CRIME DE PERIGO ABSTRATO: uma análise de sua legalidade à luz da Constituição


PorIsabella Bogéa ...- Postado em 21 novembro 2012

Autores: 
Isabella Bogéa de Assis
Marco Polo Fernandes Sousa Araújo

 

CRIME DE PERIGO ABSTRATO:

uma análise de sua legalidade à luz da Constituição

 

 

Isabella Bogéa de Assis

Marco Polo Fernandes Sousa Araújo[1]

 

Sumário: Introdução; 1 Crime de perigo 1.1 Crime de perigo abstrato; 3 Análise da  legalidade do crime de perigo abstrato à luz de princípios constitucionais;  Conclusão; Referências.

 

 

RESUMO

 

O artigo apresenta uma análise acerca do crime de perigo abstrato. Resgata a importância conceitual e prática da existência do crime em comento. Ocorre que há a possibilidade de violação a determinados princípios constitucionais. Desse modo, há uma discussão polêmica no que se refere à constitucionalidade desse delito.  Assim, alguns princípios constitucionais serão analisados para que forme uma opinião sobre a legalidade do crime de perigo abstrato.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

Crime. Perigo abstrato. Princípios constitucionais.

 

 

INTRODUÇÃO

           

As pessoas procuram o Judiciário a fim de obter uma decisão justa e definitiva ao caso concreto. Dessa forma, o direito deve ser dado a quem o tem, com respeito principalmente à Constituição do Estado. Esta traz em seu bojo os princípios norteadores da sociedade. Portanto, todas as normas do direito infraconstitucional devem ser compatíveis com a Lei Maior.

O processo tramita em juízo ate o momento que as partes obtêm uma decisão de caráter definitivo. Ocorre que em matéria criminal, que falamos de comprimento de pena, que tutelamos a liberdade do indivíduo, a sentença judicial deve ser coerente com os fatos e deve buscar aplicar justiça ao caso concreto. Não se deve trabalhar com suposições e sim com certezas.

A norma penal é uma criação que tem o objetivo de proteger convivência pacífica e a harmonia social, logo, precisa respeitar os direitos fundamentais do homem. Caso contrário, os cidadãos iriam preferir usar a força física para resolver seus conflitos. Isso seria um retorno ao estado de natureza hobbesiano. Daí a importância da força normativa.

Contudo, há alguns casos que devem ser analisados com cautela, como o crime de perigo abstrato. Não pode haver lei que desrespeite alguma norma constitucional, pois assim tem-se um entendimento inconstitucional, que por sua vez não deve ser aplicado ao caso concreto. Na doutrina e jurisprudência brasileira há uma veemente discussão sobre o assunto. Tal contenda será profundamente analisada nesse paper.

 

1 CRIME DE PERIGO

 

Para a caracterização desta classificação de crime é mister entender a evolução do entendimento de risco nascido no inconsciente coletivo como forma de prevenção a certas ações humanas que colocam em situação perigosa nossa própria existência. Na esteira da reflexão, faz sentido a preocupação preventiva tendo em vista que os riscos, hodiernamente, são globais e não respeitam fronteiras físicas ou mesmo temporais já que um dano causado por uma ação humana tomada do outro lado do planeta há 15 anos atrás, por exemplo, pode trazer efeitos aqui no território nacional, na atualidade. Vide decisões precipitadas no campo do meio ambiente.

Como nascimento da idéia de risco tem-se uma evolução interessante que mostra o caminho percorrido pela consciência social acerca do perigo sempre existente na vida em sociedade. Como bem lembra GOLDBLAT:

“Os conceitos de risco se dividem em três etapas: na primeira fase o risco assume a forma acidente, isto é, de um acontecimento exterior e imprevisto, de um acaso, e é simultaneamente individual, repentino e irremediável. [...] na segunda fase, surge a emergência da noção de prevenção e segurança, entendendo-se como tal a atitude coletiva, racional que se destina a reduzir a probabilidade de ocorrência e a gravidade de um risco[...] na terceira fase o risco é encarado como algo invisível, imensurável, catastrófico, irreversível, pouco ou nada previsível, que destrói as nossas esperanças de prevenção e de domínio. A sociedade da atualidade, “do risco” é, pois, uma sociedade que se põe por seus próprios atos de perigo.” (apud, ÂMBITO JURÍDICO, p. 2):

 

Portanto, podemos concluir que a sociedade atual possui uma visão clara de que se não houver medidas preventivas tuteladas pelo direito o caráter autodestrutivo do homem se fará valer, podendo levar a consequências nefandas à sociedade.

