A concepção da união estável como ato-fato jurídico e suas repercussões processuais


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
LÔBO, Paulo

1. SITUANDO O ÂMBITO DO PROBLEMA

 

            A partir da Constituição de 1988, a união estável migrou da categoria de fato ilícito para a de fato jurídico lícito. O problema é: de que espécie? A resposta a essa instigante questão teórica provoca soluções distintas, nos planos do direito material e do direito processual que o instrumenta.

            Vejamos como essa entidade familiar foi recepcionada pelo direito positivo brasileiro, nos dois principais diplomas legais que dela tratam:

I - O § 3º do art. 226 da Constituição estabelece que “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”. Temos aí o reconhecimento  jurídico de determinado fato social e afetivo, ou socioafetivo, convertido em entidade familiar, merecedora de proteção do Estado, antes apenas admitido para o casamento, ou família matrimonial. A Constituição, portanto, apanha uma situação fática, existente no mundo dos fatos, que passa a receber sua tutela normativa ou sua incidência. Os elementos da hipótese normativa do referido parágrafo terceiro são apenas: a) a união entre o homem e a mulher; b) a estabilidade dessa união (que pressupõe alguma duração); e c) natureza familiar. Como se vê, não há qualquer exigência de elemento volitivo, ou de declaração de vontade.

II – O art. 1.723 do Código Civil, por seu turno, determina que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. O que se acrescentou aos elementos do suporte fático da norma constitucional foi a referência à convivência que deve ser pública, contínua e duradoura. No rigor dos termos, a exigência de convivência não é elemento adicional, pois tem o nítido propósito de regulamentar o elemento estabilidade, esclarecendo que deve ser pública. Do mesmo modo, a natureza familiar é explicitada na enunciação do objetivo de constituição de família (que deve ser entendida não apenas como seu momento inicial, mas também como seu desenvolvimento contínuo). Assim, adaptando os elementos do suporte fático (hipótese normativa), para incidência do art. 1.723 do Código Civil, sem colisão com os da norma constitucional, temos: a) união entre homem e mulher; b) convivência pública, contínua e duradoura; c) natureza familiar.

Impõe-se explicação relativamente ao elemento essencial homem e mulher, previstos nas duas normas. Respeitável orientação doutrinária e jurisprudencial tem sustentado que não deve ser considerado quando se deparar com a existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo (dita união homoafetiva, segundo denominação que tem obtido larga aceitação no Brasil). Entendemos que não há necessidade dessa desconsideração, pois a união homoafetiva é tutelada por regime jurídico próprio, como entidade familiar autônoma. A ausência de lei que regulamente essas uniões não é impedimento para sua existência, porque as normas do art. 226 da Constituição são auto-aplicáveis, independentemente de regulamentação. Não há necessidade de equipará-las à união estável, que é entidade familiar completamente distinta. As uniões homossexuais ou homafetivas são constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza própria. Como a legislação ainda não disciplinou seus efeitos jurídicos, como fez com a união estável, as regras desta podem ser aplicáveis àquelas, por analogia (art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil), em virtude de ser a entidade familiar com maior aproximação de estrutura, nomeadamente quanto às relações pessoais, de lealdade, respeito e assistência, alimentos, filhos, adoção, regime de bens e impedimentos. O efeito prático é o mesmo, mas preservando-se suas autonomias e singularidades.

Por outro ângulo, não apenas a união homoafetiva, mas também a família monoparental e as demais entidades familiares implicitamente constitucionalizadas[1], principalmente as parentais, tais como as existentes entre irmãos, entre tios e sobrinhos, avós e netos, padrastos ou madrastas e seus enteados, são situações fáticas que se constituem no mundo da vida, sem declaração expressa de vontade, reconhecidas pelo direito como entidades familiares. A estas também são aplicáveis a concepção de ato-fato jurídico, que discorreremos a seguir.

Comparemos a união estável, haurida de situação de fato – e bem assim as demais entidades familiares acima referidas -, com a família matrimonializada. Esta decorre de um ato jurídico complexo, o casamento, cujo suporte fático pode ser assim decomposto: atos de habilitação, solenidade de celebração, declaração de vontade dos nubentes, declaração do celebrante, registro público. Destes, o elemento nuclear é a declaração de vontade dos nubentes; sem elas, casamento não há. O termo do registro é a prova do casamento, mercê da formalidade do ato.

