Considerações sobre a titularidade dos softwares


Porvargasrafael- Postado em 20 novembro 2012

 

 

Titularidade de programa de computador desenvolvido na vigência de contrato de trabalho pode acabar pertencendo ao empregador

Texto: Cláudio França Loureiro e Camila Cardeira Pinhas Pio Soares

 

Desde o aumento da capacidade tecnológica nas décadas de 70 e 80, tornou-se necessária a implementação de uma lei que regulamentasse o desenvolvimento dos softwares, a comercialização, a tributação e, principalmente, a titularidade. Quando de um desenvolvimento para uma empresa, por exemplo, quem tem os direitos sobre o material: o contratado ou o contratante? Como definir as situações em que será transferida a titularidade de um para o outro? Embora o software seja entendido como uma obra intelectual e não industrial, e portanto possa ser julgado com a aplicabilidade do regime autoral, para resolver esse conflito tão atual são levantadas diferentes hipóteses.

 

Há especificidades em relação à titularidade de programas de computador. Ainda que tenha uso numa indústria, é fruto de um processo produtivo intelectual

 

I - A PROTEÇÃO JURÍDICA DO PROGRAMA DE COMPUTADOR

A proteção jurídica do programa de computador é aquela conferida pela Lei de Direitos Autorais e Conexos (Lei 6910/1998). Assim, nada obstante correntes doutrinárias contrárias, que defendiam a aproximação do direito da propriedade industrial, o legislador brasileiro optou por submeter os programas de computador à Lei de Direitos Autorais, em consonância com o disposto na maioria dos países, e à Convenção de Berna. Com efeito, a Lei 9.610/98 estabelece, em seu art. 7º, inciso XII, que são obras intelectuais protegidas pelo referido diploma legal as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como os programas de computador. Entretanto, evidentemente, há certas especificidades para a proteção de programas de computador. Tanto assim que parte da doutrina defende a instituição de um sistema sui generis de proteção para programas de computador, dadas as suas características peculiares. Nesse sentido, a doutrina esclarece:

"Mesmo considerando a evidente natureza utilitarista do software e o caráter de industriabilidade do setor, ou seja, a distribuição maciça realizada pela facilidade de reprodução do código, do ponto de vista jurídico, o Programa de Computador é assumido, não como fruto do processo produtivo industrial, mas sim como fruto do processo produtivo intelectual.

 

Dentre os argumentos que sustentam a aplicabilidade do regime autoral ao software, pode-se registrar que os Programas de Computador são obras intelectuais resultantes do esforço criativo do homem e se revestem do caráter de originalidade expressiva.

A tutela via Direito Autoral mostra-se mais favorável ao autor, sendo pouco dispendiosa e menos burocrática.

software é reconhecido mundialmente como uma obra intelectual de expressão linguística, resultado da atividade criativa humana que exige esforço típico e personalíssimo de seu criador. Assim, a natureza jurídica do Programa de Computador tem sido orientada para o regime do Direito Autoral (SICCA, 1999, p. 15). (...)

 

O legislador brasileiro compreendeu a necessidade de excepcionar a tutela do software, diante de evidentes peculiaridades técnicas e comerciais.

"A questão da propriedade do Software transcende as fronteiras das regras estabelecidas para a propriedade autoral conforme o texto da Lei nº. 9.610/98" (CERQUEIRA, 2000, p. 23)".

O texto original é de Alejandro Knaesel Arrabal, em Apontamentos sobre a Propriedade Intelectual de Software; para fins de esclarecimento, destacamos e grifamos trechos importantes.

 

Em outras palavras, alguns dos dispositivos da Lei Autoral mostram-se inaplicáveis à tutela de programas de computador, seja pela própria natureza do objeto, seja em razão de disposições de legislação específica.

Tais aspectos encontram regramento próprio na Lei do Software (Lei 9609/1998), que conceitua tecnicamente os programas de computador como "a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados". Assim, todo e qualquer programa, seja expresso em linguagem de programação, ou em composições figuradas como diagramas ou fluxogramas, tem amparo legal, desde que concebido para ser aplicado a instruir o computador, tornando-o útil a uma finalidade específica. A doutrina mais abalizada leciona, novamente citando Arrabal, com grifos nossos:

"Isoladamente, o computador é incapaz de realizar qualquer tarefa. Somente através de um programa essa unidade eletrônica é capaz de demonstrar utilidade. Assim, o programa (software), desenvolvido a partir de uma linguagem código, consiste num conjunto de instruções lógicas que permite ao computador realizar as mais variadas tarefas do dia-a-dia de empresas, profissionais de diversas áreas e usuários em geral.