Logo, o direito vem a suprir tais potenciais danos na tentativa de tornar mínimo o risco e propiciar segurança social. É a sistemática da proteção a bens jurídicos por meio da idéia de prevenção, de evitabilidade do risco. 

Disto tudo se traz a idéia dos crimes de perigo, onde nascem exatamente para concretizar juridicamente a idéia de se afastar o risco de se atingir danosamente determinado bem jurídico relevante. Os crimes de perigo, para um melhor entendimento, contrapõem-se semanticamente aos crimes de dano, como bem lembra Mirabbete (2003, p. 134) quando diz que:

“Quanto ao resultado, podem ainda os crimes ser divididos em duas espécies: os crimes de dano e os crimes de perigo. Os primeiros só se consumam com a efetiva lesão do bem jurídico visado, por exemplo, lesão à vida, no homicídio; ao patrimônio, no furto; à honra, na injúria etc. Nos crimes de perigo, o delito consuma-se com o simples perigo criado para o bem jurídico.” (Grifo nosso).

 

Ainda dentro dos crimes de risco, pode-se traçar duas ramificações importantes, quais sejam, os de perigo concreto e os de perigo abstrato, sendo aqueles os que necessitam de comprovação, a exemplo dos artigos 130 e 134 do CP, e estes os que pressupõe ser perigosos a determinado bem jurídico, somente presumindo-se com a prática do fato, a exemplo dos artigos 135 e 253 do mesmo CP. Sendo assim Nucci descomplica a questão afirmando:

 “[...] perigo abstrato, quando a probabilidade de ocorrência de dano está presumida no tipo penal, independendo de prova (ex.: porte ilegal de substância entorpecente – arts. 28 e 33, Lei 11.343/06 -, em que se presumi o perigo para a saúde pública); perigo concreto, quando a probabilidade de ocorrência de dano precisa ser investigada e provada (ex.: expor a vida ou saúde de alguém a perigo – art. 132, CP).” (NUCCI, 2007, p.172).

 

Complementando, os crimes de perigo concreto necessitam de um resultado materialmente verificável com possibilidade de real atentado ao bem jurídico, já ,no que tange os crimes de perigo abstrato, tenta-se atacar as condutas que potencialmente oferecerão riscos ao bem jurídico, sem que seja necessário faticamente a ocorrência de um resultado de exposição a perigo.

 

2 CRIME DE PERIGO ABSTRATO

 

Os crimes estipulados nesta classificação procuram, em alto grau de proteção, evitar o dano mesmo em condutas que não possam diretamente causar dano a ordem dos bens tutelados pelo direito. Será a refutação de um comportamento que irá, mesmo que presumivelmente, contrariar a lei formal em vigência, conduta esta proibida assim pelo legislador. Logo, será punido quem demonstre a possibilidade concreta de dano efetivo do bem jurídico.

A seguinte assertiva nos traz uma reflexão mais ampla acerca destes crimes mostrando a relação com o meio social, que por sua vez é o foco para o estabelecimento de normas penais, o trecho nos diz:

“Vislumbra-se que os crimes de perigo abstrato não buscam responder a determinado dano ou prejuízo social realizado pela conduta, senão evitá-la, barrá-la, prevenindo e protegendo o bem jurídico de lesão antes mesmo de sua exposição a perigo real, concreto, efetivo de dano. Ao fazer uso desta modalidade delitiva, quer o Direito Penal da atualidade proporcionar, ou melhor, dar a sensação de segurança ao corpo social.” (REVISTA ÂMBITO JURÍDICO, acesso em: 13.11.2009, p. 04).

 

O Direito, dessa forma, procura não só atacar as condutas que causam direta e concretamente dano a bem jurídico protegido mas também antecipadamente investir contra agentes que pratiquem atos potencialmente danosos a terceiros e que venham a causar sentimento de insegurança ao coletivo social. A paz social seria um dos principais objetivos visados na estipulação da criminalização dos atos enquadrados como crimes de perigo.

Cabe frisar que frente às características do crime de perigo abstrato a questão do ônus da prova se coloca em situação peculiar, já que a comprovação da ocorrência do fato danoso e do nexo de causalidade resta inexistente. Logo, pragmaticamente, é desnecessário a comprovação de fato concreto, mas sim o puro desrespeito à norma, dando assim ao acusado escassas chances de defesa.

