Da aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao transporte aéreo


PorJeison- Postado em 25 março 2013

Autores: 
NEGREIROS, Marcelo Costa Fernandes de.

 

Resumo: Verifica-se que apesar da grande quantidade de normas esparsas, algumas das quais com previsão de responsabilidade subjetiva do transportador aéreo, deve preponderar o entendimento consonante com a Constituição Federal, com o Código Civil e de Defesa do Consumidor, reputando-se que a responsabilidade é objetiva, adotando-se a teoria do risco. Ademais, acerca da indenização, filia-se à corrente mais humanitária, entendendo-se que não devem prevalecer as normas que preveem limitação tarifária em caso de indenizações relativas a danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, porquanto deve a reparação ser integral, respeitando-se os princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade.

 

 Palavras-chave: Responsabilidade civil - Transporte aéreo - Código de Defesa do Consumidor - Legislação aplicável.

 

1.      Introdução

 

A responsabilidade civil abrange os meios de transporte desde os tempos mais remotos, evidenciando-se que a cada novo dia ganha mais destaque, mormente em face da evolução, do aumento, do número e das espécies de transporte.

 

De todos os meios de transporte existentes, um dos que mais vem ganhando espaço é o transporte aéreo, que possibilitou o encurtamento de distâncias e do tempo de viagem, fornecendo ainda uma maior comodidade ao passageiro. É sobre este meio de transporte que o presente artigo concederá um maior enfoque.

 

No entanto, apesar da notória evolução, percebeu-se que o progresso trouxe consigo inúmeros problemas e o frequente desrespeito ao consumidor, que é o polo mais fraco da relação consumerista.

 

Neste artigo, busca-se expor algumas das questões encontradas hodiernamente, muitas das quais já solucionadas por nossos Tribunais Superiores e pela mais abalizada doutrina; outras, ainda, provocando intensa divisão doutrinária e jurisprudencial.

 

2.      Desenvolvimento

 

Em uma primeira análise, deve-se abordar o transporte aéreo internacional, regulado inicialmente pela Convenção de Varsóvia, acolhida no Ordenamento Jurídico Brasileiro pelo Decreto n.º 20.704 de 24 de novembro de 1931. A função precípua desta Convenção e de seus protocolos ulteriores, como o de Haia e o de Montreal, foi limitar o valor das indenizações, sendo prudente esclarecer que o objetivo maior era tutelar os interesses dos Estados, que eram os proprietários das empresas aéreas.

 

O ilustre mestre, Silvo de Salvo Venosa[1], alicerçado no artigo 1º da citada Convenção, leciona que:

 

Considera-se transporte internacional aquele que tem como ponto de partida e ponto de destino, haja ou não interrupção de transporte, ou baldeação, dois pontos de destino de países diversos, ou mesmo o de um só deles, havendo escala em outro país [...]

 

E conclui o brilhante ensinamento:

 

Por outro lado, não se considera internacional o transporte tendo como ponto de partida ou destino local de país que não tenha aderido ao sistema de Varsóvia.

 

A Convenção de Varsóvia prevê que a responsabilidade dos transportadores quando ocorre destruição, perda, ou avaria de bagagem despachada ou mercadorias durante o transporte aéreo é subjetiva, sendo a culpa da empresa aérea presumida, conforme interpretação extraída do artigo 20 da Convenção. Destarte, sendo presumida a culpa, evidencia-se a inversão do ônus da prova, cabendo ao transportador demonstrar que não agiu com culpa, o que afastaria a obrigação de indenizar. Esta previsão, como se verá adiante, perde a eficácia, em face do ordenamento jurídico vigente.

 

Noutro aspecto, o transporte aéreo nacional é regulado pelo Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei nº. 7.565/86), que também prevê artigo limitador do valor da indenização.

 

Observe-se, contudo, que apesar do disposto na Convenção de Varsóvia e no Código Brasileiro de Aeronáutica, uma corrente mais moderna, consagrada em alguns julgados e respaldada por parte da doutrina brasileira, defende que havendo conflito destas normas com o disposto no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, estes devem prevalecer, por serem normas mais recentes.

 

A Constituição Cidadã de 1988, em seu artigo 37, § 6º, respalda esse entendimento e aduz que a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado, que prestem serviços públicos (incluindo aqui as empresas aéreas), é objetiva. Em face do exposto, entende-se que normas infraconstitucionais incompatíveis como a Constituição Federal, não foram recepcionadas pelo ordenamento jurídico vigente.

 

Nelson Nery Junior[2] faz comentário a respeito do assunto, ao se reportar sobre a responsabilidade das transportadoras, que exercem função pública, quando afirma que:

 

A responsabilidade da transportadora - que exerce função pública sob concessão - perante o transportado é contratual e objetiva (CF 37 § 6º), caracterizando-se, outrossim, como relação de consumo (CDC 14). O dever contratual do transportador é conduzir o transportado são e salvo por todo o percurso contratado, desde o momento em que adentra no recinto do lugar de onde partirá o veículo coletivo até o momento em que deixa o veículo ou o lugar destinado como ponto final do percurso contratado. O cumprimento defeituoso do contrato de transporte, por violação positiva ou negativa do mesmo contrato, por fato ou ato que cause dano ao passageiro transportado, enseja responsabilidade objetiva do transportador.

 

Ainda neste campo cabe transcrever a observação feita pelo conspícuo professor Carlos Roberto Gonçalves[3]. Vejamos:

 

O art. 269 do Código Brasileiro de Aeronáutica, que limita a responsabilidade das empresas aéreas pelos danos causados a terceiros, perdeu eficácia a partir da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, que estendeu a responsabilidade objetiva, atribuída ao Estado, às pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros (art. 37 § 6º), sem estabelecer qualquer limite para indenização. Assim como não há limite para a responsabilidade civil do Estado, igualmente não há para a das concessionárias e permissionárias de serviços públicos, que emanam da mesma fonte.

 

O Código Civil em seu artigo 734[4] assevera que “o transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade”[5]. Este artigo não prevê limitação indenizatória de responsabilidade do transportador, como é previsto na Convenção de Varsóvia e no Código Aeronáutico. A alteração foi inaugurada pelo Código Civil de 2002, consistindo em um avanço significativo na tutela da dignidade da pessoa humana.

 

 Portanto, deve prevalecer, em consonância com a opinião de parte majoritária da doutrina e com o entendimento agasalhado pelos Tribunais Superiores, que a responsabilidade do transportador aéreo é objetiva, adotando-se a teoria do risco. Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

 

Ementa: CIVIL E PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE INTERNACIONAL. MERCADORIA. EXTRAVIO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. I - Tendo o serviço sido prestado pela recorrida, tinha esta o dever de transportar a carga conforme combinado, independente de qual seria a transportadora aérea a ser por ela contratada. II - Após o advento do Código de Defesa do Consumidor, aplica-se a responsabilidade objetiva quanto ao extravio de mercadoria. III - Agravo regimental improvido[6].

 

Noutra banda, considerando que o Código de Defesa do Consumidor surgiu para amparar os direitos do polo mais fraco da relação consumerista - o consumidor - deve ser afastada qualquer forma de limitação indenizatória ou tarifada, interpretação esta que caminha ao encontro da Constituição Federal, conquanto deva-se ressaltar, por honestidade científica, existirem posicionamentos em sentido contrário.

 

Dessa posição não diverge Pablo Stolze, que conclui com peculiar precisão:

 

Em nossa modesta opinião, na medida em que a Constituição Federal e o Código do Consumidor (este último, lei muito posterior à Convenção de Varsóvia) não estabeleceram nenhum tipo de tarifamento indenizatório, tanto para o dano moral quanto para o material, concluímos que qualquer limitação nesse sentido, prevista em norma anterior à Carta Política e ao próprio CDC, há que ser rechaçada por falta de lastro normativo[7].

 

3.      Conclusão

 

Deve-se entender que o Código de Defesa do Consumidor forma, juntamente com outras normas, um microssistema de proteção ao consumidor, assim, torna-se impossível a utilização de normas que venham a atenuar a proteção a este concedida. Diante do exposto, entende-se que deve prevalecer a responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos e serviços pelos danos causados por defeitos relativos à prestação de serviços, conforme esculpido no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor.

 

No mesmo sentido, fixada a premissa de que se deve aplicar o Código de Defesa do Consumidor e alicerçado nas normas entalhadas na Constituição Federal e no Código Civil Brasileiro, torna-se imperioso atentar para o fato de que não é possível a prevalência de norma limitadora da responsabilidade, nos transportes aéreos, devendo ser a indenização integral, respeitando-se os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, indenização esta que deve abranger, inclusive, os danos morais eventualmente sofridos.

 

Por fim, ressalve-se que as normas advindas de Convenções ou da Legislação Especial que sejam compatíveis com o Código Civil continuam sendo aplicáveis aos casos concretos, conforme entendimento que exsurge do artigo 732 do Código Civil, principalmente quando forem mais benéficas ao consumidor, desde que, é claro, sejam igualmente compatíveis com a Constituição Federal.

 

4. Referências bibliográficas:

 

-FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. 4. ed. atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

 

-GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 8. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. v.4

 

-JUNIOR, Nelson Nery. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 3. ed. atual. e  ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

 

-PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. Responsabilidade Civil. Atualizador Gustavo Tepedino. 10. ed. revista e  atualizada. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2012.

 

-STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 3. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

-TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume único. 1. ed. São Paulo: Editora Método, 2011.

 

-VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 13º ed. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2013.

 

Notas:

[1] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Responsabilidade Civil. 13º ed. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2013. p.190.

[2] JUNIOR, Nelson Nery. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional. 3. ed. atual. e  ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 454-455.

[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 8. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. p. 233. v.4.

[4] FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil Comentado. 4. ed. atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2005. p. 675.

[5] Súmula 161 do STF: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

[6] STJ: AgRg no REsp 1101131/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 05/04/2011, DJe 27/04/2011

[7] STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, volume 3. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 371.

 

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