Portanto, no direito de família brasileiro atual, há uma entidade oriunda de um ato jurídico formal e as demais, entre elas a união estável, constituídas a partir de situações de fato, a que o direito confere reconhecimento. De todas elas a união estável é a que apresenta a maior dificuldade de comprovação de sua existência jurídica, o que a leva a depender de decisão judicial, sempre que dúvida houver quanto ao seu termo inicial e, quando for o caso, à sua dissolução.

Assim delimitado o âmbito da questão, cumpre-nos buscar o enquadramento da união estável na corrente classificação doutrinária dos fatos jurídicos, nomeadamente na espécie ato-fato jurídico.

 

2. ATO-FATO JURÍDICO COMO ESPÉCIE DO FATO JURÍDICO

 

Os fatos jurídicos são classificados em três espécies: a) fatos jurídicos em sentido estrito ou involuntários; b) atos-fatos jurídicos; c) atos jurídicos em sentido amplo ou voluntários (atos jurídicos em sentido estrito e negócios jurídicos). Considerando-se o papel da manifestação ou declaração da vontade, teremos: nos fatos jurídicos em sentido estrito, não existe vontade ou é desconsiderada; no ato-fato jurídico, a vontade está em sua gênese, mas o direito a desconsidera e apenas atribui juridicidade ao fato resultante; no ato jurídico, a vontade é seu elemento nuclear. Essa classificação teve o refinamento doutrinário de Pontes de Miranda[2]e Marcos Bernardes de Mello[3], a partir do elemento nuclear do suporte fático, contribuindo para difundi-la no Brasil, máxime no âmbito da teoria geral do direito.

Das espécies, o ato-fato jurídico é a menos conhecida – ou menos precisa -, por se encontrar a meio caminho entre o fato jurídico em sentido estrito e o ato jurídico em sentido amplo. A doutrina jurídica mais atilada soube identificá-lo nas hipóteses em que o direito se depara com ações ou comportamentos humanos, mas, para resolver as questões práticas da vida em relação, tem de abstraí-los, valorando o resultado fático, independentemente do querer dos sujeitos. No início, pareceu suficiente estremar o negócio jurídico do ato jurídico em sentido estrito, enquadrando-se naquele as declarações de vontade cujos conteúdos eficaciais dispostos pelos sujeitos seriam reconhecidos pelo direito, como expressão da autonomia privada. Por exclusão, seriam atos jurídicos em sentido estrito, ou não-negociais, todas as declarações de vontades cujos efeitos fossem atribuídos pela lei e não pelos próprios sujeitos. Ou seja, nesses atos jurídicos o sujeito tem liberdade para declará-los, mas não para determinar seus efeitos. No direito de família, citemos dois exemplos esclarecedores: a) é negócio jurídico o pacto antenupcial (art. 1.653 do Código Civil), mediante o qual os nubentes podem escolher e compor livremente seu regime de bens (conteúdo eficacial); b) é ato jurídico em sentido estrito o reconhecimento voluntário de filho, havido fora do casamento, pois não pode ser submetido a nenhuma condição (art. 1.613 do Código Civil); a pessoa reconhece voluntariamente o filho (declara) ou não, mas os efeitos são dados pela lei.  O que importa destacar é que, em ambas as espécies, a vontade declarada foi a causa das conseqüências jurídicas, sendo que ao negócio jurídico reconheceu-se maior autonomia (poder negocial) e ao ato jurídico em sentido estrito, menor (sem poder negocial).

Mas, como qualificar certas situações fáticas, reconhecidas pelo direito, provocadas por ações e comportamentos humanos, quando estes são irrelevantes para a eficácia jurídica? Pensemos no exemplo, fora do direito de família, da tomada da posse de uma coisa, que não depende de qualquer declaração de vontade, e da qual derivam as proteções possessórias; posse há, ainda que haja má-fé, ou se o possuidor for incapaz; ou no exemplo da criação artística, da qual deriva o direito de autor. Não se leva em conta a intenção de praticar o ato (tomar posse ou produzir uma obra), mas o fato resultante (a posse; a obra). Como diz Pontes de Miranda, “o ato é recebido pelo direito como fato do homem (relação ‘fato, homem’) [...] pondo-se entre parênteses o quid psíquico, o ato, fato (dependente da vontade) do homem, entra no mundo jurídico como ato-fato jurídico”[4].