Para o programador, o software é fruto de um labor intelectual de natureza técnica, pois é concebido a partir da aplicação de conhecimentos e habilidades específicas, voltadas à produção de um bem de caráter utilitarista".

Nessa toada, e levando-se em conta o caráter utilitarista dos programas de computador, o legislador houve por bem aplicar à matéria tratamento especial, aproveitando-se, inclusive, de algumas características contidas da Lei da Propriedade Industrial (Lei 9279/1996). Como exemplo, citamos a faculdade conferida ao autor de registrar seu programa de computador perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI.

Porém, vale lembrar que a proteção legal independe de prévio registro, conforme determina expressamente o §3º, art. 2º, da Lei de Software. Em outras palavras, o registro tem caráter meramente declaratório, e não constitutivo do direito, até mesmo porque o INPI não faz qualquer análise de mérito para concessão do registro, que é concedido automaticamente, como visto em Lei do Software e seu Regulamento, Pricewaterhouse Coopers, novamente com grifos nossos:

"É de ser salientado, portanto que, embora o registro no INPI não tenha o condão de determinar a proteção jurídica para o reconhecimento dos direitos sobre o programa de computador, poderá ser de segurança para o seu autor, servindo como meio de prova da autoria da obra, quando não for possível a prova desses requisitos por outros meios".

Essas algumas das principais previsões da Lei do Software (L. 9609/1998), que devem reger os direitos oriundos da elaboração de programas de computador.

 

II - DA TITULARIDADE DO PROGRAMA DESENVOLVIDO NO ÂMBITO DO CONTRATO DE TRABALHO

ART. 4º DA LEI DO SOFTWARE - L. 9609/1998

Quanto à titularidade dos programas de computador, a Lei do Software também traz disposições específicas, reproduzindo em parte as determinações dos artigos 88 a 91 da Lei da Propriedade Industrial (Lei 9279/1996 - LPI).

De fato, ao contrário das disposições da Lei de Direito Autoral, a LPI determina que pertencem ao empregador os inventos concebidos no âmbito do contrato de trabalho, como se vê do artigo 88 do referido diploma legal:

Art. 88. A invenção e o modelo de utilidade pertencem exclusivamente ao empregador quando decorrerem de contrato de trabalho cuja execução ocorra no Brasil e que tenha por objeto a pesquisa ou a atividade inventiva, ou resulte esta da natureza dos serviços para os quais foi o empregado contratado.

§ 1º Salvo expressa disposição contratual em contrário, a retribuição pelo trabalho a que se refere este artigo limita-se ao salário ajustado.

Previsão bastante semelhante encontra abrigo no art. 4º da Lei do Software, que rege a questão:

Art. 4° Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado, contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou, ainda, que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos.

§ 1º Ressalvado ajuste em contrário, a compensação do trabalho ou serviço prestado limitar-se-á à remuneração ou ao salário convencionado.

 

Como leciona a doutrina especializada sobre o tema, no caso, citando Antonio Figueirero Murta Filho, em Software: Características da Nova Lei, "esse preceptivo legal prevê que os direitos sobre o programa desenvolvido no curso do contrato ou de vinculo estatutário pertencerão exclusivamente ao empregador ou contratante de serviços, ressalvada a hipótese do §2º, em que os direitos tocarão ao contratado ou empregado. Essa norma manteve a sistemática do regime anterior e encontra similitude com as normas da Lei 9279/96, que, no entanto, inclui a hipótese da co-titularidade, não prevista na Lei do Software".

Com efeito, conforme se depreende da simples leitura do dispositivo acima transcrito, pertence com exclusividade ao empregador o programa de computador, quando desenvolvido e elaborado durante a vigência do contrato, nas seguintes hipóteses:

quando o contrato de trabalho for expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento de softwares,

quando o desenvolvimento de software estiver previsto nas atividades do empregado, ou, ainda, quando decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos. Nesse sentido, toda a doutrina, ainda de acordo com a obra Lei do Software e seu Regulamento, é unânime:

"Estatui o art. 4º da nova lei que pertencerão exclusivamente ao empregador contratante de serviços ou órgãos públicos os direitos relativos ao software desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vinculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento, ou em que a atividade do empregado contratado de serviço ou servidor seja prevista, ou ainda que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses serviços.

