"Deus seja louvado": o Estado brasileiro é laico, mas não ateu


Porwilliammoura- Postado em 25 fevereiro 2013

Autores: 
PINHEIRO, Wecsley dos Santos

A referência a Deus na Constituição de 1988 e, com efeito, a frase “Deus seja louvado” da cédula de real, consubstancia a vontade e o pensamento da esmagadora maioria dos brasileiros, da qual emana, diga-se de passagem, todo o poder exercido por meio de mandatários eleitos ou diretamente.

1. Despertou-me a atenção uma reportagem no Jornal Diário do Pará (edição 10.352 de 13/11/2012, caderno B), denominada ‘Deus seja louvado’. MPF pede retirada de frase das cédulas. Segundo a matéria, o Ministério Público Federal de São Paulo – Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, após ser instado a instaurar inquérito civil público, levou à Justiça a pretensão de que seja suprimido da moeda-papel de Real a inscrição Deus seja louvado, postulando que essa providência, em sede liminar, seja tomada pela União no prazo de 120 dias, sob pena de multa simbólica de R$ 1 real por dia de descumprimento.

De acordo com o Procurador da República – Jefferson Dias – inexiste lei autorizando ou impondo a inscrição de indigitada frase religiosa nas cédulas de real, em ordem a não ser permitido à autoridade pública responsável pela determinação da inclusão e manutenção da frase a continuar com esse ato discricionário, uma vez que ofenderia, entre outros, o princípio constitucional do Estado laico, a desrespeitar as outras crenças e manifestações religiosas de muitos brasileiros. O Procurador instiga a um exercício de reflexão acerca do tema ao dizer: “Imaginemos a cédula de real com as seguintes expressões: ‘Alá seja louvado’, ‘Buda seja louvado’, Salve Oxossi’, ‘Salve Lord Ganesha’, ‘Deus não existe’. Com certeza haveria agitação na sociedade brasileira em razão do constrangimento sofrido pelos cidadãos crentes em Deus”.

Segundo informações colhidas no inquérito civil público, o Banco Central do Brasil (BCB) é o responsável pela emissão, mediante a Casa da Moeda, e definição das características e caracteres impressos nas cédulas de real, e o fundamento da adoção da frase se encontra no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 quando apregoa que sua promulgação se dá “sob a proteção de Deus”.

O excerto polêmico teria sido incluído em 1986 por determinação direta do então Presidente da República José Sarney, sendo mantida pelo Ministro da Fazenda de 1994 Fernando Henrique Cardoso, quando o país adotou o Real como moeda, ao argumento de que se trataria de uma tradição da moeda do Brasil.


2. Ao se ler o preâmbulo da Constituição da República de 1988, constata-se a existência da expressão “sob a proteção de Deus”, in verbis:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (grifei)

De acordo com Jorge Miranda (apud COELHO, 2009, p. 31), a doutrina se divide em três correntes explicativas da natureza jurídica do preâmbulo: corrente da irrelevância jurídica, segundo a qual o preâmbulo da Constituição é despiciendo, desprovido de qualquer relevância, de modo a não fazer diferença sua existência ou inexistência no pórtico duma Carta Magna; corrente da normatividade, a qual enuncia o mesmo caráter cogente, injuntivo e vinculante de qualquer outra norma constitucional, podendo, destarte, servir como parâmetro de aferição de constitucionalidade das normas infraconstitucionais; e corrente da relevância jurídico-interpretativa, no sentido de que, não obstante não tenha valor normativo, isto é, cogente e vinculante como qualquer norma constitucional, é parte integrante da Constituição, e como tal, desempenha importante valor interpretativo do sistema jurídico-constitucional, de maneira a servir indiretamente como elemento de aferição de constitucionalidade de uma norma infraconstitucional.