A doutrina alemã, há mais de uma centúria, construiu os fundamentos da categoria ato-fato jurídico, sob a denominação inicial de ato real. Segundo Ludwig Enneccerus, o ato real exige unicamente que se leve a efeito um resultado de fato “não pertencente à esfera do direito, mas que produz, todavia, segundo as disposições do ordenamento jurídico, um efeito jurídico”[5].

Os atos-fatos jurídicos, por sua natureza singular, não estão sujeitos aos princípios da validade, isto é, não podem ser nulos ou anuláveis. Tampouco a eles se aplicam as hipóteses de vícios de vontade (erro, coação, dolo, lesão, simulação). Esse ponto é de grande relevância, pois se a união estável pudesse ser originada em ato jurídico, como o casamento, estaria passível de anulação, por exemplo, por coação ou erro essencial sobre a pessoa do companheiro.   

 

3. ACONFUSA FACULDADE DE CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL EM CASAMENTO

 

A Constituição prevê que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. Dessa regra facultativa, opiniões francamente antagonistas da elevação constitucional da união estável ao status de entidade familiar retiram frequentemente a conclusão de que ela seria etapa para o casamento, ou então que haveria primazia deste sobre aquela. Para os fins deste estudo, interessam as conseqüências que tal orientação restritiva adviriam à natureza da união estável. Se assim fosse, então não se conceberia como entidade autônoma, protegida igualitariamente pela Constituição. 

O enunciado da Constituição, que tem servido a argumentos discriminatórios contra a união estável, é “devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. O que se tem aí não é requisito nem condição resolutiva. O isolamento de expressões contidas em determinada norma, para extrair o significado, não é a operação hermenêutica mais indicada. Impõe-se a harmonização da regra com o conjunto de princípios e regras em que ela se insere.

Com efeito, a norma do § 3º do artigo 226 da Constituição não contém determinação de qualquer espécie. Não impõe requisito para que se considere existente união estável ou que subordine sua eficácia à conversão em casamento. Configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para que remova os obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a exemplo da dispensa da solenidade de celebração. Em face dos companheiros, apresenta-se como norma de indução. Contudo, para os que desejarem permanecer em união estável, a tutela constitucional é completa, segundo o princípio de igualdade que se conferiu a todas as entidades familiares. Não pode o legislador infraconstitucional estabelecer dificuldades ou requisitos onerosos para ser concebida a união estável, pois facilitar uma situação não significa dificultar outra. A regra também pode ser lida a contrario, prevendo a faculdade de os cônjuges que se divorciarem converterem sua relação em união estável.   

Há convergências no Código Civil de tratamento legal para situações assemelhadas com a família matrimonializada, notadamente quanto aos impedimentos para constituição da união estável, aos direitos e deveres comuns, ao regime legal de bens, aos alimentos, ao poder familiar, às relações de parentesco e à filiação. São assim por imposição da natureza das coisas, mas isso não significa que uma entidade se subordine ou deva seguir o modelo legal da outra. São inteiramente distintas, principalmente em virtude dos fatos que lhes dão origem. Sem ato não há casamento; sem ato há união estável.

 

4. QUANDO SE INICIA A UNIÃO ESTÁVEL ?

 

Ao contrário do casamento que tem início em atos certos e públicos, a saber, a declaração de vontade dos nubentes e a celebração, a união estável, situação jurídica fática, apresenta reais dificuldades em comprová-la. O termo inicial é importante tendo em vista que os deveres dos companheiros promanados de suas relações pessoais e patrimoniais dependem dele para sua exigibilidade. Desde quando há os deveres de lealdade e assistência? Desde quando os bens adquiridos por qualquer dos companheiros ingressaram na comunhão?

A Lei 8.971/1994 exigia o prazo mínimo de cinco anos para que se caracterizasse a estabilidade e, consequentemente, tivesse início a relação jurídica de união estável. Mas ela também não resolvia o problema do início desse prazo antecedente, determinante do posterior início da união estável.