Portanto, o autor do programa de computador na condição de empregado que seja subordinado a um Contrato de Trabalho regido pela Consolidação das Leis do Trabalho - CLT ou por Estatuto, no caso de funcionários públicos, não detém o direito à titularidade da obra, posto que essa é produzida em decorrência exclusivamente do regime de subordinação e dependência de um pacto laboral. (...)

Alude, ainda, a lei que, ressalvado o que se ajustar em contrário, a compensação do trabalho ou serviço prestado pelo criador de um programa dentro da relação empregatícia acima indicada limitar-se-á à remuneração ou ao salário convencionado do empregado ou servidor.

Foi salutar a orientação prestigiada na nova lei sintônica com a regra anteriormente prevista quanto à autoria de programas nos casos do relacionamento entre empregadores e empregados, servindo de solução para uma situação que pode mostrar-se presente em grande parte dos projetos de desenvolvimento de softwares."

O Poder Judiciário também tem aplicado o dispositivo em comento, reconhecendo que pertence ao empregador o programa de computador desenvolvido no âmbito do contrato de trabalho:

Em memorável artigo sobre o tema, o advogado Felipe Pagni Diniz também já se manifestou, concluindo que, "havendo desenvolvimento de softwares ou de investimentos durante o pacto laboral e sendo estas prestações o foco do contrato de trabalho, serão os respectivos direitos de propriedade do empregador e não dos empregados"."DIREITOS AUTORAIS - SOFTWARE - RESCISÃO CONTRATUAL - CULPA- INDENIZAÇÃO.

A criação e o desenvolvimento de programa de computador nas dependências do empregador ou do contratante de serviços, com equipamentos a este pertencentes e pessoal por ele contratado, não conferem ao autor indenização a título de direito autoral, ex vi do disposto no art. 5º da Lei 7646/1987"
(conforme TJMG - Ap. 223.468-4-00 - 1º Cam. Cível, Rel. Páris Pena, in Revista de Jurisprudência do TAMG nº 65/156)

Assim, efetivamente toda a doutrina, numa exegese literal da do art. 4º da Lei do Software, converge no sentido de que os programas de computadores elaborados no âmbito do contrato de trabalho pertencem ao empregador, não fazendo o empregado jus a qualquer remuneração excedente ao salário convencionado.

De outro lado, conforme determina o parágrafo 2º do referido dispositivo, "pertencerão, com exclusividade, ao empregado, contratado de serviço ou servidor os direitos concernentes a programa de computador gerado sem relação com o contrato de trabalho, prestação de serviços ou vínculo estatutário, e sem a utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador, da empresa ou entidade com a qual o empregador mantenha contrato de prestação de serviços ou assemelhados, do contratante de serviços ou órgão público".

 

Importante notar que a Lei estabelece um critério negativo para delimitação da propriedade do software desenvolvido fora do âmbito do contrato de trabalho. Assim, apenas pertencerão ao empregado o programa de computador que tenha sido elaborado sem utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios do empregador.

Contrario sensu, o programa de computador gerado mediante a utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador, pertencem com exclusividade a este último, por expressa determinação legal.

Por sua relevância, vale transcrever trecho da obra Direitos Intelectuais e o Contrato de Trabalho, que esmiúça a questão com toda a pertinência:

 

A questão de titularidade será julgada em favor do empregado quando da elaboração sem recursos do empregador

 

"Muito embora, estejam ligados diretamente com direitos individuais de personalidade, os direitos intelectuais também estabelecem laços estreitos com o direito do trabalho. Isso porque muitas vezes a produção intelectual advém da contratação de serviços por um terceiro, o empregador.

É nesse meio que se estabelece a discussão sobre quem é o efetivo proprietário do direito intelectual desenvolvido durante a vigência do contrato de trabalho: o empregador ou o empregado?

Como meio de solução desse conflito, tem-se utilizado, ultimamente, como parâmetro dois textos legais: a Lei de Patentes (9279/1996) e a Lei de Software (9609/1998) que preveem três hipóteses normativas para o caso de trabalhos que envolvam direitos de propriedade industrial bem como criação e o desenvolvimento de programas de computador.