A inserção de texto preambular em nossas Constituições se revela tradição do nosso constitucionalismo, pois, conforme leciona COELHO (2009, pp. 37-38)

Da Constituição Política do Império do Brasil, de 1824, à Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, todas as nossas Cartas Políticas ostentaram preâmbulos, cujos termos, como não poderia deixar de ser, trouxeram a marca do seu tempo. Com maior ou menor nitidez, todos procuraram refletir a conjuntura política e social em que se construíram os edifícios constitucionais a que serviram de pórtico. Daí por que a Carta de 1824, outorgada pelo imperador Pedro I, após dissolver a Assembléia Constituinte, que ele mesmo convocara; a de 1937, decretada pelo ditador Getúlio Vargas, depois de fechar o Congresso Nacional; a de 1967, cujo projeto, de iniciativa do Executivo, foi aprovado “a toque de caixa” pelo Congresso Nacional; e, finalmente, a Carta/Emenda de 1969, promulgada pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, após se auto-investirem na Chefia do Poder Executivo e no Exercício de poderes constituintes – todas congenitamente autoritárias –,  não se fizeram preceder de preâmbulos libertários, antes se limitando a revelar seus autores e os motivos que os levaram a golpear a democracia. Diversamente, as Constituições de 1891, de 1934, de 1946 e de 1988, porque partejadas e vindas à luz em clima de liberdade, ostentam mensagens preambulares que nada ficam a dever, na sua forma, como no seu conteúdo, às mais democráticas das constituições democráticas.  

O Supremo Tribunal Federal adota a corrente da relevância jurídico-interpretativa, porque em sede de medida cautelar, o decano da Corte – Ministro Celso de Mello – assim se pronunciou

Os ora impetrantes sustentam que a PEC 41/2003 estaria em confronto com o preâmbulo da Constituição (fls.  21). Não se desconhece a discussão doutrinária instaurada em torno da natureza do preâmbulo constitucional, como resulta evidente do magistério expendido por eminentes autores que analisaram esse particular aspecto do tema em questão (ALEXANDRE DE MORAES, "Constituição do Brasil Interpretada", p. 119, 2ª ed., 2003, Atlas; UADI LAMMÊGO BULOS, "Constituição Federal Anotada", p. 66, item n. 4, 5ª ed., 2003, Saraiva; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", vol. 1/13, 1990, Saraiva; PINTO FERREIRA, "Comentários à Constituição Brasileira", vol. 1/3-5, 1989, Saraiva, v.g.). Como se sabe, há aqueles que vislumbram, no preâmbulo das Constituições, valor normativo e força cogente, ao lado dos que apenas reconhecem, no texto preambular, o caráter de simples proclamação, que, embora revestida de significado doutrinário e impregnada de índole político-ideológica, apresenta-se, no entanto, destituída de normatividade e cogência, configurando, em função dos elementos que compõem o seu conteúdo, mero vetor interpretativo do que se acha inscrito no "corpus" da Lei Fundamental. Há que se ter presente, no entanto, considerada a controvérsia em referência, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em recente (e unânime) decisão (ADI 2.076/AC, Rel. Min. CARLOS VELLOSO), reconheceu que o preâmbulo da Constituição não tem valor normativo, apresentando-se desvestido de força cogente. Esta Suprema Corte, no julgamento plenário em questão, acolheu o magistério de JORGE MIRANDA ("Teoria do Estado e da Constituição", p. 437-438, item n. 216, 2002, Forense), cuja lição, no tema, assim versou a matéria concernente ao valor e ao significado dos preâmbulos constitucionais: "(...) o preâmbulo é parte integrante da Constituição, com todas as suas conseqüências. Dela não se distingue nem pela origem, nem pelo sentido, nem pelo instrumento em que se contém. Distingue-se (ou pode distinguir-se) apenas pela sua eficácia ou pelo papel que desempenha.

                                               .......................................................

Os preâmbulos não podem assimilar-se às declarações de direitos.(...). O preâmbulo não é um conjunto de preceitos. (...). O preâmbulo não pode ser invocado enquanto tal, isoladamente; nem cria direitos ou deveres (...); não há inconstitucionalidade por violação do preâmbulo como texto 'a se'; só há inconstitucionalidade por violação dos princípios consignados na Constituição." Sob tal aspecto, verifica-se que a alegada ofensa ao preâmbulo da Constituição não tem o condão de conferir substância à pretensão mandamental ora deduzida pelos impetrantes, eis que, como já assinalado, o conteúdo do preâmbulo não impõe qualquer limitação de ordem material ao poder reformador outorgado ao Congresso Nacional. (MS 24645 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 15/9/2003, grifei)

A meu sentir, à luz do quanto expendido, o enunciado preambular da Constituição Federal de 1988, não se revela juridicamente irrelevante, nem se mostra com força normativa, mas, aderindo à corrente da relevância jurídico-interpretativa, esse texto introdutório, localizado no pórtico da Lei Fundamental é relevantíssimo do ponto de vista interpretativo/aplicativo do ordenamento jurídico, porquanto é um enunciado do presente, que fala para o presente, acerca de aspectos do passado e sobre as expectativas para o futuro, a revelar o contexto histórico em que surge a Constituição, a legitimidade dos que a editam e os valores ideológicos, políticos, jurídicos, sociais, econômicos e culturais que se adotam.

Não se olvide que o valor interpretativo, majoritariamente, atribuído ao nosso preâmbulo constitucional, não se estende a todas as Constituições alienígenas, até porque em muitas nem texto preambular há, como na da Áustria, Bélgica, Bolívia, Chile, Itália, México, Suécia e Uruguai. A par disto, a França, por meio do Conselho Constitucional Francês, em 16/07/1971, atribuiu valor normativo ao preâmbulo da Constituição de 1946, conforme noticia COELHO (2009, p. 29).  


3. Todas as nossas Constituições (1824, 1934, 1946, 1967, 1969 e 1988), com exceção das Constituições de 1891 e 1937, fazem referência a Deus, logo, o excerto “sob a proteção de Deus”, inserto na Constituição da República de 1988 não é nova, trazendo a lume a crença em Deus do Estado Brasileiro no sentido de que a singela invocação da proteção e bênção divinas assegurará a realização dos valores, princípios e escopos almejados pelo constituinte originário.

Não se quer dizer com isso, assinala-se, que o Estado Brasileiro não seja laico. Neste ponto faz-se mister o discrímen entre Estado laico e Estado não-ateu.

Estado laico é aquele que não mistura política e religião, de maneira a não possuir uma religião oficial e nem sofrer o influxo de determinada religião, ao revés, pugna a liberdade e o pluralismo de crença religiosa. Estado não-ateu é aquele que crê, tem fé numa entidade, força e/ou energia transcendental, onipotente, onipresente, onisciente e invisível responsável pela ordenação e coordenação do universo e dos seres e coisas existentes, intitulada, em nossa cultura, de Deus, sem necessariamente vincular-se a uma religião.

Saliente-se que religião ou crença religiosa não se confunde com Deus, pois a primeira é criação humana a fim de servir como instrumento, veículo de comunicação, relacionamento e aproximação do ser humano ao segundo, de modo que é perfeitamente possível, para não dizer comum, muitas pessoas crerem em Deus sem necessariamente seguirem uma religião ou crença religiosa, ou acreditarem em Deus e seguirem mais de uma crença religiosa.

Nesse sentido, não se deve confundir Deus com religião católica, protestante, judaica, islâmica, hinduísta etc. Aliás cada religião costuma intitular de uma maneira particular  essa entidade, força ou energia transcendental – Deus, Javé, Alá... – com vistas a se distinguir das demais.

A nossa história e cultura, pelo menos da esmagadora maioria dos brasileiros, sempre foi a de crê em Deus. O número de brasileiros que se declaram ateu é irrisório se comparado ao número dos que se declaram crente, daí por que não causa espécie ou indignação na população que todas as nossas Constituições, ressalvadas as de 1891 e 1937, façam referência a Deus e, com efeito, a cédula de real traga a inscrição “Deus seja louvado”, na medida em que a Constituição de um Estado, inelutavelmente, incorpora e assimila traços culturais da sociedade na qual é gestada.