Na sistemática atual, a estabilidade prévia não é pressuposto, cujo término determinaria o início da relação jurídica. Seu início, ainda que naturalmente aferido a posteriori, é concomitante ao termo inicial da união estável. Mas como identificá-lo, especialmente quando foi antecedido de relação de namoro?

O início da união estável é o início da convivência dos companheiros. A dificuldade é reduzida quando se pode provar o começo da convivência sob o mesmo teto. São inúmeras as possibilidades de prova: a aquisição de imóvel para a moradia, a aquisição de móveis para guarnecerem a moradia, o contrato de aluguel do imóvel, o testemunho de vizinhos, de amigos, de colegas de trabalho, o pagamento de contas do casal, a correspondência recebida no endereço comum[6]. O nascimento de filho pode ser posterior à convivência como pode ser a causa da convivência.

Quando não houver convivência sob o mesmo teto, será importante identificar o tempo em que os companheiros passaram a se apresentar como se casados fossem perante suas relações sociais. São muito utilizadas as provas documentais do início da convivência, como correspondências, fotos e documentos de viagens, a assunção por um dos companheiros das despesas do outro.

A lei não exige que, para o início da união estável, o companheiro casado tenha antes obtido o divórcio, única hipótese de dissolução voluntária do casamento. Mas é necessário ao menos que esteja separado de fato de seu cônjuge, ou separado judicialmente. Assim, na hipótese de o relacionamento com o outro companheiro ter começado quando ainda havia convivência com o cônjuge, somente após a separação de fato se dá o início da união estável, pois antes configurava concubinato. O Código Civil não exige tempo determinado para se caracterizar a separação de fato da pessoa casada, para fins de constituição de união estável, mas há o art. 1.830 que estabelece o prazo de dois anos da separação de fato dentro do qual ao cônjuge sobrevivente é reconhecido direito sucessório. Decorrido o prazo de dois anos, “a lei presume que a relação, por rompida, não autoriza mais a participação sucessória do sobrevivente no acervo pertencente ao de cujus”[7]. Contudo, essa norma específica não pode ser estendida, em sentido contrário, para alcançar o conceito de separação de fato para o fim de constituição de união estável, nas relações de família, considerando-se tal o dia em que efetivamente o companheiro casado se separou de seu cônjuge, produzindo-se todos seus efeitos, inclusive a comunhão dos bens adquiridos por qualquer dos companheiros a partir dessa data[8]. O direito sucessório do cônjuge diz respeito aos bens comuns adquiridos até à data da separação de fato, cuja pretensão dependerá de o outro cônjuge, que dele se separou, falecer dentro do prazo de dois anos. Observe-se que o prazo será indeterminado se o cônjuge sobrevivente não tiver culpa da impossibilidade da convivência, o que faz ressaltar a impropriedade de sua aplicação para outro fim.

 

5. ACONVIVÊNCIA COMO FATO ORIGINÁRIO DA UNIÃO ESTÁVEL E SUA PROVA

 

O Código Civil estabelece que a união estável é “configurada na convivência, pública, contínua e duradoura”. A convivência, a publicidade, a continuidade e duração são situações exclusivamente de fato, que apenas em juízo podem ser comprovadas. Independem inteiramente de declaração de vontade dos companheiros, pois - como diria Pontes de Miranda-, o quid psíquico fica em parênteses, para fins de sua configuração como entidade familiar. Se houver divergência entre a vontade dos figurantes e o fato real da convivência com natureza familiar, este prevalece sobre aquela.

Com tais características, a união estável, no direito brasileiro, não é fato jurídico em sentido estrito, ou ato jurídico em sentido estrito, ou negócio jurídico. É fato juridicamente não volitivo, ainda que de origem faticamente volitiva (ações e comportamentos). Neste sentido é ato-fato jurídico.