A primeira hipótese refere-se ao desenvolvimento de inventos ou softwares que guardem relação com a dinâmica das atividades laborais estabelecidas na relação empregatícia, ou seja, sejam idênticas ou semelhantes às atividades contratadas pelo empregador por meio do contrato de trabalho.

Estabelece o texto da Lei nº 9279/1996 (Lei de Patentes) que "A invenção e o modelo de utilidade pertencem exclusivamente ao empregador quando decorrerem de contrato de trabalho cuja execução ocorra no Brasil e que tenha por objeto a pesquisa ou a atividade inventiva, ou resulte esta da natureza dos serviços para os quais foi o empregado contratado" (art. 88, caput). (...) Nesse sentido também a Lei 9609/1998 (Lei de Software): "Salvo estipulação em contrário, pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público, os direitos relativos ao programa de computador, desenvolvido e elaborado durante a vigência de contrato ou de vínculo estatutário, (...)" (art. 4º). A segunda hipótese, aplicável tanto aos direitos de propriedade industrial como aos Softwares, diz respeito a trabalhos realizados fora dessa dinâmica e sem o emprego de instrumentos fornecidos pelo empregador.

A este respeito, a Lei de Patentes estabelece que "pertencerá exclusivamente ao empregado a invenção ou o modelo de utilidade por ele desenvolvido, desde que desvinculado do contrato de trabalho e não decorrente da utilização de recursos, meios, dados, materiais, instalações ou equipamentos do empregador" (art. 90 da Lei 9279/96).

Assim, também, a Lei de Software que dispõe no art. 2º do art. 4º que "pertencerão, com exclusividade, ao empregado, contratado de serviço ou servidor os direitos concernentes a programa de computador gerado sem relação com o contrato de trabalho, prestação de serviços ou vínculo estatutário, e sem a utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador".

Por fim, a terceira hipótese é aquela na qual não há a dinâmica pretendida com o contrato de trabalho, mas há o emprego dos instrumentos fornecidos pelo empregador.

A Lei de Patentes estabelece que "a propriedade de invenção ou de modelo de utilidade será comum, em partes iguais, quando resultar da contribuição pessoal do empregado e de recursos, dados, meios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador, ressalvada expressa disposição contratual em contrário" (art. 91, caput).

Nessa hipótese, entretanto, a Lei de Software dispõe em sentido diverso, no já citado §2º do art. 4º a obrigatoriedade da não "utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador" para que a propriedade seja do empregado, não havendo co-propriedade nos casos de software.

Diante do acima exposto, é possível afirmar conclusivamente que, havendo desenvolvimento de software ou de investimentos durante o pacto laboral e sendo estas prestações o foco do contrato de trabalho, serão os respectivos direitos de propriedade do empregador e não dos empregados.

Não só isso, havendo a autonomia total do trabalho desenvolvido pelo empregado, seja quanto às atividades desempenhadas, seja quanto aos meios utilizados, é certo dizer que pertence ao empregado a propriedade do trabalho intelectual.

E, finalmente, tem-se que, nos casos em que tão somente se utilize os instrumentos fornecidos pelo empregador sem que haja vinculação com as atividades contratadas, a propriedade será comum entre empregado e empregador nos casos de inventos (propriedade industrial) e do empregador nos casos de desenvolvimento de softwares."

Note-se que, segundo o artigo acima citado, com grifos nossos, mesmo quando a elaboração do software é realizada fora do âmbito das atividades previamente estipuladas no contrato de trabalho, mas com emprego de informações técnicas, recursos e demais instrumentos fornecidos pelo empregador, pertencerá a este último os direitos intelectuais sobre o programa desenvolvido.

Dessa forma, somente pertencerão ao empregado os programas elaborados por ele quando desenvolvidos de forma absolutamente independente do vínculo a que está submetido, sem que haja uso de informações técnicas decorrentes de seu contrato de trabalho.

 

 

 

O texto original é de Alejandro Knaesel Arrabal, em Apontamentos sobre a Propriedade Intelectual de Software; para fins de esclarecimento, destacamos e grifamos trechos importantes.

Cláudio França Loureiro e Camila Cardeira Pinhas Pio Soares

Advogados especializados em Propriedade Industrial, do escritório Dannemann, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira Dannemann Siemsen Advogados.

 

FONTE: http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/77/artigo271874-1.asp