Criminologia e Alteridade: O Problema da Criminalização dos Movimentos Sociais no Brasil


Porwilliammoura- Postado em 14 dezembro 2011

Autores: 
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da

 

Criminologia e Alteridade: O Problema da Criminalização dos Movimentos Sociais no Brasil *

 

José Carlos Moreira da Silva Filho

 

Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC ; Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB; Professor do Programa de Pós-graduação em Direito e da Graduação emDireito da UNISINOS; Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

1. A questão da alteridade; 2. A fuga social da auto-incriminação; 3. Cidadania e novos direitos; 4. Os novos movimentos sociais e a afirmação de direitos; 5. A criminalização dos Movimentos Sociais no Brasil; 6. Considerações Finais


 

RESUMO

A criminalização dos movimentos sociais é um reflexo da dificuldade em se aceitar os limites existenciais, revelando a arrogância do logos ocidental e a negação da alteridade. A tendência criminalizadora da sociedade apóia-se na fuga da auto-incriminação, optando-se por projetar suas próprias falhas no outro, no diferente, transformando-o, assim, em inimigo a ser eliminado e combatido.

PALAVRAS-CHAVE

Criminalização dos Movimentos Sociais; Alteridade; Criminologia; Cidadania.

1. A questão da alteridade

Com rara inspiração e aprumo das palavras o Prof. Ricardo Timm acaba de nos mostrar que a pretensão de onipotência do logos no Ocidente pode ser pervertida em sua própria raiz. Afinal, foi isto que ele acabou de fazer: usou o logos para denunciar os limites do próprio logos. Talvez em nenhum outro momento da história do pensamento ocidental estiveram tão às claras os modestos limites do discurso racional. Com a fenomenologia, a razão deu lugar à anterioridade da existência, do pré-reflexivo, do outro.

É patente que se quisermos de fato avançar no auto-conhecimento devemos recuar nas pretensões de controle e totalidade, visto que conhecer-se é, cada vez mais, ter ciência de sua posição, perceber aquilo que ultrapassa, que surpreende e que não pode ser apreendido ou representado. Como disse o Prof. Timm, é preciso sofrer o trauma do limite, é preciso não substituir a coisa pelo conceito, é preciso não se amortecer pela representação. Tudo isto é muito difícil para nós, pois somos muito “logocêntricos”, como bem assinalado. A consciência da nossa finitude e historicidade é algo indispensável nessa busca de auto-conhecimento. Quando nos damos conta do caráter não originário e não instaurador da nossa consciência, é possível ver e sentir uma alteridade diante de si mesmo. Vemos claramente que não somos totalmente responsáveis por quem somos, não escolhemos nossas possibilidades iniciais, desde sempre já temos um mundo. Além disso, notamos também, por mais que tentemos evitar, que a morte um dia vai chegar, e que isto dá um caráter todo especial e decisivo às nossas escolhas. O logos não pode representar isto, apenas indicá-lo.

Como já disse Hannah Arendt, a mortalidade humana coloca em destaque, mais do que a espécie, o próprio indivíduo em sua única e irrepetível história vital. O que dizer então dos outros homens e mulheres, de quem nós viemos e com e para quem vamos? O único modo de fazer jus ao caráter original e fundante do outro é não pretender aprisioná-lo na representação, é manter-se aberto, a cada momento, à sua incomensurabilidade. Esta consciência radical é aquela que se sustenta existencialmente, a cada instante, e que nunca pode se dar como completa. Aqui não satisfaz a noção de identidade fechada em si mesma, mas sim de um constante processo de manutenção de si na abertura do outro.

2. A fuga social da auto-incriminação

Ora, se tudo isto é dito e pensado, em um primeiro momento, no plano filosófico, é no plano político e das concretas relações humanas que podemos colher suas conseqüências. Denunciados os limites da razão, denunciado o potencial destrutivo e antiecológico da técnica e da sociedade industrial, denunciado o abissal fosso (nunca antes tão profundo) que separa os miseráveis dos não-miseráveis, vivemos, paradoxalmente, uma era de esquecimento. Um esquecimento autorizado, antes de mais nada, pelo cinismo. Trata-se de uma escolha ética que se deve fazer entre um crescente globalitarismo, para utilizar a expressão cunhada por Milton Santos, e o compromisso teórico e prático com a possibilidade de um outro mundo.

Acenar para as possibilidades da sociedade que colidem com o padrão capitalista neoliberal não é fácil, pois ao fazer isto, estamos de certo modo nos auto-incriminando. E, como disse o Prof. Timm, não suportamos isto, a saída mais fácil, segura e cômoda é criminalizar o outro, é criar um inimigo social, que representa tudo que há de inaceitável em nós mesmos. É como se nos purificássemos com a morte dos inocentes, dos que são culpados pelos nossos próprios crimes.

Quem é o comunista perseguido pelas ditaduras militares latino-americanas senão aquele que denuncia a injustiça social? Quem é o terrorista senão aquele que denuncia a brutalidade das instituições públicas e a falência das instituições democráticas governamentais ? Quem é o fundamentalista senão aquele que denuncia o fundamentalismo da razão e da ciência? Quem é o índio senão aquele que denuncia a destruição da natureza e da própria espécie humana? Quem é o pobre senão aquele que denuncia os privilégios de poucos? Quem é o negro senão aquele que denuncia nosso passado e presente escravistas? Quem é o sem-terra senão aquele que denuncia a existência do latifúndio? Quem é o traficante senão aquele que denuncia a paz armada que sustenta o mundo e os nossos próprios vícios? Quem é o criminoso senão aquele que denuncia a violência e a transgressão que há em todos nós? E assim vemos tudo aquilo que nos parece ser uma alternativa ao discurso oficial e monocórdico exibido na mídia (já notaram que todas as notícias de jornal se repetem assustadoramente em diferentes veículos de comunicação?) ser transformado em crime ou irresponsabilidade.

Sintomática nesse sentido é a criminalização dos movimentos sociais e dos que militam na causa dos Direitos Humanos. Afinal, o maior criminoso de todos é justamente aquele que diz com todas as letras as nossas falhas, mazelas e defeitos. É inadmissível que alguém nos jogue na cara aquilo que não queremos admitir, que alguém escancare as portas da alteridade e nos imponha esfinges nas encruzilhadas das ruas de nossa sociedade, esfinges que nos lançam o desafio de escutar o que não ouvimos, de abrirmo-nos à possibilidade de outras culturas, outros saberes, outras realidades, que coloquem a nu nossos modestos limites cognitivos e nossa responsabilidade diante da negação do outro.

3. Cidadania e novos direitos

Antes de adentrarmos na questão específica da criminalização dos movimentos sociais, é importante que façamos uma reflexão conceitual e contextual a respeito da emergência desses movimentos no contexto democrático moderno, procurando identificar o seu papel dentro da própria discussão do exercício e do conceito de cidadania, o que nos permitirá perceber com ainda maior clareza o equívoco em tratar desse assunto com os filtros do direito penal.

Normalmente, nos compêndios de Teoria Geral do Estado e de Direito Constitucional, a cidadania aponta tanto para a noção de cidadania em sentido amplo, identificada com a nacionalidade (em que o uso do termo “povo” remete a um dos elementos que compõe o Estado, significando tão-somente aqueles que nasceram no país ou descendem de pessoas que aí nasceram), como para a de cidadania ativa, exercida pelos que detêm direitos políticos, ou seja, o corpo eleitoral. Assim, a cidadania aparece no Direito apenas como construção normativa. O seu significado não é buscado em outros ramos do conhecimento. É vista como uma categoria estática, um vínculo absolutamente unilateral, desprovido de qualquer poder instituinte. É um conceito autoritário, pois esvazia a historicidade inerente à noção de cidadania e à sua ampliação no espaço político, bem como reduz a complexidade do fenômeno, obstaculizando, até mesmo, os seus componentes democráticos plurais.

Por trás da cultura jurídica dominante existe uma base paradigmática composta por uma matriz epistemológica onde o juspositivismo tem presença destacada e por uma matriz político-ideológica liberal. Dessa forma, tais bases se encontram, igualmente, na sustentação do conceito jurídico de cidadania. A presença do positivismo é evidenciada pela definição normativa constitucional dada à cidadania. E o liberalismo é visto na ênfase dada aos direitos políticos. Nesse ponto, é preciso afirmar que o direito de votar e ser votado não é algo desprezível, muito pelo contrário; contudo, restringir o conceito de cidadania apenas a essa dimensão é ideologizá-lo. Do liberalismo também se herdou a cisão absoluta entre Estado e sociedade civil, com a atribuição de papéis específicos e incomunicáveis a cada um dos pólos.

Visualizar a sociedade apenas no seu âmbito privado e econômico é despolitizá-la. Ela se insere no público não pela sua própria natureza de potencialidade instituinte e fundante desse espaço, mas sim sob a tutela de parâmetros predefinidos pelo Estado. E o Direito, nesse sentido, funciona como a instrumentalização institucional da ação estatal. Todavia, embora tenha o políticoestatal como matriz, o Direito tem uma complexidade própria que aponta tanto para a sedimentação de relações e estruturas conservadoras, como para perspectivas políticas de luta (seja na oposição ao Estado autoritário, seja na materialização de direitos sociais).

Assim, da oposição entre indivíduo e Estado chega-se facilmente à oposição entre cidadão e Estado, o que implica a incidência do princípio democrático sobre o liberal, entendendo-se que a melhor forma de limitar o poder do tirano (liberdade negativa), para que possa haver a obtenção de um bem-estar comum no livre desenvolvimento do mercado, ou da vida privada (liberdade positiva), é possibilitar a participação de quem está diretamente interessado nessa limitação: o cidadão. Logo, o exercício da cidadania civil acaba por ser melhor viabilizado por meio da cidadania política, e esta só pode ser exercida observando-se aquela.

Contudo, o indivíduo é uma categoria, na cidadania política, com autonomia referente a si e não ao grupo ou à classe social ao qual pertence. Eis por que a cidadania política é restrita e permitida apenas por intermédio da representação, de modo a não ferir a separação entre o público e o privado, pois politizando ou socializando o espaço privado, dilui-se tal dicotomia.

Na visão liberal, portanto, a demanda pela cidadania não é algo que surge espontaneamente na sociedade, sendo direcionada pelo poder político. Ela não é concebida como um fim em si mesma, mas sim como meio para atingir um consenso regular, visando à legitimação do poder político. A partir do momento em que há a universalização do sufrágio, a cidadania, na perspectiva liberal-democrática, torna-se plena.

A identificação da cidadania política plena como o elemento fundante da democracia representativa, na medida em que esgota o conceito de participação da sociedade no espaço público, revela-se uma das principais causas da própria crise do sistema representativo. Tal cidadania, apesar de oferecer visíveis canais de contestação ao poder político instituído, figura, em última instância, como uma concessão do Estado, como um espaço por ele criado e regulado. Sua função precípua é legitimar a dominação política e social do capitalismo.

Isso sem falar que, principalmente em países periféricos, onde boa parte dos eleitores se encontra enfraquecida pela sua situação de exclusão social (o que inclui a ausência de educação básica), a manipulação eleitoral realizada por aqueles que detêm maior poderio econômico revela-se uma realidade incontestável. Urge, portanto, ampliar o conceito de cidadania, situando na sociedade a sua criação e regulação.

O discurso da cidadania herdado do liberalismo, portanto, baseia-se na igualdade abstrata entre os indivíduos que compõem a sociedade. Ao figurar como fundamento do Estado capitalista, a igualdade abstrata exerce a função de ocultamento das relações de exploração no seio da sociedade, bem como das diferenças positivas nela afirmadas. Assim, a ação coercitiva do Estado, quando empregada, não é vista como uma atitude em prol de uma dominação, mas sim como a legítima exigência de sujeitos juridicamente iguais que contrataram livremente o que está no Direito.

A cidadania, dessa feita, reveste-se de um caráter estratificado, pois o próprio ordenamento jurídico estipula direitos assimétricos, reproduzindo a divisão social do trabalho. Discriminando certa parcela da população, a cidadania legal dá lugar à criação de outra cidadania, que postula e exige novos direitos.

Atente-se, enfim, para a existência de uma grande ambigüidade no discurso da cidadania, que tanto pode ser enunciada autoritária como democraticamente. Eis por que não pode ser um discurso monolítico e estático, constituindo, acima de tudo, um processo histórico e dialético.

O sentido autoritário do discurso da cidadania é aquele que se concretiza como sendo o único, neutralizando os seus elementos políticos e as contradições que traz em seu bojo. Admite apenas a significação normativa. O sentido democrático, por sua vez, é aquele que é formado com base na aceitação do conflito como seu elemento fundante e da abertura para o reconhecimento de novos direitos. Sempre que se trata do reconhecimento e da concretização de direitos, vem à baila o papel preponderante da instância judicial. Na América Latina, o Judiciário, além de não ter o seu papel reorientado, em face de uma noção mais ampla de cidadania, é ineficiente, submisso, dependente, com perfil fortemente conservador, lento, com excessiva ritualização burocrática e sem recursos materiais e humanos suficientes, o que já é reflexo da própria crise estatal. Contudo, o problema preponderante não é o seu desaparelhamento (o que seria apenas uma disfunção), mas sim a dificuldade de compreensão da sociedade atual e de seus conflitos, gerada por uma visão jurídica arraigada em uma tradição ultrapassada, isso sem falar na má vontade política de democratização desse setor, refletida a partir dos seus antecedentes históricos.

4. Os novos movimentos sociais e a afirmação de direitos

No bojo de um enfoque mais amplo da cidadania, a sociologia política tem identificado, especialmente no decorrer das décadas de 80 e 90, uma nova espécie de movimentação política, designada de Novos Movimentos Sociais.

Os novos movimentos sociais, surgidos durante a década de 60 (na América Latina, a partir da interrupção dos canais tradicionais de participação pela ditadura; nos países de capitalismo desenvolvido do Ocidente, em função da crise do Welfare State e dos movimentos culturais contestadores, como o dos estudantes), demarcam a afirmação de uma identidade no espaço público que não mais se dá nos espaços tradicionais (partidos políticos, sindicatos, Estado), mas sim no espaço do cotidiano: no bairro, na rua, no campo. Os sujeitos participantes desses movimentos não mais são vistos apenas como sujeitos participantes do processo produtivo ou integrantes da classe social, mas sim como sujeitos que se definem por uma identidade que não guarda relação direta e necessária com esse papel produtivo (mulheres, ambientalistas, negros, índios, moradores, aposentados).

A afirmação dessa identidade refletiu-se, inclusive, na própria forma de organização e atuação, muito diferente da estrutura hierárquica e institucional dos partidos e dos sindicatos, pois estimulava relações comunitárias e horizontais entre os que participavam nesses movimentos. Apesar de todas essas diferenças, é preciso ponderar que, sobretudo na América Latina, e ainda mais nas décadas finais do século passado do que agora, os novos movimentos sociais articulam-se em torno de demandas semelhantes à reivindicação de direitos sociais da classe trabalhadora, objetivando a satisfação de necessidades fundamentais (emprego, moradia, saúde, condições de trabalho) e endereçam boa parte de suas atividades ao Estado, esperando providências por parte das autoridades públicas. Esse padrão ainda se aloja na idéia de que as diferenças sociais são um mal que deve ser eliminado (que também é evidente na democracia liberal da igual dignidade para todos).

Em outras palavras, o fato de que os homens não são iguais, embora deva ser reconhecido no nível concreto da sociedade, para além de um certo liberalismo primitivo, é encarado como algo a ser superado. As políticas públicas do Estado social e as demandas dos partidos políticos se voltam para esse combate. Predomina, assim, uma visão negativa da diferença.