Por ser ato-fato jurídico, a união estável não necessita de qualquer manifestação ou declaração de vontade para que produza seus jurídicos efeitos. Basta sua configuração fática, para que haja incidência das normas constitucionais e legais cogentes e supletivas e a relação fática converta-se em relação jurídica. Pode até ocorrer que a vontade manifestada ou íntima de ambas as pessoas - ou de uma delas - seja a de jamais constituírem união estável; de terem apenas um relacionamento afetivo sem repercussão jurídica e, ainda assim, decidir o Judiciário que a união estável existe. Difere, portanto, o modelo brasileiro do modelo francês do “pacto civil de solidariedade – PACS” (art. 515-1 a 7 do Código Civil da França), que depende de contrato celebrado entre os parceiros.

A convivência sob o mesmo teto não é requisito da união estável. Persiste o conteúdo da Súmula 382 do STF, que atingia o que atualmente se denomina união estável. Nem a Constituição nem o Código Civil fazem tal exigência, acertadamente, pois da realidade social brotam relações afetivas estáveis de pessoas que optaram por viver em residências separadas, especialmente quando saídas de relacionamentos conjugais, ou que foram obrigadas a viver assim em virtude de suas obrigações profissionais. A estabilidade da convivência não é afetada por essa circunstância, quando os companheiros se comportarem, nos espaços públicos e sociais, como se casados fossem.

A estabilidade ou duração da convivência foi sempre um problema tormentoso, para comprovação da união estável, desde sua inserção constitucional em 1988. Como vimos, a Lei 8.971/1994 estabeleceu o requisito mínimo de cinco anos, cristalizando tendência que se observava no direito brasileiro, salvo se houvesse prole. Contudo, a Lei 9.278/1996 excluiu a referência a qualquer período de tempo, preferindo o enunciado genérico de convivência duradoura, pública e contínua, que foi reproduzido no Código Civil de 2002. No casamento, a estabilidade é presumida porque seus efeitos são projetados para o futuro. Na união estável a estabilidade decorre da conduta fática e das relações pessoais dos companheiros, sendo presumida quando conviverem sob o mesmo teto ou tiverem filho. Evidentemente, essas presunções admitem prova em contrário, pois o filho pode resultar de relacionamento casual, sem qualquer convivência dos pais. A noção de convivência duradoura é imprescindível, tendo em vista que a união estável é uma relação jurídica derivada de uma situação de fato, que nela tem sua principal referência.

As causas de invalidade do casamento (nulidade e anulabilidade) não podem ser aplicáveis à união estável, porque esta, diferentemente daquele, não é ato jurídico. No plano da validade apenas estão submetidos os atos jurídicos, mas não os fatos jurídicos em sentido estrito ou os atos-fatos jurídicos, nestes últimos enquadrando-se a união estável. Portanto, a união estável existe juridicamente ou não existe, produz efeitos ou não os produz; mas não é válida ou inválida. Para o casamento, a incidência de impedimentos levam à nulidade (art. 1.548); para a união estável, à inexistência (art. 1.723, § 1º, que alude a “não se constituirá”). Nesta hipótese, pede-se judicialmente a declaração da inexistência da relação jurídica de união estável. Consequentemente, as hipóteses de anulação do casamento (art. 1.550) não podem ser aplicáveis à união estável, pois dizem respeito à celebração do ato, inexistente na segunda. 

 

6. ESSENCIALIDADE DA NATUREZA FAMILIAR

 

Essa demarcação conceitual contribui para a inteligência da parte final da cabeça do art. 1.723 do Código Civil, que estabelece ser a união estável constituída “com o objetivo de constituição de família”. Constituição, para os fins da norma, deve ser entendida como início e desenvolvimento da entidade familiar. A formulação legal não consagra a necessidade do animus ou da intenção, que são expressões da vontade consciente.

Objetivo é alvo, finalidade, destinação que todas as entidades familiares - e não apenas a união estável - devem realizar. A constituição de família é o objetivo da entidade familiar, para diferençá-la de outros relacionamentos afetivos, como a amizade, a camaradagem entre colegas de trabalho, as relações religiosas. É apurado objetivamente e não a partir da intenção das pessoas que as integram. Portanto, não se confunde com os requisitos ou elementos de existência da entidade familiar.

Nesse sentido, o objetivo de constituição de família não apresenta características subjetivas, devendo ser aferido de modo objetivo, a partir dos elementos de configuração real e fática da relação afetiva (a exemplo da convivência duradoura sob o mesmo teto), para se determinar a existência ou não de união estável.

