Direito & Psicanálise: diálogos (im)possíveis.


Porcarlos2017- Postado em 06 novembro 2017

Autores: 
Alexandre Morais da Rosa

Direito e Psicanálise são campos autônomos e dialogam em diversos momentos. Este diálogo, embora nem sempre seja produtivo, atualmente é fomentado com o devido cuidado em diversos locais, dentre eles o Núcleo de Direito e Psicanálise da Universidade Federal do Paraná, coordenado por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Esta interlocução não é privilégio nacional. Existem diversos locais de interlocução no mundo. 

Embora o estatuto da categoria sujeito seja diversa, pode-se a convocar a psicanálise para apontar o buraco no qual o discurso da plena consciência do sujeito-de-direito falha. Para o direito qualquer escolha (cometer um crime, casar, descasar, contratar, decidir, julgar) decorre de um processo movido pela razão em que o sujeito pondera qual a melhor decisão a ser tomada. Este modelo é o pressuposto do ordenamento jurídico pensado em sua objetividade. A psicanálise aponta justamente para o buraco em que o sujeito não sabe dizer, pela razão, quais os motivos de sua ação. Não raro "se perde a cabeça", "não se sabe dizer porque se fez o ato", "não se lembra do ocorrido". Tudo isto aparentemente pode ser uma falta-de-razão. Entretanto, caso acolhido o inconsciente como o capítulo censurado, mas não apagado, marcado por um branco e ocupado por uma mentira (Lacan), pode-se perceber outros destinos para o sentido. Assevera Agostinho Ramalho Marques Neto que "o sujeito não se confunde com o eu, não se confunde com o indivíduo, com sua inteligência, com sua excelência (areté). Sua posição a tudo isso é de excentricidade."

Claro que esta interlocução não procura eximir o sujeito de seus atos e da consequente responsabilidade (Jeanine Nicolazzi Philippi). Todos somos responsáveis pelos atos. Isto é da ética da psicanálise. Pode-se, quem sabe, com este saber - principalmente por uma escuta flutuante - captar no não dito, nos silêncios, nos atos falhos, a verdade que se esconde por detrás do discurso exibido do sujeito moderno. Neste contexto, dialogando com a "estrutura do sujeito e do coletivo", mostra-se possível entender um pouco mais do que se passa no contemporâneo. Não se trata, evidentemente, de psicanalisar o jurídico, já que não podem ser confundidos os registros, sob pena de se correr os riscos já indicados por Miranda Coutinho: "arriscar a identidade é ceder à comodidade, mas incorreto, para não dizer falso. Atitude empulhadora, deslumbra na primeira aparência pelas fórmulas fáceis, mas oferece o cadafalso no momento seguinte." 

Estabelece-se, pela psicanálise, o sentido da lei - metáfora do limite - na formação do registro do Símbólico dos ocidentais, identificada com a palavra do pai - único sujeito - garantidor da legalidade da estrutura, do aparelho psíquico. Esse lugar fundante do Outro tentará fazer a ponte entre as formações do inconsciente e a lei jurídica, bem como seus efeitos no ato de interpretação. A estrutura da Lei do inconsciente, estabelecedora do limite é desnudada, fazendo parte integrante das manifestações pessoais e sociais. A subjetividade ganha, assim, um novo componente não afeto às estruturas racionais, operando com mecanismos cifrados - do Real -, os quais poderão ser indicados pela psicanálise. O sujeito é uma construção, não nasce assim, assim..., enfim não se auto-funda, até porque é filho de alguém que deve ceder seu lugar de filho, tem um nome pré-dado, e quando nomeado se aliena. Por sua história singular o sujeito pode redescobrir a constituição de sua subjetividade e se postar perante suas (im)possibilidades.

Por ter estrutura de ficção, o discurso jurídico se apressa a, retoricamente, destruir imaginariamente esta constatação, erigindo o princípio da busca da Verdade. Mas no registro do discurso não existe verdadeiro ou falso, salvo imaginariamente. A verdade processual não é nem objetiva, nem pura imaginação, transitando em julgado em um outro registro: o da realidade psíquica, muitas vezes dissociada do que retoricamente se assina. Um fantasma a persegue e se faz letra. A concentração de significantes exteriorizada na decisão, com seus jogos de palavras, lapsos, chistes e associações livres, desvela, velando, a estrutura psíquica. Do mesmo material significante  sacam-se muitas possibilidades. Uma prova, dependendo da situação, pode gerar posições diversas dependendo, em muito, das fantasias pessoais do um-juiz. Serão essas fantasias, o seu condicionante psíquico, as associações e experiências, que articularão o sentido. Caso desperte tais fantasias pode ocorrer a convocação para a implicação com o texto e, no caso dos Justiceiros, com sua missão imaginária de defenestrar o mal da terra. 

O perigo está, se o processo apresenta uma estrutura de ficção, em se aceitar comodamente o fato de os significantes se referirem à realidade, por mais paradoxal que possa parecer aos mais incautos. É no campo do discurso que se encontram, nada mais. Não possuem meta-linguagem. No campo do discurso é que ganham sentido conforme são articulados, e esta articulação, por sua vez, depende em certo grau da coerência retórica. E só. Todo processo amealha uma pletora de significantes que torna a tarefa de acertamento algo de difícil controle democrático, apesar das regras de produção de significantes, dado que as manhas de sentido podem ser habilmente invocadas, mesmo subliminarmente, para sacar - da beca-cartola - o sentido que (in)conscientemente se deseja.

No jogo de verdades que o processo apresenta, nada se dá por mera coincidência. Cada um dos juízes possui uma bagagem pessoal indissociável do seu histórico pessoal, com suas frustrações, angústias, medos e fantasias. Assim, este condicionante, de quem estipula a maneira pela qual os significantes serão postados, está na base do sentido que só surge mais tarde, porque o bem dito consciente esconde o mal dito que influencia na unidade e coerência da decisão.

Por evidente, a psicanálise não pode somar-se ao Direito como se fosse complementar um fosso de sentido. Pode, contudo, colaborar, desde que mantido seu campo de especificidade. Embora abordem o mesmo Direito, as respostas encontram-se condicionadas por significantes diversos e qualquer complementaridade iluminista, ou seja, primada pela razão moderna, é um retumbante equívoco. Daí que se pode falar, somente, de uma Jurisdição do Real, do que não pode ser inscrito no Simbólico, mas se faz presente.

 

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