O que os novos movimentos sociais trazem de “novo”, em especial nos tempos presentes, é uma afirmação positiva da diferença (na Europa Ocidental: imigrantes africanos, indianos, turcos, latinos; na América Latina: povos indígenas, movimento negro). Esse é o marco do multiculturalismo, que traz à tona uma outra política de reconhecimento, na qual a diferença e a especificidade assumem um espaço de afirmação, indo além do reconhecimento da igual dignidade. A afirmação desta identidade, no seio dos NMS, se dá com grande ênfase através da afirmação de um direito a partir da experimentação de uma necessidade.

O objetivo dos NMS é satisfazer necessidades humanas fundamentais. Tais necessidades, mesmo quando se referem à alimentação, habitação e saúde, são sempre fruto de um processo histórico e cultural. Percebe-se, diante do quadro de crise do paradigma jurídico dogmático, que se reflete principalmente na incapacidade judiciária, a não satisfação dessas necessidades. Por elas se referirem a demandas básicas da vida humana, mesmo que não sejam contempladas pelo ordenamento positivo em sua forma de ser aplicado ou em seu conteúdo, são afirmadas como direitos. Como direitos produzidos fora do contexto estatal-legal. Nos movimentos sociais, como bem afirmou Eunice Durham, “a passagem do reconhecimento da carência para a formulação da reivindicação é mediada pela afirmação de um direito”.

Isso quer dizer que não se estabelece apenas uma relação mecânica entre necessidades e demandas. O que torna possível a mobilização dos movimentos não é só a percepção de necessidades comuns, mas a noção de “ausência de direitos”, com base na qual se constrói a sua identidade. E, muitas vezes, só por meio de lutas e conquistas é que esses direitos são reconhecidos como tais pelo Poder Público. Nesse sentido é que se fala de novos direitos, um verdadeiro direito a ter direitos. O novo não se refere necessariamente a uma reivindicação inédita ou que não esteja prevista de alguma forma no ordenamento, mas sim a um direito que não é contemplado ou atendido satisfatoriamente pela tutela oficial, o que exige a criação de novas formas de participação política. Portanto, a luta por esses novos direitos se efetiva em dois fronts: nos esforços para tornar eficazes direitos já previstos nas legislações; e na reivindicação e no reconhecimento de direitos que surgem de novas necessidades.

Contudo, é necessário perceber que as carências geradas por essas necessidades, além de plurais, são, em muitas circunstâncias, contraditórias. É justamente no processo do conflito que poderão ser definidos parâmetros mínimos de legitimação. Tais critérios, ainda mais atualmente, com o desmoronar de antigas certezas, são extremamente fluidos e construídos em um processo permanente e incessante de interlocução que se verifica não dentro do espaço estatal-legal, mas sim nas próprias relações sociais. Ao mesmo tempo em que ocorre a luta por direitos e cidadania, a violência e a intolerância surgem como possibilidades; concomitantemente à conquista de direitos, verifica-se o corporativismo, uma confusão entre direitos e privilégios.

É nesse ponto que a questão da cidadania se define como problema, pois ela escapa a fórmulas predefinidas, estando presa ao imprevisto, ao embate da tradição com a novidade, na intersecção entre história, política e cultura. Portanto, é na própria dinâmica dos conflitos que se inserem as esperanças de conquista satisfatória da cidadania e a possível generalização de direitos. Contudo, essa dinâmica escapa à regulação e redefine as relações entre Estado, economia e sociedade. A litigiosidade supera o ordenamento legal. Surgem outras formas de composição dos conflitos.

É importante perceber que esses novos direitos são aqui percebidos não a partir da sociologia do consenso, de cunho funcionalista, que vê no conflito uma patologia social, mas sim ao marco de uma sociologia do conflito, que vê nele um fator vital, impulsionador da sociedade. Outra advertência, extremamente relevante, diz respeito à imperiosidade de não confundir esses direitos com as obrigações do mundo privado. Desprezar a intermediação do direito legal-estatal pode ter um lado perverso, que se concretiza nas políticas neoliberais de flexibilização da legislação.

É preciso lembrar que o Estado no Brasil, de um modo geral, nunca levou a sério sua responsabilidade pública. Logo, a situação caótica em que se encontra não é necessariamente nenhuma prova de validade das teses neoliberais, pois tachar de moderno a existência de um privatismo selvagem é não perceber que ele é o que há de mais atrasado na sociedade brasileira. Tal privatismo, como assinala Vera da Silva Telles, “nega a alteridade e obstrui por isso mesmo a dimensão ética da vida social pela recusa de um sentido de responsabilidade e obrigação social”.

Falar na legitimidade de novos direitos significa partilhar da concepção de que o Direito não emerge apenas do Estado, admitindo-se a existência de outros centros de produção normativa, quer na esfera supra-estatal (organizações internacionais), quer na esfera infra-estatal (grupos associativos, corpos intermediários, organizações comunitárias e movimentos sociais). Nesse sentido, a despeito da doutrina oficial que delimita as fontes clássicas do Direito, a sociedade surge como sua fonte primária.

Dentre todos os corpos intermediários privilegiam-se, não só pela sua abrangência, mas também por suas características peculiares já examinadas (em especial a prática de transformar as suas demandas por satisfação de necessidades em afirmação por direitos), os movimentos sociais.

É nesse sentido que cabe falar dos movimentos sociais como novos sujeitos coletivos de direito, como bem enfatiza José Geraldo de Sousa Junior. Assim, com base nas análises político-sociológicas dos novos movimentos sociais, é perfeitamente possível identificar um processo pelo qual as carências vivenciadas coletivamente se transformam em exigência de direitos e a partir daí possibilitam a construção teórica de um sujeito coletivo de direito. Um sujeito que não permanece ensimesmado como se fosse uma versão mais larga do indivíduo atomizado, mas que se define a partir da relação com outros sujeitos em meio ao processo de afirmação de direitos e construção de experiências unidas por uma memória social. Mesmo as experiências de movimentação popular que se tenham pautado por uma faceta corporativa e reticente ao envolvimento político mais amplo são ponto de referência para movimentos posteriores, permanecendo na memória coletiva dos movimentos sociais.

5. A criminalização dos Movimentos Sociais no Brasil

Após termos realizado esse retrospecto quanto à questão da cidadania e à inserção dos movimentos sociais, pudemos constatar a importância acentuada que estes assumem no contexto democrático contemporâneo, e em especial nas localidades periféricas como o Brasil. É fundamental que tenhamos clara tal significância quando nos deparamos com a tendência de criminalização desses movimentos.

No ano passado, o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) elaborou um relatório sobre a criminalização dos movimentos sociais. Este relatório foi apresentado em outubro de 2006 em uma audiência pública na Organização dos Estados Americanos (OEA), na qual outros países também trouxeram seus relatórios. O documento aponta para a realidade de inúmeros movimentos sociais no Brasil que têm sofrido a transformação de suas ações em crimes, seja por parte da imprensa, seja por parte das instituições públicas, tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e vários outros movimentos de trabalhadores rurais, o Movimento das Mulheres Campesinas (MMC), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e vários outros movimentos e organizações indígenas, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), a Central de Movimentos Populares (CMP), que aglutina vários movimentos urbanos, em sua grande maioria envolvendo a questão dos sem-teto; e muitos outros.

Nos últimos anos assistimos a uma sucessão contínua de discursos veiculados na imprensa nos quais os movimentos sociais em meio às suas ações e mobilizações são apresentados como baderneiros e criminosos, sendo os seus líderes e defensores considerados radicais, extremistas e violadores da lei.

Percebe-se, ademais, a ampla utilização, por parte das autoridades públicas, de estratégias judiciais como a expedição de mandados de prisão e a negação de liminares para seu relaxamento, mesmo quando estão presentes todos os requisitos formais necessários. Quando tais movimentos reúnem pessoas em ações e atitudes reivindicatórias são estas acusadas de formarem quadrilha.