As expressões “com objetivo de constituição de família” têm o mesmo significado de natureza familiar. A configuração da natureza familiar da união estável não depende de qualquer ato de vontade, ou seja, da vontade de constituir família. Ainda que os companheiros ou conviventes declarem expressamente, em algum ato jurídico, que não desejam constituir família, a natureza desta será apurada objetivamente pelo juiz, ante as circunstâncias fáticas. Se de ato de vontade se cuidasse, não haveria necessidade de ser apurada a publicidade, a duração, a continuidade, que são situações fáticas objetivas. A união do homem e da mulher pode não ter natureza familiar, nas hipóteses comuns de amizade duradoura, contínua e pública ou de namoro longo, com tais requisitos. O problema é que essas situações, exclusivamente fáticas (o direito não as reconhece como fatos jurídicos), podem migrar para a união estável, ultrapassando a zona cinzenta que há entre esta e aquelas, sem consciência ou vontade dos figurantes.

 

7. DISTINÇÃO E CONVERSÃO DO NAMORO EM UNIÃO ESTÁVEL

 

São esses elementos de configuração real, aferidos objetivamente, que permitem distinguir a relação de namoro, que não é entidade familiar ou figura jurídica, da união estável, sem necessidade de se buscar arrimo na intenção ou na vontade. Nem sempre é fácil essa distinção, que radica em problemática zona cinzenta e até porque o namoro quase sempre evolui para o casamento, cuja constituição é indiscutível, ou para a união estável, cuja constituição depende da configuração fática da convivência com natureza familiar. Às vezes as pessoas nem se apercebem que se transformaram de namorados em companheiros de união estável, em razão da transformação de suas relações pessoais, que as levaram a adotar deveres próprios da entidade familiar, como lealdade, respeito, assistência material e moral, além do advento de prole.

Observe-se que a convivência sob o mesmo teto não é imprescindível para a configuração da união estável, além de que não se exige tempo mínimo de convivência, o que demonstra a flexibilidade de seus requisitos. Assim, quando os supostos namorados passaram a conviver sob o mesmo teto, com o compartilhamento conseqüente da moradia, já migraram da relação de namoro para a união estável, porque a estabilidade aí é presumida.

Mas há de ser ponderado o tênue equilíbrio entre o namoro e a união estável, pois aquele resulta inteiramente do ambiente de liberdade, que a Constituição protege, inclusive da não incidência de normas jurídicas, permanecendo no mundo dos fatos. Namorar não cria direitos e deveres. Tem razão João Baptista Villela, ao repelir o galanteio como assédio sexual, como ocorre nos Estados Unidos, e quando adverte: “Tristes tempos estes em que o mundo vai perdendo o sentido do lúdico, a descontração se torna suspeita, a responsabilidade civil mora em cada esquina e o convívio humano é antes uma usina de riscos do que uma fonte de prazer”[9].

Em virtude da dificuldade para identificação do trânsito da relação exclusivamente fática (namoro) para a relação jurídica (união estável), alguns profissionais da advocacia, instigados por seus constituintes, que desejam prevenir-se de conseqüências jurídicas, adotaram o que se tem denominado “contrato de namoro”. Se a intenção de constituir união estável fosse requisito para sua existência, então semelhante contrato produziria os efeitos desejados. Todavia, considerando que a relação jurídica de união estável é ato-fato jurídico, cujos efeitos independem da vontade das pessoas envolvidas, esse contrato é de eficácia nenhuma, jamais alcançando seu intento. Ou quando muito, pode ser recebido como elemento de prova negativa da união estável, mas que é suscetível de ser contraditada pela comprovação fática da convivência pública, contínua e duradoura, com natureza familiar.

Compreende-se a apreensão que acomete muitos que não desejam ter problemas de ordem patrimonial, com o que supõem ser ainda mero namoro. Entendemos que o contrato que pode prevenir futuros problemas é o contrato de regime patrimonial – por exemplo, estabelecendo algum modelo de separação de bens adquiridos durante o relacionamento -, previsto no art. 1.725 do Código Civil, se o namoro se converter no futuro em união estável. Teria a função analógica do pacto antenupcial, que pode ser celebrado antes do casamento.

