Da desnecessidade de lei para alterar o prazo de vencimento do tributo: análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal


Porrayanesantos- Postado em 06 junho 2013

Autores: 
FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques

Um dos princípios basilares do ordenamento jurídico brasileiro, considerado, inclusive, como protoprincípio, é o da legalidade, o qual ganha relevância no âmbito do direito tributário, sendo conhecido como princípio da estrita legalidade tributária. 

 

Dessa forma, tendo em vista que o princípio da estrita legalidade tributária exige que a lei delimite completamente o fato tributável, surgiram discussões a respeito da possibilidade de um ato infralegal alterar o prazo de vencimento do tributo. Afinal, sobretudo em períodos em que existe inflação elevada, a alteração do prazo para pagamento de um tributo poderá acarretar um efeito prático parecido com a majoração do valor da exação.

 

Essa matéria foi levada ao Supremo Tribunal Federal, que entendeu que não se encontrava sob o campo da reserva legal a questão da alteração do prazo de vencimento do tributo, conforme se observará da análise dos julgados abaixo indicados.

 

O tema foi objeto de análise por parte do Plenário da Suprema Corte no julgamento do Recurso Extraordinário nº 140.669 – PE, em que se discutia a constitucionalidade do art. 66 da Lei 7.450/85, que atribuiu competência ao Ministro da Fazenda para fixar prazo de pagamento de receitas federais compulsórias.

 

O relator foi o Ministro Ilmar Galvão que, em seu voto, transcreveu parte do julgamento realizado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª. Região, o qual havia declarado a inconstitucionalidade do dispositivo questionado. Neste julgamento, o então Juiz Federal Hugo Machado assim se manifestou:

 

Criar um tributo não é apenas descrever a sua hipótese de incidência, isto é, aquela situação factual que, se e quando concretizada, fará nascer o dever jurídico de entregar dinheiro aos cofres públicos. É também definir o mandamento, dirigido ao sujeito passivo da relação de tributação. O mandamento é precisamente a parte da norma jurídica onde se encontram todos os elementos necessários ao conhecimento, à definição e à determinação de quem deve pagar, quanto e quando deve ser pago. Ê absolutamente inadmissível que fique fora do mandamento, contido na lei, qualquer dos elementos que interferem na determinação do quantum a ser pago pelo sujeito passivo.

 

Entretanto, o Ministro Ilmar Galvão se manifestou no sentido da legalidade do dispositivo analisado, com base nos seguintes argumentos:

 

a) É certo que a Constituição Federal de 1988 submeteu ao princípio da legalidade a competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, para "exigir ou aumentar tributo" (art. 150, I). Ao fazê-lo, não reservou a matéria, por inteiro, à lei federal, estadual, distrital e municipal, respectivamente. Ao revés, deixou a essas tão-somente a competência de instituir o tributo. Instituir significa decretar, criar o tributo, observados os respectivos contribuintes, fato gerador e base de cálculo, como delineados na lei complementar federal, sendo de assinalar que o ato de instituição só se integra com a fixação da alíquota correspondente -- elemento esse não abrangido pela competência deferida ao legislador complementar --, salvo as hipóteses em que a própria constituição atribuiu essa competência a outro órgão (art. 155, § 2º., IV e V). Majorar, de sua vez, importa a competência confiada ao Poder Executivo (art.153, § 1º.).

 

b) A competência legislativa complementar foi exercida por meio da edição do CTN (Lei n. 5.162/66), recepcionado pela Constituição de 1988, no que com ela compatível. No art. 97, o referido diploma legal explicitou a reserva feita pela Constituição à lei, sem fazer qualquer menção à data de vencimento da obrigação tributária. Vale dizer que teve o vencimento da obrigação como elemento secundário, não sujeito ao princípio da reserva legal.

 

c) Aliás, quanto ao vencimento, o CTN somente veio a tratar quando cuidou do pagamento como principal causa da extinção do crédito tributário  dispondo,  no art.   160,  que “quando a legislação tributária não fixar o tempo do pagamento, o vencimento do crédito ocorre trinta dias depois da data em que se considera o sujeito passivo notificado do lançamento." Ademais, o art.  96  conceituou  legislação tributária nestes termos: "A expressão ‘legislação tributária’ compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes." Nesse sentido, não apenas por meio de lei, mas também de normas complementares (art. 100)  poderá ser fixado o vencimento dos tributos.

