limitações aos direitos da pessoa pelo status cidadania

O conceito de cidadania proposto por Marshall acaba por se tornar um fator de exclusão de todas aquelas pessoas que não sejam detentoras do status de cidadão, o que não é difícil de ocorrer atualmente no mundo globalizado.

Ora, apenas a fim de ilustrar tal questão, considerando-se com Marshall que o cidadão é que detém direitos políticos, civis e sociais, pense-se na hipótese de casal argentino, que venha a residir em cidade de fronteira no Brasil. Estas pessoas não terão atendimento médico-hospitalar pela rede credenciada do Sistema Único de Saúde, por não serem cidadãos brasileiros, bem como seus filhos não terão possibilidade de freqüentar a escola, pelo mesmo motivo. É um exemplo simplório, mas que acontece na prática quase que diariamente.

De fato, pode-se argumentar que no caso brasileiro a Constituição Federal reconhece, no caput  do seu artigo 5º, que os direitos e garantias ali constantes se dão a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no País. Bem como os artigos 196 e 205 pregam que a saúde e a educação, respectivamente, são direitos de todos e dever do Estado.

Porém, na prática, essas pessoas, por não terem documentos brasileiros, terão maiores dificuldades, às vezes intransponíveis, para alcançar tais direitos.

E esse cerceamento não ocorre apenas no caso brasileiro, e pode ser melhor observado observando-se a Comunidade Européia, onde os imigrantes, mesmo de países participantes desta Comunidade considerados como periféricos, são tratados como pessoas de segunda categoria, tendo seus direitos civis e sociais limitados.

Habermas representa assim a questão:

A pesar das rígidas regulamentações da imigração (e, no nosso caso, inconstitucionais) que trancavam o forte da Europa, todas as nações européias encontram-se entrementes a caminho da sociedade multicultural. É evidente que essa pluralização das formas de vida não se dá sem atritos. Por um lado o Estado constitucional democrático está normativamente mais bem armado do que outras ordens políticas para problemas de integração desse gênero; por outro lado, esses problemas são de fato um desafio para os Estados nacionais de cunho clássico.[6]

A questão que se apresenta, neste caso, é que o choque cultural entre o tradicionalismo europeu e as culturas que começam a reivindicar os seus direitos perante a Comunidade Européia tem gerado conflitos cada vez mais constantes, e o que é pior, o aumento da diferenciação entre as pessoas, calcada em sua origem nacional, com o intuito de limitar-se os seus direitos dentro dos países europeus.

Ferrajoli, por sua vez, prioriza, principalmente no caso europeu, o fato de que os povos considerados de “Terceiro Mundo”, que um dia já foram colônias européias, têm o direito, quase que uma indenização, de terem seus direitos reconhecidos perante a União Européia, principalmente o ius migrandi, em nome do princípio da reciprocidade, pois sempre foram considerados como direitos universais do ser humanos. E conclui:

Mas hoje, depois de ter sido precisamente a Europa quem invadiu durante séculos o resto do mundo com suas conquistas e com suas promessas, não podemos realizar uma operação inversa – transformando os direitos do homem em direitos dos cidadãos – sem abdicar do universalismo dos princípios em que se funda a credibilidade de nossas democracias. Levar a sério aqueles valores, os direitos humanos proclamados nas cartas constitucionais, significa, por conseqüência, ter o valor de desvincular-los da cidadania, ou seja, do último privilégio de status que sobrevive no direito moderno. E isto significa reconhecer seu caráter supra-estatal, garantido-os não só dentro mas também fora e contra todos os Estados, e assim por fim a este grande apartheid que exclui de sua fruição a maioria do gênero humano.[7]

Outra visão, menos esperançosa, porém mais realista dos efeitos da globalização sobre a questão da cidadania é a apontada por Friedrich Muller, que no seu já clássico artigo “Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático?”, onde demonstra com números que os sistemas democráticos não podem ficar apenas no papel, mas cumprir a sua função de democracia substantiva, não apenas como mero procedimento, tendo reflexos na cidadania como garantia dos direitos humanos, e não como forma de exclusão.[8]

Diante disso, deve-se observar que o conceito de cidadania deve ser inclusivo, não como vem sendo utilizado, como forma de segregação e limitação de direitos civis e sociais de povos migrantes.

4. A cidadania como fator de garantia dos direitos humanos

De fato, a cidadania considerada nos termos apresentados por Ferrajoli, deve deixar de ser um escudo utilizado pelos países desenvolvidos contra as pessoas que oriundas de nações pobres, a fim de restringir seus direitos civis e sociais, para ao contrário, garantir-lhes todos estes direitos. Em outras palavras, não apenas garantir aos países desenvolvidos a mão de obra barata que tanto necessitam, mas sim, em contraprestação, garantir a estas pessoas uma vida digna, conforme a universalidade dos direitos humanos.

Habermas vislumbra a possibilidade de a cidadania, de forma globalizada, ser um marco nas garantias dos direitos humanos, como pode ser lido:

Isso pode ser mostrado hoje em dia nos desafios do “multiculturalismo” e da “individualização”. Ambos nos obrigam a abrir mão da simbiose do Estado constitucional com a “nação” como uma comunidade de origem, para que a solidariedade entre os cidadãos possa se renovar em um nível mais abstrato no sentido de um universalismo mais sensível às diferenças. A globalização pressiona do mesmo modo o Estado nacional a se abrir internamente para a pluralidade de modos de vida estrangeiros ou de novas culturas. Ao mesmo tempo, ela elimina de tal modo o âmbito de ação dos governos nacionais, que o Estado soberano também tem de se abrir para fora diante de administrações internacionais.[9]

Poderia se dizer, com base na globalização cada dia mais visível e atuante em todos os ramos, tanto político, quanto comercial, cultural e religioso, na implementação, pelo menos das bases teóricas, de um direito cosmopolita, ou seja, em que qualquer pessoa tem diretos garantidos em todo e qualquer lugar do mundo, ou seja, a possibilidade de criação do chamado “cidadão do mundo”.[10]

Outro aspecto destacado da teoria kantiana referente , é que o direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal.

É lógico que tal idéia se apresenta de certa forma como uma utopia, porém, são com idéias assim é que a humanidade tem a possibilidade de progredir.

Para Ferrajoli, a hipótese seria a de criação e instituição de um constitucionalismo mundial ou de direito internacional, a fim de abarcar todas as questões que consideradas atualmente dentro do conceito de supra-nacionalidade, o seja, que não conseguem mais ser solucionadas com base no Estado nacional.

Não nego que semelhante perspectiva de universalização tem hoje um sabor de utopia jurídica. Porém, a história do direito é também uma história de utopias [...] convertidas em realidade. Esta, em todo o caso, depois da derrubada dos muros e depois do fim dos blocos poderia ser a exigência mais importante que provem hoje de qualquer teoria da democracia que seja de acordo com a doutrina dos direitos fundamentais: alcançar – sobre a base de um constitucionalismo mundial já formalmente instaurado através das convenções internacionais mencionadas, porém ainda carentes de garantias – um ordenamento que rechace finalmente a cidadania: suprimindo-a como status privilegiado que congrega direitos não reconhecidos a aos não cidadãos, ou, ao contrário, instituindo uma cidadania universal; e, portanto, em ambos os casos, superando a dicotomia “direitos do homem/direitos do cidadão” e reconhecendo a todos os homens e mulheres do mundo, exclusivamente enquanto pessoas, idênticos direitos fundamentais. Não menos irreal nem ambicioso, até mais, deviam parecer até dois séculos o desafio às desigualdades do Antigo Regime contido nas primeiras Declarações de direitos, e a utopia que naquela época alentou a ilustração jurídica e, mais tarde, toda a história do constitucionalismo e da democracia.