O direito pode desconsiderar o querer contrário aos fatos, como ocorre com o ato-fato jurídico. Apesar do contrato, um parceiro (suposto namorado) pode voltar-se contra o outro, alegando que de fato constituíram união estável, não se podendo aplicar o princípio derivado da boa-fé de proibição de venire contra factum proprium. Em virtude do princípio constitucional de proteção da família, o fato do qual ela promana tem primazia sobre a vontade dos contratantes.

 

8. UNIÕES ESTÁVEIS PARALELAS E PUTATIVAS

           

Desde a Constituição de 1988 abriu-se controvérsia acerca da possibilidade jurídica de uniões estáveis paralelas, tendo em vista a inexistência de regra expressa a respeito na legislação, inclusive no Código Civil de 2002. Entendemos não ser possível, porque a união estável é relação jurídica, ainda que derivada de situação fática de convivência, a que a lei (art. 1.724 do Código Civil) impôs o dever de lealdade entre os companheiros.

Considerando a comprovação do início de cada qual, o segundo relacionamento não constitui união estável, mas entidade monoparental em face do segundo parceiro e dos seus filhos, caso os haja. Se não houver filhos comuns, o segundo parceiro terá pretensão contra o primeiro no campo das relações patrimoniais, segundo o modelo do direito das obrigações, quanto à partilha dos bens adquiridos com esforço comum ou à indenização dos serviços prestados. Os filhos comuns terão tanto pretensão de natureza patrimonial quanto pessoal, pois seus direitos igualitários independem da existência de entidade familiar. Neste sentido decidiu o STJ (REsp 789.293-RJ, 2006) que “mantendo o autor da herança união estável com uma mulher, o posterior relacionamento com outra, sem que se haja desvinculado da primeira, com quem continuou a viver como se fossem marido e mulher, não há como configurar união estável concomitante, incabível a equiparação ao casamento putativo”.

No caso anteriormente referido, o tribunal de origem admitiu a união estável putativa, “em que a companheira posterior desconheça a existência da união anterior”, para admitir ambas. Tem razão o tribunal de origem em admitir a união estável putativa, mas a putatividade diz respeito não à entidade e sim ao parceiro que estiver em boa-fé (desconheça a existência de união estável do outro), tanto para fins pessoais quanto para fins patrimoniais; ou seja, os efeitos civis só a ele e a seus filhos aproveitam. Se o parceiro sabia da existência de outra união estável, então os efeitos civis só aos filhos aproveitam. A ocorrência comprovada da putatividade leva inevitavelmente à declaração judicial de inexistência da segunda união estável, diferentemente da incidência da nulidade do casamento putativo (art. 1.561 do Código Civil). A ação a ser manejada, em caso de união estável putativa, é a de inexistência dela.

A correta utilização dos planos do mundo do direito – da existência, da validade e da eficácia – (outra fantástica contribuição teórica de Pontes de Miranda), é imprescindível para a correta prestação jurisdicional. O casamento, por ser ato jurídico, percorre os três planos, mas a união estável, por ser ato-fato jurídico, percorre apenas os planos da existência e da eficácia.   

 

9. FINALIDADE DO CONTRATO DE REGIME PATRIMONIAL

 

O art. 1.725 do Código Civil admite que os companheiros possam celebrar contrato escrito para regular “as relações patrimoniais”. A regra concretiza o princípio da liberdade em matéria patrimonial. Os companheiros podem adotar algum dos regimes aplicáveis facultativamente ao casamento – neste caso, mediante pacto antenupcial -, ou estipular o que melhor convierem, misturando regimes ou criando regulamento singular. A ausência desse contrato fará com que os bens adquiridos por qualquer dos companheiros na constância da união estável entrem na comunhão, segundo o regime de comunhão parcial do casamento, com ou sem participação de ambos na aquisição.

Esse contrato, todavia, não pode conter qualquer estipulação que envolva as relações pessoais entre os companheiros e entre estes e seus filhos. As relações pessoais entre os companheiros têm disciplina cogente, que emerge do art. 1.724 do Código Civil, relativamente aos deveres de lealdade, respeito, assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos. Além desta norma, também são aplicáveis as normas cogentes sobre alimentos e relações de parentesco, por exemplo. Qualquer estipulação nesse contrato sobre direitos pessoais será considerada nula, por infringir expressa disposição legal.