Destarte, a referência a Deus na Constituição de 1988 e, com efeito, a frase “Deus seja louvado” da cédula de real, consubstancia a vontade e o pensamento da esmagadora maioria dos brasileiros, da qual emana, diga-se de passagem, todo o poder exercido por meio de mandatários eleitos ou diretamente (CF, art. 1º, parágrafo único).

Não quer dizer com isso que se viva sob uma ditadura da maioria, sob uma  pseudodemocracia, pois se assim fosse, não se respeitaria a vontade e o pensamento da minoria ateia. Qualquer brasileiro tem a liberdade fundamental de se intitular ateu, e não é por conta disto que lhe será negado qualquer direito ou lhe imposto dever a maior ou diverso dos deveres de um crente ou não-ateu. No Brasil se propugna, como direito fundamental, as liberdades de pensamento, manifestação e de crença religiosa (CF, art. 5º, IV, VI, VIII e IX).

Imagine-se que algum dia a maioria dos brasileiros se torne ateu. A partir desse dia será legítimo, quem sabe até exigido, e não causará surpresa e constrangimento nenhum, suprimir-se da Constituição qualquer menção a Deus e, mais além, poder-se-á até apor inscrição exaltando o ateísmo, por exemplo, “Viva o ateísmo”, uma vez que neste momento a Constituição estará nada mais do que se adequando ao contexto histórico-sócio-cultural. Poder-se-á até imaginar que na moeda-papel se aponha a indigitada frase “Viva o ateísmo”, e tudo isso será e soará normal, assim como o é hodiernamente a frase “Deus seja louvado” na cédula de real, que inscrita com letras tão pequenas até passa despercebida pelos brasileiros, a ponto de não impedir até os mais crentes de utilizarem-na das maneiras e para os desideratos mais vis e espúrios possíveis que a mente humana é capaz.

A propósito, a moeda-papel dos Estados Unidos – dólar – reputada por muitos como a principal democracia do mundo e defensor intransigente (pelo menos dos seus cidadãos) das liberdades de pensamento e manifestação, em sua cédula traz a seguinte inscrição “In God we trust” (“Em Deus nós confiamos”) que, recentemente, o Parlamento Americano decidiu pela sua manutenção no dólar, a revelar que a indigitada frase representa o pensamento e a crença em Deus da maioria dos norte-americanos, sem, contudo, representar qualquer desprezo, desconsideração, alijamento, ostracismo ou prejuízo para a minoria que não compartilha da crença.

Nunca é demais asseverar, seja a menção a Deus no preâmbulo da Constituição, seja a inscrição “Deus seja louvado” da cédula de real, se de qualquer forma trouxesse prejuízo para a minoria ateia, dever-se-ia suprimir a inscrição, porque não se vive numa ditatura da maioria, mais uma vez impende mencionar,  mas numa lídima democracia na qual se busca a consecução do interesse de todos, e não de uma maioria ou minoria.


4. Em face do expendido, a pretensão do Ministério Público Federal não se mostra razoável, uma vez que a inscrição “Deus seja louvado” não fere, entre outros, o princípio do Estado laico, mas antes revela, com esteio no preâmbulo da Constituição de 1988, a cultura da crença numa entidade, força ou energia transcendental, onipotente, onipresente, onisciente e invisível, comumente chamada de Deus, sem olvidar e desrespeitar o direito fundamental daqueles que não compartilham dessa cultura. 


Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

JORNAL DIÁRIO DO PARÁ. ‘Deus seja louvado’ – MPF pede retirada de frase das cédulas. Ano XXX, edição 10.352 de 13/11/2012, Belém, seção B5 do caderno B.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2009.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pesquisa de Processos.  Disponível http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp