A criminalização da pobreza na América Latina como estratégia de controle político


Pormarianajones- Postado em 23 maio 2019

Autores: 
Lucas Lopes Oliveira

Sistema Penal & Violência Revista Eletrônica da Faculdade de Direito Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS Porto Alegre • Volume 8 – Número 2 – p. 168-186 – julho-dezembro 2016 Criminalização da Política A criminalização da pobreza na América Latina como estratégia de controle político The criminalization of poverty in Latin America as a strategy of political control Lucas Lopes Oliveira Editor-Chefe José Carlos Moreira da Silva Filho Organização de Rogerio Dultra dos Santos Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR ISSN 2177-6784 http://dx.doi.org/10.15448/2177-6784.2016.2.25371 Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 169 Criminalização da Política Criminalization of Politics

A criminalização da pobreza na América Latina como estratégia de controle político

The criminalization of poverty in Latin America as a strategy of political control

Lucas Lopes Oliveiraa

“... Favela ainda é senzala jão Bomba relógio prestes a estourar...”

EMICIDA

Resumo

O presente artigo aborda os mecanismos penais de controle social na América Latina, tentando identificar os excessos autoritários, utilizados como ferramenta de criminalização da pobreza e de grupos vulneráveis, sempre presente na história do nosso continente. Tais excessos do sistema de controle social latino-americano, que segundo Zaffaroni tem como modelo o projeto de controle lombrosiano, se devem muito às condições políticas e sociais características de nossa região, que instalaram um controle social racista e classista e que diferem da lógica do controle nos países centrais. Trata-se assim de estudar a constante criminalização, marginalização e repressão das classes populares, através do sistema de repressão político-criminal que afeta principalmente grupos vulneráveis e manifestações políticas de empoderamento popular. Assim, fazemos um resgate histórico bibliográfico, dos levantes populares, passando pela criminalização das maltas de capoeiras e pela repressão política, até finalmente desaguar no sistema proibicionista de guerra às drogas, que por sua estrutura se tornou um importante mecanismo de criminalização, violação aos direitos humanos, encarceramento e extermínio da juventude pobre latino-americana.

Palavras-chave: repressão politico-criminal; direito penal do inimigo; estado de exceção; criminalização da pobreza; direitos humanos.

Abstract This article discusses the criminal mechanisms of social control in Latin America, trying to identify the authoritarian excesses, it is used as tool criminalization of poverty and vulnerable groups, always present in the history of our continent. Such excesses of Latin American social control system, which according to Zaffaroni is modeled on the lombrosiano control project, it owes much to political and social conditions characteristic of our region, which installed a racist social control and class, and that is different from logic control in the central countries. thus it comes up to study the continued criminalization, marginalization and repression of the working class through the political and criminal repression system that primarily affects vulnerable groups and political manifestations of popular empowermet. So we make a bibliographic historical rescue of repression of popular uprisings, through the criminalization of malts coops and political repression, and finally emptying into the prohibitionist system of war on drugs, which in its structure has become an important criminalization mechanism resulting in violation of human rights, imprisonment and extermination of Latin America's poor youth.

Keywords: political and criminal repression; criminal law of the enemy. state of exception; criminalization of poverty; human rights. a Advogado. Mestre em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas pela UFPB. Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 170

Introdução

As décadas finais do século passado provocaram profundas alterações na estrutura política global. Estas transformações vão desde as grandes transformações tecnológicas – que abriram barreiras nunca antes descobertas –, a queda dos regimes socialistas que fez ruir qualquer alternativa ao modelo econômico capitalista, a hegemonia do discurso neoliberal que se afirmava absoluto na nova ordem mundial. Todas estas transformações também se refletiram sobre asmargens do capitalismo, principalmente sobre as regiões latino-americanas, que durante boa parte da segunda metade do século passado, viveram sob a égide do autoritarismo das ditaduras militares. O final do século XX representa a retomada da democracia e dos anseios populares por cidadania e direitos humanos, antes calados pelos regimes políticos autoritários. A história fluiria com mudanças ainda impensáveis que redesenhariam bastante a geopolítica no início do século XXI, modificando inclusive o discurso jurídico clássico do liberalismo político, tendo reflexo direito sobre a questão dos direitos humanos. Entre as várias mudanças políticas destacaremos o atentado de 11 de Setembro, que redesenharia a preocupação global e lançaria as bases fáticas para o estabelecimento do discurso atual sobre segurança global e direitos humanos: o discurso do combate ao terror. O medo do terrorismo ganhará a tônica nestes tempos, redesenhando a estrutura política global, que agora não está ameaçada por um regime político localizado em um determinado país – não era mais o comunismo que ameaçava a segurança global – mas sim grupos terroristas, espalhados em redes, um perigo difuso, prontos para atacar os alicerces das democracias ocidentais e humanitárias. Estariam escolhidos os novos inimigos da ordem mundial, contra os quais recairiam, mais uma vez, as forças de paz e o peso das armas dos guardiões da ordem e da democracia.Contra este inimigo, e suas novas estratégias, uma nova arma deveria ser escolhida. Na realidade latino-americana pode-se notar a pouca eficácia das garantias que limitam o poder do Estado no âmbito penal. Diferente dos países centrais do capitalismo, em nossa região, observamos a ineficácia do discurso jurídico democrático de limitação dos poderes do Estado. Este problema se deve, em partes, pela própria estrutura social bem mais desigual que faz com que o controle penal na modernidade se estipule sob a ótica da contenção das classes tidas como perigosas. As flexibilizações de direitos nos países centrais, frente à necessidade da luta contra o terror, sendo incorporada a lógica do Direito Penal do Inimigo, vai também influenciar o controle social na América Latina. Trataremos de investigar a crescente crise jurídico-democrática ao longo da história contemporânea da América Latina, através de uma recapitulação de dados históricos realizada por uma pesquisa bibliográfica. Ao final tentaremos observar a influência da construção da figura do inimigo como norte do controle social a nível global e como tal discurso foi recepcionado em nossa realidade latino americana, com a designação do traficante como o inimigo latino-americano.

América Latina e o controle penal: a lógica da contenção e do controle de exceção