Outra discussão Cruz traz à baila, discutindo:

“[...] haverá atipicidade da conduta quando se comprove a absoluta inocorrência (ou ausência) do perigo no caso concreto para o bem jurídico. Nos delitos de perigo abstrato dá-se uma presunção juris tantum e não jutis et de jure da existência do perigo” (CRUZ, acesso em: 16.11.2009, p. 09)

 

Tal idéia claramente entende a tipificação de conduta como crime de perigo somente aquele que traduza perigo real ao bem jurídico, sendo que, caso não haja, a atipicidade se torna evidente.

Contudo, a idéia de crimes de perigo, notadamente o abstrato, está envolta em grande discussão no que tange o respeito aos princípios norteadores do ordenamento penal brasileiro. A doutrina é recorrente em citar a relação que existe entre a estipulação destes crimes e o princípio da ofensividade que exige o resultado de determinado ato, para citar uma das controvérsias mais importantes. Nesse campo temos que:

“Claramente, desse emprego dos tipos penais de perigo abstrato, resulta afronta ao enunciado de Direito Penal clássico nullum crimen sine injuria, e, por conseguinte, inobservância ao princípio constitucional da ofensividade, pois não há crime sem resultado. Ainda, neste sentido, a disposição do artigo 13 do Código Penal.” (REVISTA ÂMBITO JURÍDICO, acesso em: 13.11.2009, p. 05).

 

Destarte, só haveria criminalização de condutas se concretamente haja o dano real a bem jurídico ou, além, haja situação real de exposição objetiva a risco.

 

3 ANÁLISE DA LEGALIDADE DO CRIME DE PERIGO ABSTRATO À LUZ DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

 

O conjunto de princípios constitucionais do ordenamento brasileiro forma a maior garantia que um cidadão possui no que tange ao andamento processual coerente com ideais de justiça. É através da tutela jurisdicional que os indivíduos resolvem conflitos em afirmação ao Estado Democrático de Direito.

O devido processo legal, uma garantia oriunda do inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, tem como principal objetivo o acesso ao Judiciário que conduz à solução de lides de forma pacifica e coerente com o sistema legal do Estado.  Desse modo, o cidadão procura uma solução ao conflito que seja definitiva, que deve ser acima de tudo, justa.

É essencial que a legislação infraconstitucional esteja de acordo com os princípios constitucionais, para que se tenha uma maior segurança jurídica, bem como em prol da diminuição das injustiças que assolam a sociedade brasileira. A solução de conflitos com base na legalidade é de extrema importância para a sobrevivência do Estado, mas depende do bom funcionamento das instituições. As pessoas doam poderes aos seus representantes, acreditando, assim, que eles podem legislar, executar e decidir questões não com base na sua vontade, mas com respeito ao que é melhor para todos, o que certamente está contido na Constituição.

Em um Estado Democrático, a tripartição de poderes deve funcionar perfeitamente, para que nenhum poder se sobressaia. É fundamental que Judiciário e o Legislativo encontrem, cada vez mais, mecanismos para fortalecer confiança do cidadão. Para tanto, devem respeitar a Norma Suprema. Assim, o Judiciário deve fundamentar suas decisões e sentenciar, sempre com respeito à Constituição, que é a garantidora da justiça.

Cabe ao Estado analisar, julgar e exercer o poder punitivo. Para que não haja arbitrariedades nesse exercício, os princípios do direito penal devem ser respeitados. O princípio da legalidade, previsto no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal, “não há crime sem lei anterior que o defina, nem lei sem prévia cominação legal”. Desse modo, não há crime, nem pena ou medida de segurança (sanção penal) sem prévia lei (stricto sensu). A criação dos tipos incriminadores, bem como de suas respectivas conseqüências jurídicas é subordinada à lei formal anterior. O princípio resguarda uma garantia material que implica em uma verdadeira predeterminação normativa (lex scripta lex praevia et lex certa). (PRADO, p.130, 2006)

O crime de perigo abstrato, em que a situação de perigo é tão-somente presumida, bastando a prática do comportamento previsto pelo tipo penal (GRECO, p.7, 2006), viola o princípio da legalidade, uma vez que para a prática desse delito não há um tipo penal que descreva a conduta a ser punida. Tal situação permite julgamentos arbitrários, o que é motivo de preocupação para os cidadãos.