No Rio Grande do Sul, o indiciamento de 495 agricultores sem terra que ocuparam a fazenda Guerra, em Coqueiros do Sul é um bom exemplo. A ocupação de terras não se dá aqui, e em muitas outras ações semelhantes, com o objetivo de esbulhar a propriedade, mas sim com o fim de protestar, chamando a atenção para um grave problema brasileiro que segue sem solução adequada e que remonta à chegada dos europeus às terras brasileiras. O inusitado deste caso específico é que não foram indiciadas apenas as lideranças, mas também os participantes da ocupação. O indiciamento veio acompanhado de uma campanha de difamação do movimento por parte da imprensa, conforme narra o relatório do MNDH.

O movimento continua, porém, atuante, o que explica a tensão e os eventuais conflitos causados a partir da regular e violenta reação dos donos de terra da região. Outro caso que teve grande repercussão foi o indiciamento e a acusação das lideranças femininas do Movimento das Mulheres Campesinas (MMC) que coordenaram a destruição do viveiro de mudas de eucalipto da Aracruz Celulose no dia 08 de março de 2006. Como registra o relatório do MNDH, o movimento realizou a ação com o objetivo de protestar contra o cultivo maciço de eucaliptos, tendo em vista o grande prejuízo que isto vem trazendo ao meio-ambiente e à vida das pessoas.

O eucalipto plantado na região é de um tipo que causa a morte dos rios, já que suga muita água, e representa uma ameaça ao grande número de lençóis freáticos e à bacia hidrográfica que cobre toda a região. Além disso, as indústrias da Aracruz Celulose, já instaladas em outras regiões do Brasil, como o Espírito Santo, empregam uma pequena quantidade de pessoas, visto que boa parte da produção é mecanizada, sendo o seu principal objetivo a exportação de papel branqueado em benefício de algumas poucas empresas transnacionais. Isto sem falar que na instalação de suas indústrias no Espírito Santo desalojaram os povos Tupinikim e Guarani de suas terras tradicionais.

Casos como esses se repetem em todos os movimentos sociais brasileiros. Sintomático também é o que ocorre com os defensores de Direitos Humanos, muitas vezes considerados criminosos, visto que estariam defendendo “bandidos e baderneiros”. Tais personagens vêem-se premidos também em seu próprio ambiente de trabalho.

Um bom exemplo disto foi o que ocorreu com o advogado João Tancredo, exonerado do cargo de Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ quando tentou denunciar os abusos cometidos na célebre operação do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, ocorrida no dia 27 de junho de 2007, e cujo objetivo declarado era o combate ao narcotráfico e a garantia de maior segurança para os Jogos Panamericanos. Na busca de uma perícia isenta, visto que o IML está ligado à polícia, João Tancredo contratou um médico legista para examinar os laudos produzidos.

Em suas análises, o legista contratado conclui que dos 78 tiros encontrados nos 19 corpos alvejados pela operação, a esmagadora maioria foi no tórax e na cabeça, sendo 32 tiros disparados pelas costas, ou seja, claros sinais de execução. Um dos cadáveres, de um menino de 14 anos que tinha ido visitar a tia, apresentou sinais de tortura, assim como o de 9 outras vítimas. Do lado da polícia nenhum morto ou gravemente ferido.

Entre os moradores da favela cerca de 60 feridos. O estigma projetado para as pessoas que moram em favelas revela a intolerância social e o caráter bélico das políticas criminais e de segurança no Brasil. Procedimentos como o recolhimento das populações marginalizadas, revistas íntimas arbitrárias sobre transeuntes, inclusive crianças, vigilância ostensiva e confrontos armados sistemáticos tornaram-se a tônica nas ações policiais que ocorrem nas favelas. Segundo registrou Marcelo Salles, em reportagem sobre a ação policial no Complexo do Alemão, e segundo dados da própria Secretaria de Segurança, não chega a 450 o número de envolvidos com o tráfico, ou seja, menos de 0,2 por cento das cerca de 250.000 pessoas que vivem no complexo de favelas. Ali há, também, grupos culturais que realizam trabalhos sociais e assistenciais, como é o caso do Grupo Cultural Raízes em Movimento. Na reportagem realizada por Marcelo Salles, publicada na Caros Amigos de agosto de 2007, está a entrevista do coordenador-geral do Grupo, Alan Brum, de 38 anos, que, ao comentar a ação policial em sua comunidade, explica: “Existe um estigma consolidado pela mídia de que aqui é o lugar do mal. E parece que a sociedade quer ver o estigma do mal extirpado.”

É importante também não esquecer que sobre o traficante de drogas ilícitas recai um forte estigma, que o considera como uma espécie de Satanás, enquanto sobre os empresários e vendedores da indústria de bebidas alcoólicas ocorre o oposto. A bebida alcoólica é sinônimo de futebol, mulher bonita, diversão, juventude, charme, sofisticação, esporte (não é à toa que uma conhecida empresa produtora e comercializadora de bebidas patrocinou os Jogos Panamericanos no Rio de Janeiro), e, no entanto, em inúmeras situações, faz muito mais mal à saúde e à sociedade do que outros drogas consideradas ilícitas.

As pessoas que só se informam a partir da televisão e das grandes revistas e jornais possuem, via de regra, uma visão parcial dos fatos conflituosos da nossa sociedade. Como disse o grande advogado Jacques Alfonsin: “se tu quiseres informações sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra te aconselho a procurar no Google, pois a televisão não irá te informar nada”.

Ela só mostrará as ocupações, as supostas e as reais violências cometidas pelo movimento, o trânsito que ficou estagnado por causa das passeatas, os trabalhadores que chegaram atrasados no trabalho, e dificilmente dirá ao telespectador sobre os abusos e violências cometidos contra os integrantes do movimento, qual a razão daquela manifestação e do próprio movimento, porque é necessária a reforma agrária no Brasil, ou ainda quais e como são os inúmeros trabalhos e ações de caráter comunitário e coletivo empreendidos pelo movimento, tais como escolas, cooperativas, atendimentos de saúde, etc.

6. Considerações Finais

O que se pode concluir a partir dos apontamentos aqui brevemente realizados é que quanto maior a indisposição das pessoas em conceberem o outro como outro e em se abrirem a uma realidade diversa da sua, maior será a criminalização e a atuação totalizante e repressiva dos aparelhos institucionais encarregados desta função. Em um cenário como este, parafraseando Sartre, o inferno só podem ser os outros, um inferno a ser combatido e eliminado: uma verdadeira Cruzada ou Guerra Santa. Resta dizer que a necessária disposição para a alteridade só surgirá a partir da aceitação de nossos limites, do reconhecimento de nossa condição e co-pertencimento a uma sociedade na qual a injustiça, a violência e o crime não são restritos a apenas algumas pessoas e grupos. Essa modéstia começa na vida pessoal de todos nós e se espalha fortemente no universo que aqui vivenciamos: o da academia, lócus privilegiado do discurso oficial e racionalizante, ainda mais o de um curso de Direito.

Muito obrigado e uma boa noite a todos!

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* Memória da palestra apresentada na Mesa “Criminologia e Ética da Alteridade”, composta juntamente com o Prof. Dr. Ricardo Timm de Souza e integrante da Jornada de Estudos Criminológicos, ocorrida na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC-RS entre os dias 18 e 21 de julho de 2007, promovida pelo ITEC e pelo Mestrado em Ciências Criminais da PUC-RS. Na tentativa de manter intacto o caráter mais direto que caracteriza a palestra, o presente texto não traz notas de rodapé com referências bibliográficas de citações. As obras que inspiraram mais diretamente o trabalho encontram-se listadas ao final, sem que com isto se tenha a pretensão de esgotar a indicação das obras que influenciaram a presente exposição.