Se há algo constante na formação da América Latina é o histórico de exploração. As regiões latinoamericanas do continente, que se caracterizam por terem sido colônias de exploração, enfrentaram grandes dificuldades advindas da realidade social em que se inserem. Os grandes problemas sociais têm sua origem neste modelo exploratório, em um ciclo de violência e exploração que se sobrepõe. O sistema econômico baseado no latifúndio, na mão de obra escrava e na monocultura, acabou gerando uma realidade social com graves crises. O trabalho escravo como sustentáculo do regime econômico e o genocídio dos povos indígenas constituíram o Brasil com sérios problemas humanitários que ainda hoje são sentidos pela população, mesmo após tanto tempo. Para suportar um regime de tamanha exclusão social, as elites da América Latina tiveram Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 171 de desenvolver mecanismos de controle que evitassem a rebelião das classes populares1 . O controle social na América Latina sempre foi exercido de forma a maximizar a repressão nas classes sociais menos favorecidas. O destino das revoltas durante o período colonial não pôde ser diferente: sem grandes chances de luta frente à realidade social precária, foram, invariavelmente, sufocadas com grande crueldade pelos mecanismos repressivos coloniais.2 Este padrão repressivo se manterá constante na história latino-americana não só ao longo do século XIX, como veremos mais a frente, pois a ideia do inimigo ronda a América Latina, este inimigo expresso sempre sobre a forma de “classes perigosas”. Neste sentido, observa-se, ao analisar-se os gastos com o sistema repressivo, como as tensões sociais latino-americanas serão resolvidas como questão eminentemente policial: “Será suficiente comparar as dotações orçamentárias voltadas para as forças armadas e a educação primáriapara que se compreenda por que a tensão social latino-americana há muito é considerada assunto da polícia ou das forças armadas nacionais” (STEIN e STEIN, 1977, p. 133). É certo que o século XVIII que produziu as luzes produziu também as disciplinas. Assim, numa nova economia de poder que se desenvolverá, não apenas sobre a forma jurídica da soberania, mas através de outras formas de controle social, um controle distribuído de forma capilar, que se exerceria de forma a mudar o foco da pena, que incidia sobre o corpo do condenado mostrando o poder real, para uma nova forma de controle mais estratégico. O papel das instituições de sequestro como escolas, penitenciárias, asilos, hospitais e etc. vão desempenhar um papel importantíssimo na constituição dos sujeitos de forma a torná-los dóceis (FOUCAULT, 2013). Técnicas sempre minuciosas, muitas vezes íntimas, mas que têm sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova ‘microfísica’ do poder; e porque não cessaram, desde o século XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro. Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea (FOUCAULT, 2013, p. 120). No século XIX, começa a surgir uma nova forma de organização do poder, que iria gradualmente se desvencilhando do discurso da soberania, paradigma da era absolutista. Este poder que não se encontrava mais em um lugar mais elevado da sociedade, mas flui e disciplina a sociedade através de teias capilares, sujeitando indivíduos e, através de vários mecanismos e instituições, exerce um controle sobre os corpos de forma a tornálos dóceis. Estes mecanismos disciplinares iriam gerar novas formas de controle, da qual a “humanização” das penas é apenas um dos efeitos. Apesar desta “suavização” das penas, não se pode dizer que houve uma diminuição da repressão, trata-se mais de punir melhor, do que punir menos. Estes mecanismos disciplinares se espalham por toda a sociedade, sendo a instituição carcerária apenas a ponta de uma teia de dispositivos 1 “Esse estado de concentração político e social dizia respeito, desta forma, aos dois grandes grupos, o maior dos quais composto pela mão de obra rural. Durante o período colonial, os estratos superiores dos grupos ibéricos e criollos uniram, invariavelmente, suas forças, em oposição às revoltas indígenas e dos negros (quer sobre a forma de explosivas revoltas campesinas ou de levantes urbanos) que eclodiam periodicamente” (STEIN e STEIN, 1977, p. 122). 2 “Invariavelmente, também, estas ameaças a ordem estabelecida – insurreição de escravos, revoltas indígenas contra injustiças do tipo prestação de serviços pessoais, trabalho forçado, perda da propriedade comunal para fazendas invasoras e usurpadoras, exigência inflexível de tributos – foram subjugadas pela impiedosa aplicação da força, julgamento sumário e punição pública dos lideres. Ao longo do século XIX, este padrão repressivo foi preservado” (STEIN e STEIN, 1977, p. 122). Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 172 que serviram pra modelar e qualificar os sujeitos. Neste ponto, quartéis, escolas, hospitais e prisões guardam relações em termos de práticas disciplinares, pois todas fazem parte deste grande mecanismo de controle social. Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico. É polivalente em suas aplicações: serve para emendar os prisioneiros, mas também para cuidar dos doentes, instruir os escolares, guardar os loucos, fiscalizar os operários, fazer trabalhar os mendigos e ociosos. É um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder, de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões. Cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado (FOUCAULT, 2013, p. 170). A dinâmica repressiva, que data desde a colônia, vai se perpetuar durante a emergência da era das disciplinas, só que de uma forma totalmente renovada. Uma nova tecnologia de poder se inicia não só no centro do poder, mas também nas margens, entre elas a latino-americana. Para entender como o poder repressivo irá agir em nosso continente é necessário correlacionar as especificidades locais com as grandes mudanças políticas que irão dá lugar a um novo mecanismo de vigilância, cujo modelo arquitetônico do Panóptico de Bentham, cai como uma metáfora perfeita nos países centrais, conforme descrito por Foucault em “Vigiar e Punir”. O padrão repressivo que se mostra da passagem da punição para a vigilância, e na estruturação do controle disciplinar, vai ganhar certos contornos específicos em nossa região latino-americana. Um dos motivos vai ser justamente o fato de que a colônia, como bem lembrou Zaffaroni, é ela própria uma grande instituição de sequestro. De maneira inquestionável, as colônias representam grandes instituições de sequestro, as mesmas produzidas pela revolução mercantil como instrumento indispensável para sua extensão do poder planetário. O necolonialismo próprio da revolução industrial, que provocou a independência política de nossa região marginal em relação às potências que – por sua estrutura de impérios salvacionistas mercantis – decaíram e perderam sua hegemonia central frente aos pujantes imperialismos industrializados, manteve a situação e renovou o genocídio da primeira colonização quantas vezes se fez necessário, deixando as grandes maiorias de nossa região marginal submetidas a minorias proconsulares do poder central (ZAFFARONI, 2001, p. 76). Neste sentido é que Zaffaroni (ibidem, p. 77) afirma que: O panópticobenthamiano poderia ser o modelo de controle social programado ideologicamente como instrumento disciplinador durante a acumulação originária de capital na região central, mas o verdadeiro modelo ideológico para o controle social periférico ou marginal não foi o de Bentham mas o deCesareLombroso. Este modelo ideológico parte da premissa de inferioridade biológica tanto dos delinquentes centrais como da totalidade das populações colonizadas, considerando de modo análogo, biologicamente inferiores, tanto os moradores das instituições de sequestro centrais (cárcere, manicômios), como os habitantes originários das imensas instituições de sequestro coloniais. Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 173 Neste sentido, as disciplinas acabariam se socorrendo de uma dinâmica totalmente diferente do que ocorreria nos países centrais. Se a emergência dos problemas relacionados à população fez surgir a necessidade de se pensar o ser humano enquanto espécie, dando novas funções as disciplinas, conforme se observa na obra de Foucault (1999), originando, assim, o biopoder, que colocaria como paradigma científico todos os eugenismos, cujo nazismo é apenas o seu mais alto refinamento. Em nossa região marginal, em que a dinâmica do controle deve recair sobre uma maioria “degenerada” de habitantes, faz com que surja um modelo de controle racista aos moldes lombrosianos. Assim, nossas prisões segundo este modelo disciplinar latino-americano, “seriam as selas de castigo ou “solitárias” da grande prisão, da grande instituição de sequestro colonial” (ZAFARONI, idem). Conforme se observa com Foucault, o surgimento de uma nova forma de poder – o biopoder –, redesenha a dinâmica das disciplinas, bem como, o poder soberano do Estado. Estas três formas de exercer o poder irão se articular, de uma nova forma. O discurso jurídico da soberania deixa de ser a principal forma de controle, dando lugar a outras formas, que se exercem não de forma verticalizada, mas principalmente, em redes, cujo Estado é apenas um dos elementos. Assim, o discurso da Lei acaba servindo de fundamento e encobrindo esta forma de dominação e assujeitamento. Este controle disciplinar, paralelo a um controle que se exerce de forma soberana legal seria, na America Latina de tardia industrialização, exercido de forma às vezes precária, às vezes intensa, mas sempre genocida, bem como, de forma subterrânea à margem de qualquer discurso de legalidade, dada a realidade dos descasos econômicos que faz com que este controle deva ser exercido, não sob uma minoria rotulada e classificada como “degenerada” (como era exercido nos países centrais), mas sim, sob a maioria da população que sofreia da “inferioridade” colonial. Todo este contexto fez surgir em nossa região uma concepção não democrática de controle social, uma concepção em verdade antidemocrática, onde o controle social e político seriam exercidos de forma a excluir a grande maioria da população do processo político, intensificando a repressão sobre este segmento majoritário e pauperizado. A burla à democracia e ao discurso jurídico iluminista se dava em virtude da “iluminação” da classe dirigente, que “protegeria” a América Latina do colapso que seria a instituição de uma verdadeira democracia em meio à maioria tida como “degenerada”. Neste sentido o enfrentamento a qualquer forma de exercício de poder político de forma inclusiva, bem como, um controle genocida e racista seriam algumas das características mais marcantes do controle social latino-americano na era do biopoder. Até então o discurso criminológico havia sido o grande discurso político das minorias proconsulares latino-americana: sua burla a democracia e sua ‘tutela iluminada’ de nossas maiorias eram justificadas pela inferioridade de nossas maiorias e por sua crescente ‘degeneração’, que ameaçava as minorias ‘saudáveis’ [...] O protagonismo das maiorias nada mais eram do que o triunfo da degeneração (não era a democracia e sim a demagogia); liberalismo e democracia constituíam termos antagônicos na América Latina desde a revolução Mexicana, e o discurso racista criminológico representava o grande programa político neocolonialista (ZAFFARONI, 2001, p. 78) Desta forma, na passagem do século XIX para o século XX, temos a persistência do padrão de repressão e de criminalização da pobreza, que se alia à repulsa por qualquer forma democrática de exercício de poder, mesmo aos limitados moldes iluministas. “Destarte, o incipiente universalismo do século XVIII foi substituído pelos conceitos de heterogeneidadee hierarquia entre os homens, ao findar-se o século XIX” (STEIN e STEIN, 1977, p. 139). Assim, seguindo esta corrente, a utilização de mecanismos penais como forma de controle das classes excluídas, é algo frequente em nossa história latino-americana, que persistirá mesmo após a abolição Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 174 do trabalho escravo. Ao observarmos os dados apresentados por Michel Misse vemos o gradual aumento da repressão penal, quantificado pelo aumento dos sentenciados e presos durante a segunda metade do século XIX na cidade do Rio de Janeiro: [...] em 1850, são 1676 presos (813 por 100 mil habitantes) [...]; em 1868 são 6 mil (três mil por 100 mil habitantes); em 1874 são mais de 8 mil (quase três mil e quinhentos por 100 mil habitantes); e em 1876 alcançam quase 13 mil (5.200 por 100 mil habitantes) (MISSE, 2006, p. 145). Este aumento de prisões se dava no contexto do gradual aumento da influência das maltas de capoeiras, nos tempos finais do desumano regime de escravidão. No Brasil era comum, principalmente em territórios como o Rio de Janeiro, a formação de maltas de capoeiras, que seriam: “Formadas por três, vinte, ou até mesmo cem indivíduos, a malta era a forma associativa entre escravos e homens livres pobres do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX” (MISSE, 2006, p. 145). As maltas ao se espalharem pelos espaços urbanos do Rio de Janeiro, apropriando-se dos mesmos e ocupando-os simbolicamente dando assim uma nova lógica a estes espaços, ganhavam, desta forma, uma autonomia que ia de encontro às regras hierárquicas de uma sociedade escravista. Assim, como será uma constante na história de nosso continente, as manifestações de empoderamento e de cultura popular seriam constantemente reprimidas. A repressão à esta prática, nesta mesma época, pode ser verificado quando se observa que a capoeira é o quinto maior motivo de prisão na carceragem da polícia militar no Rio de Janeiro no ano de 1862 com 128 capoeiras presos em 2.946 prisões (REIS, 1994). Com a proclamação da república, o novo Código Criminal, transformou a prática da capoeira de simples contravenção em crime, agravado se existir formação de grupos ou maltas. Em seguida as maltas foram sendo maciçamente reprimidas no primeiro governo republicano pelo chefe de polícia Sampaio Ferraz e mais de mil capoeiras foram desterrados em Fernando de Noronha (MISSE, 2006, p. 146). Neste sentido, a construção, em meio à modernidade, de uma representação social da criminalidade que se desenvolve no imaginário social, ganha destaque, segundo o sociólogo Michel Misse (1999). O aumento da população nas cidades na América Latina de industrialização tardia, fez com que neste século o problema da criminalidade urbana venha surgir com mais força, lotado de signos representativos de um perigo social multifacetado e crescente onde sua imagem se assemelha a um sujeito social difuso, um verdadeiro fantasma social.3 As maltas de capoeira eram reprimidas, pois se adequavam a este imaginário. A primeira grande aparição do fantasma das ‘classes perigosas’ no Rio de Janeiro deu-se com os capoeiras e suas maltas, principalmente após o advento da República. O tema da ‘desordem públic’ foi sua primeira forma e durou até aproximadamente os anos 20. O fantasma criminal está ainda associado à normalização repressiva do uso da violência no cotidiano e às políticas ‘civilizadoras’ da cidade do Rio. A emergente visibilidade social do ‘malandro’, sua ambivalente positivação moral, representa e neutraliza crescentemente esse fantasma, substituindo-o, por volta dos anos 20, pelo fantasma revolucionário, trazido pelos imigrantes anarquistas e posteriormenteneutralizado pela hegemonia do Estado Novo junto às massas mais pobres da classe trabalhadora (MISSE, 1999, p. 185). 3 “Uma sensação de desordem, de caos urbano, de anomia contagiante que produziu crescentes demandas de segurança pública dirigidas a uma polícia também representada como ineficiente ou corrupta e a um judiciário representado como lento, burocrático e frouxo, terminaram por implorar a intervenção das Forças Armadas contra o banditismo” (MISSE,1999, p. 23). Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 175 O fantasma revolucionário, perdurará por muito tempo. Na República Velha, por exemplo, é o que torna qualquer conflito de classes algo criminalizado. Num contexto de grande exploração das classes trabalhadoras, a República Velha criminalizava as demandas e as formas de resistência dos trabalhadores usando o discurso de que estes legítimos anseios simbolizavam a perda ou “degeneração” da ordem. Com a emergência dos governos populistas latino-americanos, estes anseios revolucionários das classes populares vão sendo cooptados por um novo modelo de Estado. A promulgação de direitos trabalhistas faz diminui estes anseios, mas ao mesmo tempo ainda segue a lógica da não participação do povo, da realização dos direitos do povo, não pelo povo, mas sim por uma classe de governantes “iluminados”, os “pais dos pobres”. Esta lógica de exclusão dos trabalhadores da participação real em termos de política permanecerá uma constante na história latino-americana, caminhando de mãos dadas com a repressão política. O populismo de governos como Vargas e Perón, amenizou algumas das contradições entre trabalhadores e detentores do capital, mesmo conseguindo isto a custo do sacrifício da própria participação social. Mas a repressão aos movimentos populares também continuaram, a exemplo da realizada pela ditadura do Estado Novo. Mas este modelo não poderia se sustentar por mais tempo, o aprofundamento das contradições entre as classes iriam levar à falência deste regime conciliador e centralizador. O desenvolvimento capitalista já não compaginava com as grandes mobilizações de massas em torno de caudilhos como Vargas. Era preciso proibir as greves, destruir os sindicatos e os partidos, encarcerar, torturar, matar e abater pela violência dos salários operários para conter, assim, a custo de maior pobreza para os pobres, a vertigem da inflação (GALEANO, 1977, p. 230). Este ciclo populista teria fim em toda América Latina, conforme se observa nesta outra passagem da obra de Galeano (1977, p. 230): O mesmo processo de repressão e asfixia do povo teve lugar durante o regime do general Juan Carlos Onganía, na Argentina; tinha começado, em verdade, com a derrota peronista de 1955, assim como no Brasil tinha-se desencadeado realmente desde o balanço de Vargas em 1954. A desnacionalização da indústria no México também coincide com um endurecimento da política repressiva do partido que monopolizava o governo. Com a instauração das ditaduras militares latino-americanas, tem-se um novo ciclo repressivo, que multiplicará as intervenções policiais e a repressão. A lógica do discurso jurídico é deixada de lado no combate, como questão de segurança nacional, ao “terrorismo” dos que lutavam contra as arbitrariedades do regime. É a época da tecnocracia militar4 e será este o pensamento em voga, em tempos da vigência da Ideologia da Segurança Nacional. O “fantasma”, descrito por Misse, ganha nova aparição retroalimentando pelo medo do comunismo e da subversão. Todo o pânico social será convertido em legitimidade repressiva na luta contra as guerrilhas na defesa dos pilares da sociedade capitalista no Brasil e pela perpetuação dos privilégios herdados da era colonial. 4 “Em 1965, Roberto Campos, czar econômico do governo de Castelo Branco, sentenciava: “A era dos lideres carismáticos, cercados de aura romântica, está cedendo lugar à tecnocracia”. A embaixada norte-americana participara diretamente no golpe de Estado que derrubou o governo de João Goulart. A queda de Goulart, herdeiro de Vargas no estilo e nas intenções assinalou a liquidação do populismo e da política de massas” (Galeano, idem). Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 176 Sobre isso, Máximo Sozzo revela um paradoxo da política geral e também criminal na América Latina. As forças políticas que ameaçavam o poder central e que lograram chegar ao poder e construir uma base social para as classes trabalhadoras eram chamadas de ‘populistas’: o trabalhismo, no Brasil; o peronismo, na Argentina; a Guatemala de Jacobo Arbenz; os militares nacionalistas no Peru. Esses avanços políticos e sociais sofreram intervenções veladas e diretas dos Estados Unidos determinando a sua hegemonia, dos anos 50 até os dias de hoje, do liberalismo e sua cesta-básica de oscilações entre o autoritarismo militar e o de mercado. Os números de mortos do autoritarismo de mercado é estarrecedoramente mais alto, no Brasil, do que no período militar (BATISTA, 2007, p. 7-8). Nesta época não era mais necessário camuflar o medo da “degeneração” que seria a participação popular no governo, conforme observa da citação trazida por Galeano acima, por isto os governantes latino-americanos mudam da feição, de um “pai dos pobres”, para um militar tecnocrata. O padrão repressivo se intensifica, agora sem nenhuma necessidade do líder “iluminado” vestir uma mascara populista, ou “aura romântica”, o compromisso na preservação da ordem e com a manutenção das estruturas sociais não precisa mais ser ocultado. A repressão aos grupos de esquerda durante a ditadura – sendo a defesa contra a subversão o principal lema dos militares para a tomada e a permanência do poder – fez com que cada vez mais se instalasse a ideia do inimigo, que pairava como “fantasma” nos termos de Michel Misse. A criação do estereótipo do guerrilheiro no imaginário popular seguiu a lógica do aumento repressivo não só à criminalidade política, mas também à criminalidade político-criminal, desta forma o discurso da defesa social, paradigma da repressão criminal, se une à lógica da segurança nacional, paradigma da repressão política. Assim, faz com que o controle da criminalidade se torne cada vez mais militarizado, sendo explícita a metáfora da guerra a ser vencida e do inimigo a ser eliminado. A arbitrariedade tradicional da polícia, que inventara o ‘esquadrão da morte’ ainda em meados dos anos 50, se estenderá aos órgãos repressivos da ditadura militar. A tortura e as execuções sumárias tanto de militantes da esquerda armada quanto de criminosos comuns produzirão um fantasma condensado da repressão, envolvendo, talvez pela primeira vez na história da República, os militares e a polícia. A substituição da antiga polícia (civil) de vigilância pela Polícia Militar, nas operações de repressão e policiamento ostensivo, ilustra generalizadamente essa condensação. A extração social dos policiais militares, quase sempre originários das mesmas áreas de pobreza urbana e da mesma filiação étnica que constituíam as ‘classes perigosas’ completará o esboço do novo fantasma em gestação (MISSE, 1999, p. 187). Temos em um capítulo seguinte da história um desmonte dos regimes autoritários na América Latina. A insustentabilidade desta forma de gestão autocrática se daria por vários fatores, na Argentina, por exemplo, a derrota nas Malvinas tem um papel fundamental. Teóricos da transição, entendida esta, dentre as várias acepções que se usa este conceito, como a dissolução de um regime autoritário e a investidura de alguma forma de democracia (O’DONNEL e SCHMITTER, 1988), argumentam que a derrota militar em um contexto internacional seria um ambiente propício a este processo. Também é importante observar a influência da crise do petróleo na década de 70 sobre a economia destes países. Mas é evidente que não se pode atribuir unicamente a estes fatores externos a transição de regimes militares para modelos mais democráticos, como admitem O’Donnel e Schmitter (1988). Assim, mesmo os fracassos militares da Argentina simbolizam perdas em um regime já cambaleante. Esta transição também não se dá de forma unívoca com relação à importância das forças políticas internas. Se é evidente que a abertura política exige elementos de forte participação Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 177 popular, resta claro que no Brasil, por exemplo, “a decisão de liberalizar foi tomada pelo alto escalão, pelo pessoal dominante do regime instalado, diante de uma fraca oposição desorganizada” (O’DONNEL e SCHMITTER, 1988, p. 42). Na Argentina tal processo se deu fortemente influenciado pela presença de poderosas forças de oposição ao governo na própria população. Segundo O’Donnel e Schmitter, o embate entre brandos e duros permaneceu como um jogo de forças determinante neste processo, sendo clara a influência de setores que queriam a perpetuação indeterminada dos regimes autoritários5 , neste processo, muitas vezes minando as iniciativas populares, em um jogo de forças que determinará este momento de transição. Com a derrota do sonho dos “duros” do eterno controle das rédeas dos países latino-americanos por parte de uma elite tecnocrata militarizada, derrota resultante em parte por causa da incompatibilidade entre os interesses da burguesia nacional e a grande intervenção estatal dos regimes militares, pelo clamor popular e pela nova dinâmica do mundo na era do neoliberalismo, começou um processo de redemocratização, em que o discurso dos direitos humanos foi aos poucos tomando fôlego se libertando das amarras deixadas pelo período de autoritarismo.