Outra garantia que o crime de perigo abstrato viola é o princípio da lesividade, segundo o qual apenas configura crime uma conduta que ofenda a um bem jurídico, através da criação de um dano, ou pela possibilidade de configuração de dano. Desse modo, a conduta deve ser punida apenas quando ficar comprovado dano ou provável perigo ao bem juridicamente tutelado. (BATISTA, p.92, 2001)

De acordo com o princípio da presunção de inocência, assegurado pelo inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, nenhum cidadão pode ser considerado culpado por um crime, até que a sentença penal condenatória transite em julgado. Logo, a ação ou omissão do crime de perigo necessita ser comprovada de alguma forma, durante o processo, para que não seja desrespeitado o princípio em comento.

A inocência do acusado é presumida, até que se prove o contrário. Portanto, a condenação do individuo é vinculada à atividade probatória que deve ser levada para análise em juízo pela parte autora. Diante da inexistência de provas suficientes, a condenação do réu fica taxativamente vedada. (MORAES, 2003, p.380 - 388)

O princípio da culpabilidade vincula a prática do crime a uma conduta culposa ou dolosa. A atitude ou omissão deve ser comprovada. O indivíduo não será condenado criminalmente por algo que não foi capaz de prever o resultado ou quando não agiu com vontade, com o objetivo de obtê-lo. Assim, não deve haver condenação por um resultado imprevisível. (BITENCOURT, p.6-10, 2000)

A sentença deve representar a certeza da prestação jurisdicional coerente com a Lei Maior, com respeito aos direitos fundamentais do cidadão e, por conseguinte, com os ideais de justiça existentes na sociedade. Quando uma norma jurídica é legislada, certamente é para ser aplicada de forma a levar o direito a quem o tem. Contudo, nem sempre se leva justiça ao caso concreto através do direito, mas é importante que a norma aplicada seja apartada da vontade do juiz, para que assim seja evitada a arbitrariedade. Assim, é fundamental as decisões sejam totalmente amparadas pela Constituição. A Lei Maior não pode ser esquecida de forma alguma no processo decisório, pois isso esvazia o discurso jurídico. O cidadão aspira por justiça, em afirmação da proteção de sua dignidade.

 

CONCLUSÃO

 

O crime de perigo abstrato muitas vezes configura uma ameaça jurídica. A presunção de fatos é algo que abala a segurança que o cidadão possui de que o direito será aplicado ao caso concreto, com a atribuição de uma solução de caráter indiscutível. Assim, proporciona estabilidade jurídica às partes que estão em litígio, pois quando se procura o Judiciário é para obter uma decisão imutável, que resolva o conflito definitivamente, de acordo com as normas constitucionais.

No estado brasileiro, em que se tem uma democracia representativa, as pessoas comungam da confiança depositada não somente no Legislativo e Executivo, como também no Judiciário, que apesar de não ter sido escolhido pelo voto popular, é legitimado pelos cidadãos. Portanto, as instituições do país devem, cada vez mais, ter a credibilidade da população. Devem estar comprometidas com a legalidade. O Legislativo deve se preocupar primeiramente com o respeito aos princípios constitucionais. O contrário disso torna o Estado fraco. Desperta insegurança nos cidadãos, comprometendo assim, a paz social.

Quando o Judiciário soluciona conflitos de maneira definitiva, desrespeitando a Lei Maior, tem-se um sério problema. A dignidade da pessoa humana deve ser preservada, os direitos indisponíveis e imprescritíveis precisam ser resguardados e protegidos na prática jurídica, da mesma forma que o são teoricamente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ÂMBITO JURÍDICO, REVISTA. Reflexão sobre os crimes de perigo abstrato. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/artigos/3217.pdf. Acesso em: 13.11.09.

 

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2000.

 

CRUZ, Ana Paula Fernandes Nogueira da. Os crimes de perigo e a tutela preventiva do meio ambiente. Disponível em: http://www.justitia.com.br/artigos/63x2bz.pdf. Acesso em: 16.11.09.

 

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial, volume IV. Niterói, RJ: Impetus, 2006.

 

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2003.

 

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. São Paulo: Atlas, 2003.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

 

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 6ª Ed. RT: São Paulo. 2006.

 



[1] Alunos do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB)