Coisa julgada constitucional e o novo conceito de trânsito em julgado


Porwilliammoura- Postado em 20 maio 2013

Autores: 
SOARES, Carlos Henrique

 

Apresenta-se um novo conceito de transito em julgado, não mais pautado apenas na preclusão temporal ou consumativa, mas também na legitimidade decisória.

 

Sumário: I. Introdução. II. Ensaio sobre caso julgado inconstitucional. III. Críticas ao pensamento de Paulo Otero. IV. (Novo) conceito de trânsito em julgado. V. Conclusão. VI. Bibliografia.

 


I. Introdução

 

O termo coisa julgada inconstitucional vem sendo muito utilizado no direito processual brasileiro para justificar a possibilidade de revisão da coisa julgada. Assim, como esse termo surgiu a partir dos estudos desenvolvidos pelo autor português Paulo Otero em sua obra intitulada Ensaio sobre caso julgado inconstitucional, achamos por bem apresentar de forma sistemática as principais ideias desenvolvidas pelo autor, no objetivo de apresentar ao estudante as principais diretrizes sobre a possibilidade de modificação ou flexibilização da coisa julgada no direito brasileiro.

 


II.Ensaio sobre caso julgado inconstitucional

 

O plano da obra do Professor Paulo Otero se divide em 6 (seis) parágrafos, os quais podemos citar: (primeiro parágrafo) “Controlo dos actos do poder público”, (segundo parágrafo) “Caso julgado como decisão do poder público”; (terceiro parágrafo) “Caso julgado e ilegalidade da decisão judicial”; (quarto parágrafo) “Inconstitucionalidade do caso julgado”; (quinto parágrafo) “Caso julgado inconstitucional e vinculação dos tribunais: imodificabilidade e obrigatoriedade das decisões inconstitucionais?”; (sexto parágrafo) “Caso julgado inconstitucional e vinculação das entidades públicas e privadas: obrigatoriedade e prevalência das decisões inconstitucionais?”

No primeiro capítulo do Ensaio, é apresentada análise história do controle dos atos públicos, introduzindo a noção do princípio da legalidade, da constitucionalidade e juridicidade.

 

Afirma o autor que

no período anterior à revolução liberal, existe a convicção generalizada da ausência de quaisquer mecanismos de controlo do poder público. Todavia, durante o Estado pré-liberal, mesmo em plena fase de concentração de poderes no monarca, ao contrário de tudo quanto se possa pensar, a cessação de vigência dos actos do poder público não se operava apenas pela revogação, caducidade ou desuso, antes existiam mecanismos específicos de controlo da validade de certos actos jurídicos-públicos ou, mais genericamente, de alguns aspectos da actividade do poder público.[1]

 

Não existia no período pré-liberal a noção de hierarquia normativa entre os atos do poder público. Esta noção surge somente após o término da Revolução Francesa, quando se inaugura o período liberal e ganha força o princípio da legalidade, em que os atos do poder público estão vinculados à lei.

 

O princípio da legalidade possui como função a limitação do poder estatal. Tal garantia aparece como fator de estruturação da atividade administrativa, bem como de elemento garantístico dos particulares. A Administração Pública só poderia praticar atos em conformidade com a lei, pois em caso contrário, seriam invalidados.

 

Ressalta Paulo Otero que

 

o Estado liberal trouxe consigo uma nova concepção de controlo do poder político, sujeitando os actos administrativos a diferentes processos de fiscalização de sua legalidade independentemente do respectivo autor. Em simultâneo, o princípio da legalidade passou a assumir intuitos legitimadores da acção administrativa, desempenhando ainda uma função garantística das posições jurídicas subjectivas dos adminitrados.[2]

 

Com a evolução do Estado de Direito e, principalmente, com a experiência constitucional norte-americana, no século XIX, surge, como corolário do princípio da legalidade, o princípio da constitucionalidade. Este princípio permitiu o controle jurisdicional de validade dos atos do poder legislativo, tendo como padrão de conformidade a Constituição. As leis que não estivessem em conformidade com a constituição seriam consideradas inválidas.

 

Verifica-se que, nos últimos duzentos anos, as atenções jurídicas ao princípio da constitucionalidade estão voltadas exclusivamente aos atos emanados pelos poderes legislativo e executivo. A constitucionalidade dos atos do poder jurisdicional foram objetos de esquecimento quase que total, apenas justificado pela persistência do mito liberal que configura o juiz como “a boca que pronuncia as palavras da lei e o poder judicial como ‘invisível e nulo’(Montesquieu)”.[3]

 

Também os tribunais podem desenvolver atividade geradora de situações patológicas, proferindo decisões que não executem a lei, desrespeitem os direitos individuais ou cujo conteúdo vá ao ponto de violar a Constituição. Diante de uma decisão judicial que viola a Constituição e que ainda não transitou em julgado, existem os recursos ordinários e extraordinários capazes de corrigi-las. O problema é justamente quando a decisão judicial viola a Constituição, não cabendo nenhum recurso ordinário ou extraordinário.

 

O princípio da constitucionalidade também influenciou a atividade do poder judiciário. Surge, então, o que Paulo Otero chama de princípio da juridicidade.[4] O princípio da juridicidade prescreve que os atos emanados pelo poder jurisdicional devem estar em conformidade com a Constituição, sob pena de nulidade.

 

No momento em que surge a constitucionalidade, como fator de estruturação da sentença judicial, surgem também dois problemas a ser resolvidos: a) quais os mecanismos processuais necessários para corrigir a sentença inconstitucional passado em julgado (caso julgado inconstitucional)? b) que órgão seria competente para fiscalizar e controlar a constitucionalidade da sentença? Com essas indagações, Paulo Otero encerra o primeiro capítulo de seu Ensaio.

 

O caso julgado é uma decisão que se consolidou na ordem jurídica e que se mostra imodificável. Segundo Paulo Otero, essa imodificabilidade ou inalterabilidade da decisão judicial pode fundamentar-se em três razões: 1º.) pelo esgotamento dos meios jurisdicionais de impugnação da decisão quanto pela não previsibilidade de recorribilidade; 2º.) pela preclusão legal dos prazos para interposição de recurso; 3º) pela desistência recursal.[5]

 

No entanto, o caso julgado admite, excepcionalmente, modificação, e essa modificação pode se dar por meio de:

1º.) interposição de recurso de revisão, seja proferida em processo civil ou penal;[6] 2º.) recurso de oposição de terceiro;[7] 3º.) nas ações de prestações de alimentos;[8] 4º.) em matéria criminal, quando houver superveniência de lei penal que descriminalize um comportamento que foi objeto de condenação;[9] 5º.) e por último, a declaração de inconstitucionalidade de uma norma penal e que venha a favorecer o réu.[10]

No terceiro parágrafo, o autor propõe a responder a seguinte pergunta: “será que as decisões judiciais desconformes com o Direito formam caso julgado?”[11] Ainda não se trata aqui do problema sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do caso julgado, mas sobre a legalidade ou ilegalidade do mesmo.

 

Partindo do Direito português antigo, afirma Paulo Otero que “a decisão judicial contrária ao Direito seria nula, nunca possibilitando a formação de caso julgado”.[12] No entanto, no Direito atual,[13] a decisão judicial contrária ao ordenamento jurídico positivo se transforma em firme, irrevogável, imodificável, sendo válida.

 

Buscando obter resposta sobre a validade de um caso julgado em descoformidade com o Direito Positivo, Paulo Otero procura fundamentação em autores como Hans Kelsen, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa.

 

Hans Kelsen, em sua obra Teoria Pura do Direito, trata do problema sobre o caso julgado ilegal como sendo um problema de conflito entre normas de diferentes escalões. Para Kelsen, a ordem jurídica, ao atribuir a força de caso julgado a uma decisão judicial, confere ao tribunal de última instância o poder de criar, quer uma norma jurídica individual cujo conteúdo se encontre predeterminado numa norma geral criada por via legislativa ou consuetudinária, quer uma norma jurídica individual cujo conteúdo se não ache deste jeito predeterminado, mas que vai ser fixado pelo próprio tribunal de última instância. Ora, estas duas normas formam uma unidade, daí que não se pode dizer existir um conflito entre a norma individual criada pela decisão judicial e a norma geral: o trânsito em julgado significa, afinal, a possibilidade conferida à ordem jurídica de que entre em vigor uma norma individual, cujo conteúdo não é predeterminado por qualquer norma geral.[14]

 

João de Castro Mendes

 

entende que a sentença ilegal que transita em julgado é válida atendendo ao princípio da separação de poderes, competindo aos tribunais não um mero poder decorrente do legislativo, antes sendo titulares de um poder de jus proprium, dotado de soberania, assumindo-se o caso julgado como um acto de autoridade soberana que não se funda na lei, nem pode ser posto em causa por qualquer outro poder do Estado.[15]

 

Miguel Teixeira de Souza entende que

 

o caso julgado comporta um aspecto normativo e um aspecto funcional: o primeiro traduz a vinculação da organização judiciária à imutabilidade do sentido da decisão judicial; o segundo, consubstancia o sentido de imutabilidade da decisão judicial na determinação do Direito substantivo. Nesse contexto, a qualificação da sentença como sendo justa ou injusta apenas se coloca ao nível do aspecto funcional, confrontando a verdade processual e a verdade extraprocessual.[16]

 

Nesse sentido, Paulo Otero aceita que é possível que uma decisão judicial transite em julgado, fazendo caso julgado, mesmo em desconformidade com o ordenamento jurídico. Para ele, é facilmente compreensível que a sentença ilegal possa consolidar-se na ordem jurídica, uma vez que o Poder Judiciário possui legitimidade jurídico-constitucional idêntica à do poder Legislativo.[17]

 

A lei, estabelecendo previsões e estatuições nas suas regras, deixa para os tribunais a subsunção dos casos concretos ao estabelecido de forma geral e abstrata, o que envolve delicadas operações de interpretação, valoração e integração. Porém, o que não pode o tribunal fazer é afastar a estatuição legal válida, substituindo-a por uma outra, seja por erro ou por pura arbitrariedade de escolha de uma solução que considere mais conveniente ou oportuna fora da margem de liberdade permitida por lei para a resolução daquele caso concreto.[18]

 

Pelo contrário, a sentença violadora da Constituição não se mostra passível de encontrar um mero fundamento constitucional indireto de validade e eficácia. A segurança e certeza jurídicas inerentes ao Estado de Direito são insuficientes para fundamentar a validade de um caso julgado inconstitucional.[19]

 

O princípio da constitucionalidade determina que a validade de quaisquer atos do poder público dependa sempre da sua conformidade com a Constituição. As decisões judiciais desconforme com a Constituição são inválidas; o caso julgado daí resultante, consequentemente, é também, inválido, encontrando-se ferido de inconstitucionalidade.

 

Assim, Paulo Otero apresenta as modalidades de inconstitucionalidade presentes no caso julgado:

 

a) Primeira situação – a decisão judicial cujo conteúdo viola directa e imediatamente um preceito ou princípio constitucional;

b) Segunda situação – a decisão judicial que aplica uma norma inconstitucional;

 

c) Terceira situação – a decisão judicial que recusa a aplicação de uma norma com o fundamento de que a mesma é inconstitucional, sem que se verifique qualquer inconstitucionalidade da norma.[20]

 

Com relação à primeira situação,

 

o entendimento constitucional parece pressupor que a inconstitucionalidade das decisões judiciais passa sempre pela aplicação de normas e estas é que podem ser inconstitucionais ou não, daí que duas alternativas sejam admissíveis: ou a decisão judicial aplica uma norma inconstitucional ou, pelo contrário, recusa a aplicação de uma norma que não é inconstitucional. Em qualquer dos casos, a Constituição assegura sempre o recurso das decisões para o Tribunal Constitucional.[21]

 

Em relação à segunda situação, em que a decisão judicial aplica um norma inconstitucional, deve-se diferenciar duas hipóteses, quais sejam:

 

Hipótese C – a norma aplicada já havia sido objeto de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral; Hipótese D – A norma aplicada ainda não havia sido declarada inconstitucional com força obrigatória geral.[22]

 

Em ambos os casos estamos diante de um caso julgado cuja decisão jurídica foi contrária à Constituição.

 

Por último, a terceira situação, em que a decisão judicial deixa de aplicar a norma constitucional, deve-se diferenciar duas hipóteses, quais sejam:

 

hipótese E – A norma que o tribunal vai aplicar para fundamentar a sua decisão é, esta sim, ao invés daquela afastada, uma norma inconstitucional; hipótese F – A norma que o tribunal vai aplicar em substituição da que foi afastada como sendo inconstitucional, é ela uma norma conforme a Constituição.[23]

 

Recortadas as situações de inconstitucionalidade do caso julgado, importa referir-se ao princípio da constitucionalidade, traçando-se o seguinte enunciado: “todos os atos do poder público incluindo os actos jurisdicionais, são inválidos se desconformes com a constituição.”

Com essa afirmativa acima, Paulo Otero levanta algumas proposições:

 

a) a invalidade de um acto jurídico não significa a ausência de produção de efeitos jurídicos, assim as decisões judiciais inconstitucionais nunca se consolidam na ordem jurídica, podendo a todo momento ser destruídas judicialmente;

 

b) uma resposta afirmativa à questão anteriormente colocada poderia limitar o alcance da noção de “trânsito em julgado” das decisões judiciais inconstitucionais;

 

c) por último, admitida a eventual possibilidade de um recurso extraordinário atípico para todas as decisões judiciais inconstitucionais, a questão que imediatamente se suscitaria seria a do tribunal competente.[24]

 

Portanto, verifica-se que a apresentação do problema sobre o caso julgado inconstitucional centra-se em a) determinar as consequências do caso julgado inconstitucional junto dos próprios tribunais, tentando indagar se tais decisões judiciais são imodificáveis e se os tribunais se encontram autovinculados às referidas decisões; b) apurar as consequências do caso julgado inconstitucional junto do legislador, da Administração Pública e das entidades privadas, procurando saber até onde vai a obrigatoriedade e a prevalência das decisões judiciais inconstitucionais.[25]

 

Para responder à primeira indagação disposta na letra “a” acima indicada, Paulo Otero analisa a questão sobre quatro perspectivas, quais sejam de inconstitucionalidade: a) inconstitucionalidade dos acórdãos com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional; b) inconstitucionalidade das decisões normativas dos restantes tribunais; c) inconstitucionalidade das decisões individuais do Tribunal Constitucional; e por último d) inconstitucionalidade das decisões individuais dos restantes tribunais.

 

Com relação à decisão de inconstitucionalidade dos acórdãos com força obrigatória geral, entende Paulo Otero que o Tribunal Constitucional não pode promover, por iniciativa própria ou de terceiro, a revisão do julgado. O fundamento para essa negativa é baseado em argumentos de natureza jurídico-formal e de natureza jurídico-material.

 

Como fundamento jurídico-formal, temos que

 

não existe qualquer norma legal ou constitucional, expressa ou implícita que atribua ao Tribunal Constitucional competência para apreciar diretamente a constitucionalidade das suas decisões com força obrigatória geral; nem existe, sublinhe-se, uma norma que atribua a alguém legitimidade processual activa para desencadear um tal processo junto ao Tribunal Constitucional.[26]

 

Com relação a fundamento jurídico-material, o Tribunal Constitucional, quando da declaração de inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória geral, determina que a mesma desapareça do ordenamento jurídico, possui apenas uma competência negativo-resolutiva, não podendo, portanto, fazer “renascer” ou reeditar, por iniciativa própria ou de terceiro, uma norma por si anteriormente objeto de cessação de vigência.[27]

 

Com relação à vinculatividade das decisões judiciais inconstitucionais com força obrigatória geral nos demais tribunais inferiores, Paulo Otero sustenta não ser possível recusar a aplicação de um acórdão inconstitucional.

 

O Tribunal Constitucional é o órgão supremo em matéria de determinação da inconstitucionalidade das normas, não sendo admissível que qualquer restante tribunal possa sobrepor o seu juízo de conformidade constitucional ao restante de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional.[28]

 

O que importa ressaltar é que essa decisão não revoga, nem derroga, modifica ou suspende parcialmente a Constituição:

 

O acórdão inconstitucional do Tribunal Constitucional limita-se a vincular os restantes tribunais a recusar a aplicação da norma objecto de declaração de inconstitucionalidade. Não há, em princípio, qualquer fenômeno derrogatório da Constituição.[29]

 

Nas inconstitucionalidades das decisões normativas dos restantes dos tribunais, “são passíveis de fiscalização sucessiva abstracta junto do Tribunal Constitucional (CRP, art. 281º., n. 1, alínea a)[30].”

 

Nas inconstitucionalidades das decisões individuais do Tribunal Constitucional, em sede difusa, concreta e incidental, o Tribunal Constitucional não se encontra impedido de modificar a orientação seguida na resolução de casos semelhantes.[31]

 

Merece destaque o fato de que, mesmo com a possibilidade de o Tribunal Constitucional poder modificar as decisões inconstitucionais em casos semelhantes, algo permanece contrário à Constituição no caso concreto e essa inconstitucionalidade pode ou não vincular os tribunais inferiores.

 

Nesse sentido, Paulo Otero entende que:

 

se a interpretação conforme Constituição defendida pelo Tribunal Constitucional conduz a aplicação de uma norma inconstitucional, consideramos que o Tribunal a quo deve obediência à decisão, salvo se, tal como sucede em relação à decisão (inconstitucional) de não provimento,[32] a norma que é objecto de uma indevida interpretação “conforme” está expressamente ferida de inexistência jurídica ou ineficácia ou, por último, se mostra violadora dos preceitos constitucionais sobre direitos, liberdades e garantias fundamentais (C.R.P., artigo 18º., n. 1). Por outro lado, se a decisão do Tribunal Constitucional confirma a decisão recorrida em termos de não considerar a norma inconstitucional, apenas divergindo quanto ao sentido interpretativo de conformidade com a Constituição, também aqui entendemos que o art. 206º. da Constituição habilita o tribunal a quo a negar aplicação à interpretação inconstitucional do Tribunal Constitucional. [33]

 

Com relação à inconstitucionalidade das decisões individuais dos restantes tribunais, Paulo Otero chega à conclusão de que no Direito português todas as normas constitucionais são, a qualquer tempo, passíveis de fiscalização da sua validade. As normas inconstitucionais nunca se consolidam na ordem jurídica, podendo a todo momento ser destruídas judicialmente.[34]

 

O princípio da imodificabilidade do caso julgado foi pensado para as decisões judiciais conformes com o Direito ou, quando muito, decisões meramente injustas ou ilegais em relação à legalidade ordinária. A imodificabilidade do caso julgado apenas pode ocorrer em pé de igualdade com o princípio da constitucionalidade dos actos jurídicos-públicos quando essa imodificabilidade ou insindicabilidade seja consagrada constitucionalmente, tal como sucede, por exemplo, com as situações constantes do artigo 282º., n. 3, da Constituição[35].”

Portanto, a inconstitucionalidade da decisão judicial pode gerar o direito de indenização, desde que, obviamente, constitua fonte de prejuízos ou viole os direitos, liberdades e garantias das pessoas.[36]

 

No último parágrafo do Ensaio, Paulo Otero pretende analisar a obrigatoriedade e prevalência das decisões judiciais inconstitucionais dos tribunais (Tribunal Constitucional e restantes tribunais) sobre as entidades públicas e privadas.

 

É colocado o seguinte problema:

 

será que as decisões judiciais inconstitucionais vinculam o legislador ou a aplicabilidade do art. 208º, n. 2,[37] tem como pressuposto a conformidade constitucional das decisões judiciais e, consequentemente, só estas são susceptíveis de produzir efeitos vinculativos?[38]

Assim, chega-se à conclusão de que a Constituição portuguesa não pode acolher a admissibilidade de decisões judiciais direta e imediatamente inconstitucionais e, muito menos, impor a sua obrigatoriedade e prevalência. Mas, a inaplicabilidade da obrigatoriedade do cumprimento das decisões judiciais inconstitucionais não significa, por outro lado, que tais decisões perderam de fato obrigatoriedade ou deixaram automaticamente de prevalecer sobre as decisões das restantes entidades, porque as restantes entidades podem carecer de uma norma habilitadora para proceder à sindicabilidade constitucional das decisões judiciais, daí resultando, até prova em contrário, que essas decisões são obrigatórias e gozam de prevalência sobre as decisões das restantes entidades.[39]