O Estado de Exceção mundial: o inimigo latino-americano e a guerra às drogas

É certo que ao longo das últimas décadas do século passadohouve grandes avanços em termos de direitos humanos, mesmo que os problemas mais graves ainda restavam por se resolver. Mas dois cenários recentes condensados nestas primeiras décadas do século XXI remodelam o panorama global referente aos direitos humanos, refletindo de forma decisiva também na América Latina. “Referimo-nos em primeiro lugar a medida anti-terror, sobretudo no pós 11 de setembro de 2001, e agora nas respostas produzidas à crise do capitalismo financeiro mundial e à administração dos conflitos nacionais pós-Primavera Árabe” (ABRAÃO e GENRO, 2012, p. 22). No primeiro caso, é obvio que os reflexos podem ser sentidos a nível global, principalmente por que tal situação vem a se opor às conquistas relacionadas aos direitos humanos que se deram pós-segunda guerra, tais conquistas em termos humanitários, onde se inclui a queda dos regimes militares latino americanos, [...] foram abaladas em 2001, com o atentado às Torres Gêmeas de Nova York e a política do governo Bush, nos Estados Unidos. A invasão do Iraque teve para nós como símbolo a morte de Sergio Vieira de Melo, diplomata brasileiro. Diante das ações terroristas e imperialistas, ocorreram os retrocessos em âmbito mundial, com o esvaziamento da Organização das Nações Unidas (ONU) e a redução do papel de sua Comissão de Direitos Humanos (MIRANDA, 2010, p. 116). Em importante livro, onde discuteo papel da criminologia frente às transformações trazidas pelo rumo da história recente, Morrison (2012) traz um importante questionamento ao pensar a criminologia a partir da necessidade de se tornar uma criminologia global, não podendo ignorar o genocídio. Em importante apresentação à esta obra Zaffaroni (2012, p. 2-3), explica o impacto do 11 de Setembro no mundo globalizado: 5 “[...] o núcleo principal da linha dura é formado por aqueles que rejeitam visceralmente os “cânceres” e as “desordens” da democracia que acreditam ter como missão a eliminação de todos os vestígios desta patologia da vida política. Uma vez iniciado um processo de transição, e mesmo antes da democracia ter sido estabelecida, este núcleo de autoritários incondicionais permanecerá como uma fonte renitente de tentativas de golpe e conspiração” (O’Donnel e Schmitter, ibidem, p. 36). Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 178 De esta delimitación parte el autor para destacar la importancia del 11 de Setiembre de 2001, que no depende del número de víctimas, sino de que el espacio civilizado fue invadido por el incivilizado. Esta irrupción tuvo lugar en el corazón de la mayor nación del globo –el Leviatán contemporáneo–, donde imágenes de miedo y riesgos desconocidos reemplazaron a las del moderno espacio civilizado. El World Trade Center, a diferencia del Empire State Building –que es un alarde imperial–, era la representación del mundo funcional y utilitarista de la globalización. Su construcción simbolizó al mismo tiempo un renacimiento de New York, paralelo a la instalación del célebre lema político de la tolerancia cero. El WTC era el máximo exponente de la tecnología y la seguridad. El ataque convirtió de repente en tercer mundo al espacio civilizado. Morrison afirma que muchos desposeídos pudieron lamentar las vidas humanas perdidas, pero gozar del espectáculo de un poder invadido. Tal retrocesso adveio com – a cada vez maior – deslegitimação do discurso dos direitos humanos6 , que perde espaço em prol do discurso de defesa e de segurança global. A necessidade de proteção frente às ameaças terroristas globais e o crescente medo do terror infringido a população servirão de substrato para ações concretas que visavam relativizar direitos civis em prol da segurança e da luta contra o terror. Estava lançado assim o discurso que legitimaria as ações de violação dos direitos civis, como USA PatriotAct7 . O período Bush aprofundou, a partir dos novos temores, a simbiose entre os discursos da guerra e do crime. Ele aponta como os áulicos do fim da história ecoavam na criminologia, desistoricizada e burocratizada, pronta para dar eficiência e efetividade ao controle social do capitalismo de barbárie. Aparece um novo sentido, mais emocional, mais ‘popularizado’ e politizado através de uma nova relação com os meios de comunicação (BATISTA, 2007 p. 7). Destaca Zaffaroni (2012, p. 6), a partir da leitura de Morrison, a impossibilidade de se realizar uma guerra contra o terror e como esta retórica acaba se tornando um fator de legitimação dos horrores genocidas postos em prática pelo medo do terrorismo. A partir desta e de outras categorias discursivas vemos como ocorre a construção das “vítimas que importam” e daquelas que são apenas efeitos colaterais do processo civilizador imposto pelas democracias ocidentais. Assim, ver-se o genocídio camuflado por técnicas de desumanização de determinados sujeitos. Morrison insiste en sus conclusiones en el tema de la confusión entre delito y guerra. Afirma -citando la opinión de un general retirado- que la guerra al terrorismo no es posible, porque el terrorismo no es un enemigo sino una táctica; sería como declarar la guerra a los ataques nocturnos. Pero la confusión se alimenta con el objeto de que las víctimas europeas y americanas sean relevadas y consideradas tales, en tanto que las de los países ocupados o invadidos sean incluidas en los meros daños colaterales. Vuelve en esto la consideración de los salvajes colonizados como seres inferiores. Tais práticas, não diferem em muito das praticadas ao longo da história nas regiões não centrais do capitalismo. Esta forma de controle que ignora os direitos civis, mostra-se contrária à democracia, bem como, partidária de atuações policiais autoritárias, caminha lado a lado com a história da América Latina, como 6 “Sobretudo no pós 11 de setembro, o debate da teoria constitucional e política, que enfrentava a reflexão sobre a crise da democracia, dos países socialistas clássicos e do modelo de Estado, desloca sua preocupação centralmente para a questão da segurança” (ABRAÃO e GENRO, 2012, p. 26). 7 “Criado pela Doutrina Bush, pós o 11 de Setembro, o USA PatriotiAct autorizou serviços de polícia e de informação a praticarem, com baixo controle judicial, escutas e inquéritos secretos, vigilância de comunicações telefônicas e de redes municipais de computadores e, ainda, partilharem as informações obtidas. No Reino Unido, o UK TerrorismAct cumpriu o mesmo papel, embora com menor intensidade” (ABRAÃO e GENRO, 2012 p. 26). Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 179 podemos observar ao longo deste trabalho. A inovação é que agora tais atuações se encontrariam legitimadas inclusive nos países centrais8 , onde a retórica do Estado na modernidade legitimava-se através justamente da defesa dos direitos civis frente aos desmandos autoritários. Neste sentido, para a defesa da segurança, justifica-se a atuação repressiva cada vez maior dos Estados no enfrentamento a seus inimigos9 . Assim, o que é provisório acaba se tornando permanente, e seguindo o pensamento de Giorgio Agamben (2004), estas respostas políticas autoritárias ao problema do terror, acabam fazendo com que o Estado de Exceção deixe de ser a exceção para, cada vez mais, se tornar regra de atuação da maior parte dos Estados. Logo, seguindo a lógica da desumanização, A identificação das organizações dissidentes (domésticas ou internacionais) como problema penal, sobretudo aquelas cuja atuação é estruturada na utilização de métodos terroristas, tem levado a construção de novos discursos defensivistas. Fundado em premissas análogas às quais objetiva combater, a resposta punitiva para a repressão de grupos terroristas é forjada a partir de equinanime direito penal do terror A máxima da nova configuração da política criminal autoritária contemporânea parece ser contra o terror das organizações criminosas o terror do Estado (CARVALHO, 2013, p. 146). Para a configuração deste Estado de Exceção é necessário uma teoria que legitime tal prática de controle social, um novo modelo de Estado autoritário necessitaria, como ferramenta, de um novo modelo de Direito Penal autoritário. Surge assim a formulação teórica do jurista alemãoJakobs, chamada Direito Penal do Inimigo. Segundo esta concepção deveria haver uma divisão entre o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo10. Para estes integrantes do pacto social, envolvidos em eventual prática delitiva estariam resguardados os direitos e garantias inerentes à formulação normativa da modernidade, notadamente dos postulados de legalidade e de jurisdicionalidade. O cidadão, desde este ponto de vista, seria aquele indivíduo que, mesmo tendo cometido erro, oferece garantia mínima de comportamentos relacionados à manutenção da vigência das normas. Contra os cidadãos infratores a pena se apresentará como resposta desautorizadora do fato, procurando restabelecer a confiança social na estabilidade da lei (penal) (CARVALHO, 2013 p. 147). Assim, para o cidadão a pena teria uma função sistêmica de afirmação de valores positivos do ordenamento, sendo pra ele assegurados todos os direitos e garantias da própria sociedade. Entretanto para os ditos inimigos é permitido a flexibilização de tais garantias e a desconsideração de sua personalidade em prol da segurança e da guerra contra os males destes indivíduos perigosos. Não se admitiria que os benefícios da 8 “Estas medidas não são novas e replicam a ideologia da segurança nacional que foram utilizadas pelas ditaduras latino-americanas, estimuladas e apoiadas pelo governo dos EUA, para combater a expansão do pensamento socialista durante a guerra fria. Esta ideologia justificou as atrocidades cometidas no campo das liberdades e dos direitos civis e políticos, e seus resultados alvitantes foram milhares de execuçõessumárias, mortes, desaparecimento forçado de cidadãos, torturas, perseguições políticas a sindicalista e trabalhadores, monitoramentos ilegais das vidas das pessoas, banimentos, abusos sexuais e massacres contra populações civis” (ABRAÃO e GENRO, 2012, p. 22). 