O contrato pode ser celebrado antes (com efeito equivalente ao do pacto antenupcial) e durante a união estável. Na segunda hipótese, emerge a questão de seu eventual efeito retroativo. Entendemos que, iniciada a união estável, sem contrato de regime patrimonial, incide, imediatamente, o regime de comunhão parcial, passando os bens à comunhão de ambos os companheiros. Celebrado posteriormente o contrato, este apenas produz efeitos em relação aos bens adquiridos a partir dele, considerando-se nula a cláusula retroativa. Supondo-se que os companheiros escolham posteriormente o regime de separação total, os bens adquiridos anteriormente ao contrato, e após o início da união, permanecem sob regime de condomínio de ambos os companheiros. A não retroatividade consulta o interesse público, a proteção dos interesses de terceiros e o princípio da proteção da família.

 

10. AÇÕES DE RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL

 

A verificação da relação jurídica de união estável, em virtude da inexigibilidade legal de qualquer ato das partes ou do Poder Público, se dá pelos meios comuns de prova de qualquer fato. Assim, tendo em vista tratar-se de relação jurídica proveniente de ato-fato jurídico, quando houver necessidade de prová-la em virtude de negativa de qualquer dos companheiros, ter-se-á de ajuizar ação declaratória (principal ou incidental), cuja finalidade é exatamente a de declarar a existência ou inexistência de relação jurídica (art. 4º do CPC). A declaração da existência da união estável também pode se dar após a morte de um dos companheiros, com a conseqüente declaração da dissolução. Em qualquer hipótese, apenas por decisão judicial pode ser provada a união estável.

A ação é de reconhecimento da união estável. Pode ser promovida durante a existência da união estável, por um ou por ambos os companheiros, com intuito de tornar indiscutível a entidade familiar, em relação aos companheiros e aos filhos. Quanto a estes, há presunção de maternidade e paternidade dos companheiros, para fins de registro de nascimento.

Para qualquer fim a que se preste o reconhecimento da união estável, inclusive previdenciários federais, competente é a justiça comum, por se tratar de relação de família. Não pode o respectivo instituto de previdência negar efeitos à decisão da justiça comum, nem pode a justiça federal substituir-se àquela, nessa matéria, alegando tratar-se de mera ação declaratória. A matéria familiar atrai a competência insubstituivelmente para a justiça comum.

Na ação de reconhecimento, deve o juiz fixar o termo inicial da união estável, que restar comprovado na ação, que, como acima lembramos, é a vexata quaestio para se saber quando os efeitos pessoais e patrimoniais decorrentes dessa entidade familiar começaram a ser produzidos.

 




[1]LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus, Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, Ed, Síntese, n. 12: 40/55, jan./mar., 2002

[2]Tratado de direito privado. 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, v. 2, p. 183 e seguintes.

[3]Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 130-137.

[4]Tratado de direito privado, v. 2, p. 373.

[5]Tratado de derecho civil, trad. de Blás Perez González e al., Barcelona: Bosch, 1981, Tomo I, v.II,  p. 16.

[6]Ainda que se admita a prova exclusivamente testemunhal, esta deve ser coerente e precisa, capaz de servir de elemento de convicção para o juiz. Assim decidiu a Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, em caso de concessão de pensão por morte de suposto companheiro, que foi negada. Em audiência, ela declarou que trabalhava tomando conta dele, que já estava idoso (Proc 20038320007772-8/PE).

[7]HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil: parte especial do direito das sucessões. Antônio Junqueira Azevedo (coord.). São Paulo: Saraiva, 2002, v. 20, p. 221.

[8]Em sentido contrário, BAPTISTA, Sílvio Neves. União estável de pessoa casada. Questões controvertidas no direito de família e das sucessões. Mário Luiz Delgado e Jones Figueredo Alves (Coord.). São Paulo: Método, 2005, p. 311: “Quando após o decurso do prazo de dois anos de separação de fato a pessoa casada contrai união estável, iniciam-se, entre outros, os efeitos patrimoniais dessa nova relação sob o regime da comunhão parcial de bens”.

[9]Repensando o Direito de Família.Repensando o Direito de Família. Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 1999, P. 25.