 

Em nome do princípio da separação de poderes e da independência dos tribunais, é vedado ao Poder Legislativo substituir o poder judiciário, exercendo uma competência dispositiva que modifique o conteúdo de quaisquer decisões judiciais, seja qual for o fundamento alegado. Além disso, o Poder Legislativo não pode revogar ou suspender uma decisão judicial, mesmo que esta última seja desconforme com a Constituição.

 

Contudo, pode o Poder Legislativo modificar ou interpretar a lei objeto de uma decisão judicial obrigatória geral, mas deve excluir a eficácia retroativa em termos de destruir diretamente os casos julgados já existentes.

 

Além disso, na eventualidade do Tribunal Constitucional declarar a inconstitucionalidade de uma norma que é conforme à Constituição, “está reservado ao Poder Legislativo a faculdade de repetir o acto, ainda que , por sua vez, esse possa ser objecto de nova decisão judicial de declaração da inconstitucionalidade”.[40]

 

Passando sua atenção para a administração pública, Paulo Otero busca analisar se o caso julgado inconstitucional proferido pelo tribunal vincula a administração pública no dever de proceder à execução. Segundo o autor

uma decisão judicial de um tribunal administrativo violadora dos preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdades e garantias, [...] entendemos que os órgãos da Adminitração não têm o dever de execução de tal sentença.[41]

 

Tal conclusão acima descrita foi resultado da análise da Constituição portuguesa, e especialmente pelo art. 18º., n.1, que confere às entidades públicas uma competência desaplicadora de todos os atos infraconstitucionais que ostensivamente violem a essência de um direito, liberdade ou garantia fundamental.

 

Outro problema levantado é justamente com relação aos efeitos gerados pelo caso julgado inconstitucional no âmbito da Administração Pública, pois esta tem o dever de praticar os atos em conformidade com a lei, sob pena de nulidade do ato administrativo. Mais uma vez, Paulo Otero entende ser aplicável a norma do art. 18º., n. 1, da Constituição portuguesa, que acima já nos referimos.

 

Ressalte-se que se a Administração Pública desrespeitar o conteúdo decisório do caso julgado inconstitucional este ato administrativo não será nulo. Assim,

 

a inconstitucionalidade do caso julgado afasta a nulidade do acto administrativo que lhe seja desconforme. Admitir solução contrária, significaria que um acto administrativo conforme com a Constituição estaria ferido de nulidade pelo simples facto de violar um acto jurídico inconstitucional.[42]

 

Por último, é objeto de análise a questão do caso julgado inconstitucional e a vinculação das entidades privadas. Assim, é apresentada a seguinte indagação:

 

será que as entidades privadas gozam de uma competência constitucional que lhes habilite a desaplicação de actos jurídicos-públicos infraconstitucionais violadores de preceitos constitucionais respeitantes a direitos, liberdades e garantias?[43]

 

O mesmo entendimento apresentado para as entidades públicas é descrito para as entidades privadas, inclusive a fundamentação constitucional é idêntica, qual seja, o artigo 18º., n. 1, da Constituição portuguesa. Ainda, reforçada pelo artigo 21, que consagra o direito de resistência contra qualquer ordem que ofenda direitos, liberdades e garantias, independentemente da entidade emitente da ordem.

Nos restantes das decisões judiciais inconstitucionais que não ofendam diretamente os direitos, liberdades e garantias fundamentais, as entidades privadas estão vinculadas e obrigadas ao cumprimento dessas. Contudo, se a entidade privada desrespeitar o cumprimento de uma decisão judicial inconstitucional, seus representantes não poderão incorrer nos crimes de desobediência, ou seja, a inexecução de uma sentença inconstitucional constitui, em matéria criminal, exclusão da ilicitude.

 

Em apertada síntese, foram apresentadas as ideias principais da obra do Professor Paulo Otero.




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