9 “Quando, na cena pública moderna, a segurança passa a proteger fundamentalmente o capital e não a vida, germina ai uma dinâmica desumanizante, que principalmente instrumentaliza a pessoa, enquanto meio de acumulação . Esta instrumentalização lança as bases que, em nossa conjuntura atual, permitem dar falsa racionalidade as teses pelas quais o indivíduo pode ser violado em nome da garantia da ordem” (ABRAÃO e GENRO, p. 26). 10 Há de se ressaltar que a proposta de Jakobs, como lembra Zaffaroni, tinha na verdade o objetivo de conter o avanço do poder punitivo que já havia se mostrado forte no momento da formulação desta teoria. Assim, para conter o avanço autoritário que se dava no Direito Penal como um todo e focá-lo apenas em um inimigo, estritamente delimitado, é que Jakobs formula sua teoria. Tal pretensão, como lembrou Zaffaroni, se mostra ingênua, pois confia excessivamente na idéia de que uma vez excepcionadas as garantias fundamentais o poder punitivo poderia ser limitado a se direcionar apenas contra determinados inimigos. Assim, o poder punitivo sem os limites impostos pelos direitos fundamentais tende sempre a expansão o que indicaria a constante expansão do conceito de inimigo (ZAFFARONI, 2007). Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 180 sociedade democrática fossem estendidos aos inimigos desta sociedade, fazendo com que aquele que atenta contra o pacto social, não tenha direito de usar os benefícios oferecidos por ele. Quem por princípio se conduz de modo desviado, não oferece garantia de um comportamento pessoal. Por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu direito à segurança; mas diferentemente da pena, não é Direito também a respeito daquele que é apenado; ao contrário o inimigo é excluído (JACKOBS, 2007 p. 49). Tal fato iria se refletir também na América Latina, agravando ainda mais a crise de baixa efetividade dos direitos humanos nos países latino-americanos. Mas acabaria também se adequando a realidade própria desta região, como é possível observar a importação dos discursos jurídico-penais acabam ganhando um contorno bem diferente em regiões com maiores divisões sociais e à margem dos grandes polos concentradores do capital mundial. Aqui difere dos países centrais, pois, a presença de ataques terroristas não é algo tão frequente quanto nos países centrais. Esta teoria que a princípio se dedicava a combater o terrorismo acaba alargando o conceito de inimigo, repercutindo também na designação do inimigo na América Latina. A inevitável ampliação do conceito de inimigo, ao ultrapassar o marco dos integrantes de grupos terroristas para agregar as demais organizações criminosas, fornece condições de expansão das malhas de punitividadea partir da radical ruptura com os sistemas de garantias constitucionais. A beligerância do discurso penal do inimigo recoloca as ações de desrespeito à legalidade penal e as ilegalidades toleradas contra os direitos individuais exercidas pelas agências repressivas(direito penal subterrâneo) do plano fático ao discurso de legitimação. Abre espaço portanto para a justificação do terrorismo de Estado (direito penal do terror) através da aplicação do direito penal do inimigo (CARVALHO, 2013, p. 151). Assim como os modelos de controle aqui se deram mais no sentido de contenção lombrosiana do que de disciplinamento, como pregou Zaffaroni, estabelecendo uma relação bem diferente entre o biopoder e o poder disciplinar do que tivemos nos países centrais, aqui também o discurso penal do inimigo ganhará suas próprias especificidades. O inimigo na América Latina, que bebeu da fonte da Ideologia da Defesa Social e se constituiu de forma também bem peculiar, durante a vigência da Ideologia da Segurança Nacional própria dos regimes militares, se aprimorando em um contexto de maior demanda por punição e expansão penal na recepção de um fenômeno chamado de autoritarismo cool (ZAFFARONI, 2007), capitaneado pelos Movimentos Lei de Ordem no pós-transição democrática. Aqui o inimigo será identificado como o traficante, que figurará muitas vezes próximo do estereótipo do narcoguerrilheiro.11 Rosa Del Olmo (1990) destaca os fundamentos discursivos do proibicionismo às drogas. Assim, ao descortinar a face oculta das drogas, a referida autora destaca os vários discursos fundamentadores da proibição das drogas estruturados sob os primados discursivos éticos, médicos, jurídicos e políticos. Em especial, revela o discurso jurídico-político transnacional, onde a guerra às drogas é utilizada como arma geopolítica contra a América Latina continente produtor de cocaína que estava contaminado os EUA pela popularização do uso durante a década de 80. Este discurso esconde o interesse econômico de tentar barrar o escoamento de dólares dos EUA através do mercado da coca. A partir dele será constituído um discurso de demonização dos “narcotraficantes”. 11 “À medida que se aproximava a queda do muro de Berlim, tornou-se necessário eleger outro inimigo para justificar a alucinação de uma nova guerra e manter níveis repressivos elevados. Por isto reforçou-se a guerra às drogas” (ZAFFARONI, 2007, p. 51) Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 181 Como a atenção está dirigida ao exterior, a ênfase do discurso recai sobre a oferta, e concretamente sobre o tráfico de drogas produzidas fora dos Estados Unidos, ou seja, maconha, heroína ou cocaína, mas fundamentalmente esta última (por razões econômicas assim como sociais, se nos lembrarmos de quem as consome). Para legitimar o discurso e dar mais força à imagem do ‘inimigo externo’, já não se fala das ‘drogas’, mas se resgatará o termo inglês Narcotics utilizado quando se associava a droga aos opiáceos e à cocaína, adaptando-o à época atual. Isto explica o fato de os meios de comunicação, em seu discurso, terem se encarregado de difundir em âmbito continental os termos narcotráfico para qualificar o inimigo em seu aspecto econômico, e narcoterrorismo em seu aspecto político. E que, posteriormente, a todas as palavras relacionadas ao tema das drogas na década de oitenta se acrescente o prefixo narco, por exemplo, narcodólar, narcoeconomia, narcoestado, narcomilitar, narcosubversivo, narcomania e recentemente narcocontas (OLMO, 1990, p. 68-69). A necessidade de recrudescimento penal, tendo como motor a guerra às drogas, será um discurso exportado pelos EUA. Também a estruturação deste discurso punitivo significava mudanças em sua própria política criminal interna, que vinham se desenvolvendo já há algum tempo. Esta política de recrudescimento penal será responsável pelo desmonte do Estado Social e constituição do Estado Penal nos EUA, conforme demonstra os trabalhos de Wacquant. Neste ponto, o caráter racista destas mudanças seria extremamente perceptível ao se analisar as pessoas criminalizadas em virtude da repressão às drogas. O fosso entre negros e brancos aprofundou-se muito no curso da década passada, ao ponto que em 1993 a taxa de encarceramento dos afroamericanos fosse mais de dez vezes superior àquela de seus compatriotas de origem européia (1 947 contra 306 por 100 000). Mas, sobretudo, o ‘escurecimento’ sofrido pela população carcerária explica-se quase que inteiramente pela política de ‘guerra às drogas’ lançada com estardalhaço por Ronald Reagan e ampliada depois por seus sucessores (TONRY, 1995). Essa política serviu de cobertura a uma verdadeira guerrilha policial e judiciária contra os traficantes de rua e, por extensão, contra os habitantes dos bairros negros deserdados (WACQUANT, 1999, p. 47). Neste sentido, se insere no projeto de um controle social dos mais pobres, na lógica da gestão aleatória dos riscos sociais, conforme aponta Simon e Feeley (2003), potencializando assim o processo de criminalização da pobreza. Concorda com esta análise Santoro (2002), em artigo importante sobre a criminologia atuarial, bem como, Dieter (2013) em profundo trabalho sobre o tema. Wacquant (1999), contextualiza tais mudanças no projeto mais amplo de criminalização da pobreza como estratégia de controle social. Forçosamente, é preciso portanto concluir que a ‘guerra às drogas’ traduz bem a vontade de penalizar a pobreza e conter o cortejo das ‘patologias’ que lhe são associadas, seja no seio do gueto, seja, quando elas transbordam seu perímetro, nas prisões que lhe são de agora em diante simbioticamente reunidas. Além disso, o acoplamento funcional entre o aparelho penal e o gueto negro inscreve-se na prática de uma ‘nova penalogia’, cujo objetivo não é mais o de prevenir o crime, nem de reinserir os delinquentes na sociedade, uma vez purgada a pena, mas isolar os grupos percebidos como perigosos e neutralizar seus membros mais rebeldes (disruptifs) por uma gestão aleatória dos riscos (SIMON e FEELEY, 1995; WACQUANT, 1999, p. 47). Junta-se a figura do inimigo político com o inimigo político criminal, dar-se assim a nova roupagem do velho fantasma provocador de medo capaz de fundamentar a estruturação de um controle repressivo militarizado da Segurança Pública mesmo após o fim do regime militar. Desta forma, como estratégia política de contenção das classes populares inauguram-se novos inimigos em nosso continente, aproveitando muito das Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 182 antigas estratégias repressivas precedentes, bem como, do pânico moral. Deste modo, o sistema proibicionista às drogas que ditará o inimigo latino americano: o traficante. Assim, a guerra às drogas no Brasil se edificará sobre o tripé ideológico da Ideologia da Defesa Social, da Segurança Nacional e dos Movimentos Lei e Ordem (CARVALHO, 2013). Vemos como Salo de Carvalho demonstra que estes discursos criminológicos foram importados do centro para as margens do capitalismo e acolhidos acriticamente em nossa realidade latinoamericana. A estruturação do sistema penal em muito se deu a partir de discursos advindos dos Estados Unidos, importante produtor discursivo em termos repressivos. Observa-se, portanto, a influência norte-americana na estruturação das políticas de drogas na América Latina, desde a guerra às drogas de Ronald Reagan. Sendo a realidade do sistema de justiça penal nos EUA de forte caráter racista (SIMON, 2011)12, não é de se estranhar que a recepção desta guerra às drogas tenha se convertido no mais importante mecanismo de extermínio das juventudes negras, pobres e periféricas no Brasil. Há de se ressaltar que com a redemocratização o paradigma da Segurança Nacional vai se transformar em paradigma da Segurança Pública, que apesar das peculiaridades, irá manter a lógica militarizada e repressora características de um estado de exceção e conforme observa Batista (2003) houve um incremento punitivo às juventudes pobres criminalizadas no pós-transição. A ressignificação do inimigo, não apenas como meta-regra, mas alçada a signo oficial de interpretação e aplicação do direito penal, entra em sintonia com projetos político criminal de beligerância. Nos países periféricos latino americanos, em face das inconsistências da percepção do fenômeno terrorista, a criminalidade organizada do narcotráfico abre espaço para a recepção do estigma legitimador do direito penal de emergência (CARVALHOR, 2013, p. 159). Tal situação é extremamente preocupante, em um continente que mantém no exercício do controle social um histórico de violações aos direitos humanos e onde os preceitos legais da modernidade iluminista jamais se efetivaram de forma plena na realidade fática, servindo como meros adornos jurídicos irrealizáveis. O controle penal que se exerce de forma subterrâneo e à margem da legalidade13, acaba sendo legitimado com a recepção do Direito Penal do Inimigo. As leis de drogas aprovadas na América Latina, sob a influência do paradigma proibicionista da guerra às drogas, importado dos EUA, se caracterizam por serem leis de exceção, própria de um sistema penal impregnado com a ideia do inimigo. Estas leis que em sua maioria permanecem em vigor, violaram o principio da legalidade, multiplicaram verbos conforme a tática legislativa norte-americana, associaram participação e autoria, tentativa, preparação e consumação, desconheceram o principio da ofensividade,violaram a autonomia moral das pessoas, apenaram enfermos e tóxico-dependentes. No âmbito processual, foram criados tribunais especiais, introduzidos elementos inquisitoriais como o prêmio ao delator, a valorização do espião, do agente provocador, das testemunhas anônimas, dos juízes e fiscais anônimos etc. Estabeleceu-se uma aberrante legislação penal autoritária, que poucos se animaram em denunciar, ameaçados de ser acusados de partícipes e encobridores do narcotráfico ou de ser presos, ao melhor estilo inquisitorial, o que aconteceu inclusive com magistrados, fiscais e acadêmicos (ZAFFARONI, 2007, p. 52). 12 “The huge scale and racial disproportionality of America’s prison population seem an increasing problem for the nation, an embarrassment in the eyes of a world quite interested in our penal practices generally. Indeed, for perhaps the first time in our history, our penal system is clearly a good deal more racist than the society it purports to represent” (SIMON, 2011, p. 133). 13 “Aqui, na periferia, a lógica da punição é simbiótica com uma lógica genocida e vigora um complexa interação entre controle penal formal e informal, entre público e privado, entre sistema penal oficial (pena pública de prisão e perda da liberdade) e subterrâneo(pena privada de morte e perda da vida), entre a lógica da seletividade estigmatizante e a lógica da tortura e do estermínio, a qual transborda as dores do aprisionamento para ancorar na própria eliminação humana sobretudo dos sujeitos que não tem lugar no mundo, os do “lugar do negro” (ANDRADE, 2012, p. 116). Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 183 Este inimigo seria um inimigo difuso, pois espalhado pelas zonas pobres da cidade. Deste modo, vai gerar um modelo penal genocida, racista e segregador, que vai encontrar na guerra às drogas o principal mecanismo repressivo, fundamentado agora em um discurso jurídico de emergência, que eliminará as formas tradicionais de controle legal e judicial, em nome da segurança publica, acentuando também um controle social à margem da legalidade chamado de “sistema penal subterrâneo”, de natureza genocida e que se expressa através da eliminação física dos ditos perigosos, que funciona sob um “sistema penal aparente”, de natureza liberal e que se expressa sobre a lógica penitenciária. Se é realmente necessária, para garantir a segurança, a cisão do Direito Penal com o estabelecimento de diferentes formas de atuação para os cidadãos e os não cidadãos (inimigos), e, em sendo a cidadania na América Latina status de difícil atingimento, ou seja, condição de poucos privilegiados, importante interrogante deve ser enfrentado: se não estaria sendo relegado ao grande contingente populacional latino americano o papel de incômodos a eliminar pela força bélica das agências depunitividade? (CARVALHO, 2013, p. 160). A questão acima proposta por Salo de Carvalho, parece permear o pensamento também de Zaffarone (2007; 2001), e parece ter uma resposta bem clara. Ao longo deste trabalho foi possível observar como o controle penal foi exercido de forma a sempre ignorar a legalidade e os marcos iluministas em nosso continente, pois sendo a colônia uma grande instituição de sequestro, e sendo o controle penal destinado contenção da maioria da população, para proteger os privilégios de uma minoria detentora do poder político e econômico, resta claro que este modelo de controle punitivo se destina à regular as grandes massas latino americanas. Constitui-se a política repressiva às drogas como um mecanismo muito útil neste sentido. Assim, observa-se que o punitivismo torna-se uma metarregra de atuação das agências punitivas em nosso continente (CARVALHO, 2013). A resposta ao questionamento acima parece se esclarecer, aos olhos do formulador, com a descrição de nossa política de drogas por Nilo Batista (apud CARVALHO, 2013): “uma política criminal de drogas com derramamento de sangue”. A América Latina já elegeu seu inimigo! Os inimigos na América Latina estariam difusos, espalhados por todos os territórios nacionais, distribuídos em favelas e zonas pobres.14 O tráfico seria eleito o inimigo que justificaria a intervenção policial nos guetos sem respeito às liberdades civis e aos direitos humanos, estes considerados entraves na defesa dos “humanos direitos” que clamam por segurança frente aos “corruptores” que “degenerariam” a nação. O proibicionismo e sua guerra às drogas servem como um importante dispositivo de controle dos mais pobres e das classes mais marginalizadas, dos “inúteis” à civilização. Esta lógica, repressiva e desumanizante, reforçará o controle social penal subterrâneo à margem da legalidade, sendo esta legalidade, assim como os direitos humanos acima referidos, obstáculos a serem superados na luta conta os grandes traficantes desestabilizadores da ordem, eleitos inimigos políticos. Destes, os grandes traficantes, só poderíamos esperar uma prisão eventual, pois gozam de presença nos autos escalões legais e empresariais, entretanto os pequenos traficantes, consumidores classificados como traficantes, soldados, mulas, aviões e demais integrantes deste heterogêneo mercado ilegal, serão aqueles que irão lotar as penitenciárias dos países latino-americanos, ou serão mortos na atuação repressiva. A ausência do respeito à legalidade, justificada, pela nova realidade global, com o discurso do Direito 14 “De fato, em sociedades latino-americanas como a brasileira, com uma secular tradição de maus-tratos, tortura e extermínio (crueldade) como tecnologia punitiva e mecanismo de controle social, os corpos sobretudo de pobres e mestiços, indígenas e negros (antes das tribos, campos e senzalas, e depois das favelas), das marginalizadas e conflitivas periferias urbanas ou zonas rurais, ainda que jovens e até infantis, nunca saíram de cena como objeto de punição. Ainda quando a pena é declaradapúblico-estatal, subterraneamente se perpetua a pena privada, por meio do exercício arbitrário de poder, por atores e em espaços privatizados e domesticados, completamente subtraída do controle publicamente declarado” (ANDRADE, 2012, p. 107). Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 184 Penal do Inimigo, ampliará o já excludente e desumano controle social punitivo na região da América Latina. Estes dispositivos de exceção, justificados pela necessidade de guerra às drogas, serão aperfeiçoados na prática para um controle mais eficaz da criminalidade geral, então ver-se que será apenas questão de tempo para que se aproveitem tais dispositivos em outras modalidades repressivas, mormente à “criminalidade organizada”. Assim, vemos a justificação perfeita para a ampliação do poder punitivo sobre outras formas de manifestação popular capitaneada pelo medo do tráfico de drogas. Perpetua-se, assim, um histórico de controle político das classes menos favorecidas a partir de dispositivos de exceção, cuja retórica renovada esconde velhas raízes.

Conclusão

Pode-se observar ao longo deste estudo a difícil relação entre o controle social na América Latina e os primados da modernidade iluminista. O controle penal exercido em nossa região, difere-se daquele praticado sobre as classes inferiores nos países centrais. A dinâmica das condições constitutivas da realidade social latino-americana faz com que o sistema penal sempre tenha se baseado em ações pouco limitadas pela lei e pelos primados das declarações de direitos. A modernidade que disciplinou os países centrais, acabou desenvolvendo uma forma de controle peculiar nas margens do capitalismo, pois destinada não a disciplinamento de uma minoria perigosa, mas sim contenção da maioria da população. Desenvolvem-se formas de controle lombrosiano, destinado a controlar a grande maioria da população. Paralelamente ao desenvolvimento do biopoder, o controle social latino americano, racista e lombrosiano, tem o claro objetivo de contenção das classes tidas como “degeneradas”. A perseguição às maltas de capoeira, aos grupos subversivos, aos levantes populares, aos movimentos sociais, à criminalidade das classes mais pobres e ao varejo de drogas temcomo ferramenta o medo que paira como um fantasma social, sempre assombrando, e que ganhara diferentes formas a depender do contexto. Deste modo, são exemplos claros de como o controle social em nossa região sempre se exerceu sob a lógica da repressão a um inimigo que desperta o medo e põe em risco a ordem, sendo necessário um poder policial forte para eliminar os perigos da “degeneração” e da subversão. Ocorre que este controle à margem da legalidade, característico da nossa região latino-americana, hoje, com a ameaça do terrorismo global e em meio às medidas da doutrina Bush, acaba sendo uma realidade até mesmo nos países centrais. Com o Estado de Exceção se tornando regra, o modelo de controle social vai incorporando gradualmente a lógica do inimigo no combate a criminalidade e ao terrorismo. Traçam-se os inimigos e declara-se a guerra, fazendo com que sobre eles caia o peso de um Direito Penal sem qualquer respeito aos direitos humanos e às garantias fundamentais: um Direito Penal do Inimigo. A recepção deste postulado teórico por parte dos países da nossa realidade latino-americana vai agravar ainda mais o já desumano controle social penal latino-americano. Ao chegar à América Latina, este discurso – em virtude de por aqui não ser tão perceptível o fenômeno do terrorismo – vai acabar se transmutando para ser um instrumento de combate aos grupos de criminalidade convencional, em especial aos traficantes de drogas. O tráfico será eleito como o inimigo na América latina e a guerra às drogas como a forma de eliminar este inimigo que corrompe a juventude e ameaça a segurança pública em nossa região. Logo, o controle social penal se armará de instrumentos desumanos na luta proibicionista contra as drogas, instrumentos estes que serão aproveitados em outras formas de repressão às classes populares, aos movimentos sociais e a todos aqueles que forem classificados como inimigos desta nova ordem. Ocorre assim, a relativização dos direitos humanos em um controle social à margem da legalidade que vai ser característica sempre presente na atuação repressiva às drogas em nossa região. Desta forma, a política de drogas em nossa margem latino americana do capitalismo se torna uma“política criminal com derramamento Oliveira, L. L. A criminalização da pobreza na América Latina ... Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 168-186, jul.-dez. 2016 185 de sangue”, reafirmando o estado de exceção permanente em nosso continente. O proibicionismo às drogas vem a se somar na acumulação da repressão penal às classes populares em nossa realidade latino-americana.

Referências

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