 

Em seu voto, o Ministro Ilmar Galvão ainda citou os ensinamentos de Gomes Canotilho[1], no sentido de que a "atribuição de poderes normativos ao Governo (...) serve para descongestionar os órgãos legislativos, transferindo para os órgãos executivos e administrativos uma competência mais ou menos ampla de normação jurídica", e transcreveu os seguintes ensinamentos:

 

Através do conceito de reserva de lei (...) pretende-se delimitar um conjunto de matérias ou de âmbitos materiais que devem ser regulados por lei ("reservados à lei"). Esta "reserva de matérias" para a lei significa, logicamente, que elas não devem ser reguladas por normas jurídicas provenientes de outras fontes            diferentes         da        lei  (exemplo: regulamentos). Ainda por outras palavras: existe reserva de lei sempre que a constituição prescreve que o regime jurídico de determinada matéria seja regulado por lei e só por lei, com exclusão de outras fontes normativas.

 

A reserva de lei comporta duas dimensões: uma negativa e outra positiva.

 

(1) Dimensão negativa: nas matérias reservadas â lei está proibida a intervenção de outra  fonte  de  direito  diferente  da   lei   (a  não ser que se trate de normas meramente executivas da administração).

 

(2) Dimensão positiva: nas matérias reservadas à lei esta deve estabelecer ela mesma o respectivo regime jurídico, não podendo declinar a sua competência normativa a favor de outras fontes[2].

 

Mais adiante, ainda de acordo com as lições de Gomes Canotilho, o relator explica que uma consequência do instrumento utilizado pela Constituição portuguesa chamado de congelamento do grau hierárquico é que sempre que uma matéria tenha sido regulada por lei, o grau hierárquico desta regulamentação fica congelado, e só uma outra lei poderá incidir sobre a mesma matéria, interpretando, alterando, revogando ou integrando a lei anterior. Tal instrumento, contudo, não impede a possibilidade de deslegalização ou de degradação do grau hierárquico. Neste caso, uma lei, sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser modificada por regulamentos[3].

 

O Ministro Ilmar Galvão prossegue o julgamento afirmando que as lições de Gomes Canotilho ajustam-se perfeitamente ao caso analisado, visto que não se está diante de matéria reservada à lei. Inexiste dispositivo constitucional a dispor em tal sentido. Ademais, a lei complementar incumbida de definir os tributos e, relativamente aos impostos, os respectivos fatos geradores, bases de cálculos e contribuintes, bem como a obrigação, o lançamento, o crédito, a prescrição e a decadência tributários (CTN), tampouco exigiu que a data do vencimento destes fosse fixada por lei, admitindo, ao revés, que também o seja por qualquer das normas complementares enumeradas em seu art. 100.

 

Dessa forma, o relator conclui que o que ocorreu no caso, relativamente ao IPI, foi que havia o vencimento sido fixado por lei, mas lei posterior, ao mesmo tempo que revogou a antiga norma, deslegalizou a matéria, atribuindo competência à Administração para discipliná-la através de ato normativo próprio, na forma prevista no art. 96, I, do CTN, configurador de lei em sentido material, porque de caráter geral e abstrato.

 

Com essa providência, prossegue o ministro Ilmar Galvão, não apenas não contrariou o princípio da legalidade, já que não se tratava de matéria reservada à lei, mas também conferiu maior flexibilidade à importante questão do vencimento do  tributo   em  referência.   E, como não se tratava de matéria reservada à lei, nenhum óbice se oferecia à providência senão a existência de lei que já disciplinava o assunto, o qual, por isso mesmo, necessitou de deslegalização legislativa.

 

Por fim, quanto ao argumento de que, em regime inflacionário, a antecipação do vencimento do crédito tributário constitui indireta majoração do tributo, a exigir a edição de lei formal, por antecipar a incidência dos índices de atualização do respectivo valor, o Ministro Ilmar Galvão conclui que essa argumentação perde toda consistência quando se leva em conta que a correção monetária não constitui pena por eventual mora no pagamento, mas atualização do valor do débito, nada impedindo que opere ela não a partir de vencimento, mas do nascimento da obrigação tributária.

 

Após o voto do relator, os Ministros Maurício Correa e Francisco Rezek o acompanharam, sem acrescentar novos fundamentos. Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio pediu vista dos autos, para divergir do entendimento prevalecente, por entender que o princípio da legalidade norteia a cobrança dos tributos. Por outro lado, a teor do artigo 146 da Carta Política da República, compete à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributaria, seguindo-se rol, relativamente a esta última, que não transparece exaustivo.

 

Acrescentou ainda o Ministro Marco Aurélio que, quando editada a lei que resultou na fixação da competência do Ministro da Fazenda para determinar prazos para pagamento de receitas federais compulsórias, estava em vigor a Carta de 1969. O parágrafo único do artigo 52 continha preceito vedativo da delegação de atos da competência exclusiva do Congresso Nacional. Por outro lado, ao definir a competência do Congresso Nacional, o artigo 43 previu a atuação no tocante aos tributos, aludindo à arrecadação e distribuição de rendas. Ademais, entende o Ministro Marco Aurélio que, no grande todo que consubstancia a arrecadação, tem-se, iniludivelmente, como elemento primordial, a fixação de prazo para que ocorra no campo compulsório. Vale notar que a Carta de 1988, consideradas as exceções contempladas na pretérita e, nesse campo, não admitindo a existência quanto ao prazo para recolhimento de tributos, mostrou-se rigorosa ao preceituar, no artigo 25 do Ato das Disposições Transitórias, a revogação, a partir de cento e oitenta dias da respectiva promulgação, sujeito este prazo à prorrogação por lei, de todos os dispositivos legais que atribuíssem ou delegassem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional.

 

O Ministro prossegue afirmando que a segurança jurídica, a relação entre Estado e contribuinte reclama estabilidade somente passível de ser garantida via observância irrestrita ao mecanismo próprio, que é o revelado pela edição de lei em sentido formal e material, isto tendo em vista a competência abrangente do Congresso Nacional para disciplinar a arrecadação de tributos.

 

Para corroborar a sua tese, o Ministro Marco Aurélio cita a doutrina de Geraldo Ataliba e J. A. Lima Gonçalves, em artigo publicado em Cadernos do Direito Tributário n° 45, sob o título "Carga Tributária e Prazo de Recolhimento de Tributos", em que é ressaltado que o espaço de tempo para a satisfação do tributo muito tem a ver com o valor respectivo, sendo que a fixação de prazo para cumprimento de obrigação tributária não é matéria administrativa. É trazido à baila também os ensinamentos de Roque Antonio Carrazza, em seu Curso de Direito Constitucional Tributário, que defende que a tributação, em um Estado Democrático de Direito, exige o máximo de legalidade, concluindo no sentido de que o prazo e as condições de recolhimento dos tributos só podem ser fixados ou alterados por meio de lei da pessoa política tributante.

 

O Ministro Sepúlvida Pertence também pediu vista dos autos para discordar do entendimento do relator. De acordo com o seu voto-vista, a premissa do raciocínio do Ministro Ilmar Galvão ficou comprometida na medida em que se limitou à demonstração da inexistência de cláusula constitucional de reserva da matéria à lei no capítulo atinente ao sistema tributário nacional - especialmente no tópico das limitações constitucionais ao poder de tributar -, onde efetivamente não se cogita da arrecadação, mas principalmente de normas de competência para definir, instituir e quantificar tributos, assim como na sua última sessão, à repartição das receitas tributárias.

 

O Ministro Sepúlvida Pertence prossegue o voto afirmando que, conforme demonstrado pelo Ministro Marco Aurélio, o art. 47, I, da Constituição, foi além e explicitamente reservou ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República e, portanto, à lei formal, não apenas quanto diga respeito ao sistema tributário e à repartição das receitas correspondentes, mas também à sua arrecadação.

 

Dessa forma, o Ministro Sepúlvida Pertence conclui que não se está diante de matéria meramente administrativa, mas da disciplina de prisma substantivo da relação entre os órgãos de arrecadação tributária e o contribuinte, qual o tempo do cumprimento de sua obrigação, razão pela qual, dada a sua inegável relevância, não há como subtraí-la da reserva constitucional à lei da regência da arrecadação de tributos.

 

De seu turno, o Ministro Otávio Gallotti concordou com o relator, por considerar que na reserva legal de competência para arrecadação dos tributos, não está compreendida a fixação do prazo do recolhimento, entendimento este que também foi seguido pelo Ministro Neri da Silveira.

 

Por fim, o Ministro Carlos Velloso acompanhou a divergência, por entender que o Congresso Nacional, mesmo mediante lei, não poderia   delegar   ao  Ministro   da   Fazenda,   autoridade   do   Poder Executivo,    a   faculdade   de   alterar   prazos   inscritos   em   lei. Argumentou o ministro que   essas disposições  legais  foram todas editadas  sob o pálio da Constituição de 1967, cujo artigo 6º., parágrafo único, estabelecia que “salvo as exceções previstas nesta Constituição, é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.” Dessa forma, o Ministro Carlos Velloso entendeu que se estaria diante de uma delegação vedada na Constituição, a órgão do Executivo para alterar prazos inscritos na lei.

 

Portanto, o entendimento que prevaleceu no plenário do STF, vencidos os ministros Marco Aurélio, Sepúlvida Pertence e Carlos Velloso, foi no sentido de que a estipulação de prazo para vencimento de tributos não é matéria submetida à reserva legal.

 

A matéria de fundo foi novamente levada à análise do STF no Recurso Extraordinário 253395-5 – SP, julgado pela 1º Turma, em que se discutia a legalidade do Decreto n° 35.386/92 - SP, que antecipou o prazo de vencimento do ICMS nos meses de setembro, outubro e dezembro de 1992. A alegação era de ofensa ao principio da legalidade, uma vez que ao Poder Executivo Estadual seria vedado, por meio de decreto, fixar prazos para pagamento do tributo, além de afronta ao principio da vedação de delegação legislativa.

 

O relator, Ministro Ilmar Galvão, entendeu que não haveria violação aos princípios constitucionais invocados. Quanto ao primeiro, afirmou que é de todo descabido o entendimento de ser ilegítimo o decreto estadual como instrumento hábil para alterar prazo de vencimento de tributo, visto que o art. 97 do CTN relaciona taxativamente as matérias submetidas à reserva legal, entre as quais não se acha a fixação do prazo de recolhimento de impostos. Já quanto ao segundo argumento, o relator enfatizou que a definição do elemento temporal não se compreende no campo reservado à lei, não existindo espaço para se cogitar de delegação de competência legislativa, diante  do simples fato de o legislador haver confiado a quem se acha investido do poder de expedir decretos e regulamentos das leis a tarefa de determinar o vencimento da obrigação fiscal.

 

Por fim, relativamente à alegação de afronta ao art. 5º, XXII e LIV, da Constituição Federal, o Ministro Ilmar Galvão igualmente rejeitou o argumento, visto que a antecipação da data de vencimento de tributo não constitui matéria sujeita ao principio da reserva legal.

 

Participaram do julgamento os ministros Moreira Alves, Sydney Sanches, Octávio Gallotti e Sepúlvida Pertence, que acompanharam o voto do relator, sem acrescentar outros fundamentos.

 

Houve ainda o julgamento do Recurso Extraordinário 195.218-1 –MG, cujo Relator também foi o Ministro Ilmar Galvão, o qual se manteve coerente com o entendimento anterior.

 

O Ministro Sepúlvida Pertence pediu vista dos autos e registrou o seu entendimento contrário ao do relator, por entender que a matéria está compreendida pela reserva de lei formal, conforme ele já havia ressaltado no julgamento do RE 140.669.

 

Acompanharam o relator os ministros Moreira Alves, Sydney Sanches e Ellen Gracie, sem, contudo, acrescentar outros argumentos.

 

Nesse mesmo sentido, o STF se manifestou em outras oportunidades, como nos Recursos Extraordinários 172.394, 182.971, 233.755. Atualmente, pois, a matéria encontra-se pacificada no sentido da inexistência de reserva legal quanto à estipulação de prazo de vencimento da obrigação tributária.

 


[1] Dir. Constitucional, Coimbra, 1991, p. 785.

[2] Idem . p.798- 799.

[3] Idem. p.   927

 

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