Com este constitucionalismo internacional propugnado por Ferrajoli, a cidadania universal ganha destaque, uma vez que toda e qualquer pessoa tenha acesso, ao menos, aos direitos considerados humanos, mesmo porque os direitos políticos, enquanto ainda vigente a soberania nacional, só podem mesmo ser exercidos pelos seus nacionais.

5. Conclusão

A cidadania, como visto, realmente tem sido utilizada como limitadora dos direitos humanos de pessoas consideradas não-cidadãs de um determinado país.

O “Forte Europa” ainda é o maior exemplo em que a cidadania é utilizada como óbice para o exercício de direitos considerados como universais, principalmente levando em conta a forma como recebe e trata o “estrangeiros” oriundos de outros países, inclusive participantes da própria Comunidade Européia.

É preciso, no dizer de Enrique Dussel[11], revisar a chamada Modernidade, onde a Europa se coloca como o centro do mundo, colonizadora, exploradora e ditadora de direitos, agora que ela se tornou o destino de imigrantes de todo o mundo, não podendo fechar as suas portas a todos aqueles que querem fazer uso do seu direito de busca da felicidade. Para ele palavra chave é alteridade, ou seja, não ver o outros apenas como outro, mas sim como uma pessoa distinta que faz parte da humanidade.

Mas a questão referente ao apartheid com base na cidadania não se dá exclusivamente na Europa, sendo um problema crônico dos países considerados setentrionais.

Entretanto, Kant e Ferrajoli, o primeiro com seu direito cosmopolita e o segundo com seu constitucionalismo internacional, buscam, mesmo de forma utópica (esta considerada não no seu sentido de impossível ou improvável, mas no preconizado por Thomas Morus[12]), buscam uma forma de coexistirem todos os povos do mundo como numa “aldeia global”, ou seja, ao invés do levantamento dos muros, quedas de todas as fronteiras, garantido a este verdadeiro “cidadão do mundo” todos os direitos já consagrados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948.

6. Referências

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Trad. Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002.

FERRAJOLI, Luigi. De los derechos del ciudadano a los derechos de la persona. In: FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias – la ley del  más de débil. Trad. Perfecto Andrés Ibañez. Madrid: Editorial Trotta, 1999.

FERRAJOLI, Luigi. La soberanía en el mundo moderno. In: FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias – la ley del  más de débil. Trad. Perfecto Andrés Ibañez. Madrid: Editorial Trotta, 1999.

HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – estudos políticos. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.

KANT, Immanuel. À paz perpétua. Trad. Marco Antônio Zingano. São Paulo: L&PM Editores, 1989.

MARSHALL, Thomas H. Ciudadanía e clase social. Madrid: Alianza, 1998.

MORUS, Thomas. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? In: PIOVESAN, Flávia (Coor.) Direitos humanos, globalização e integração regional. Desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 345-346.


Notas:

[2] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 345-346.

[3] MARSHALL, Thomas H. Ciudadanía e clase social. Madrid: Alianza, 1998.

[4] FERRAJOLI, Luigi. De los derechos del ciudadano a los derechos de la persona. In: FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias – la ley del  más de débil. Trad. Perfecto Andrés Ibañez. Madrid: Editorial Trotta, 1999. p. 99.

[5] Idem. p. 117.

[6] HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – estudos políticos. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001. p. 93.

[7] FERRAJOLI, Luigi. La soberanía en el mundo moderno. In: FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias – la ley del  más de débil. Trad. Perfecto Andrés Ibañez. Madrid: Editorial Trotta, 1999. p. 154-155.

[8] MÜLLER, Friedrich. Que grau de exclusão social ainda pode ser tolerado por um sistema democrático? In: PIOVESAN, Flávia (Coor.) Direitos humanos, globalização e integração regional. Desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 567-596.

[9] HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional – estudos políticos. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001. p. 107.

[10] KANT, Immanuel. À paz perpétua. Trad. Marco Antônio Zingano. São Paulo: L&PM Editores, 1989. p. 43.

[11] DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Trad. Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002.

[12] MORUS, Thomas. Utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.