A evolução do Direito empresarial e falimentar brasileiro


Portiagomodena- Postado em 10 junho 2019

Autores: 
Andrei Duque Lopes

1. INTRODUÇÃO:

O direito comercial sofreu profundas mudanças nas últimas décadas, não apenas no Brasil, como no mundo todo. O constante avanço socioeconômico e tecnológico intensificado, principalmente, com o advento da globalização, requereu uma contínua evolução dos conceitos, princípios e efeitos do ramo.

A própria doutrina consegue separar três fases do direito empresarial, quais sejam: subjetiva, objetiva e moderna. Cada uma destas fases, por sua vez, devidamente inserida em um contexto histórico e prático.

Obviamente, a própria ideia de devedores e credores, muito utilizada no direito falimentar, data de períodos anteriores a qualquer ordenamento de direito comercial, remontando ao antigo direito romano, onde um devedor poderia até mesmo se tornar um escravo de terceiro, graças à sua dívida.

No entanto, a evolução da sociedade criou sistemas para que se separassem o indivíduo de seu patrimônio e dívidas. Dessa forma, novos princípios nortearam o procedimento a ser adotado entre credores e devedores.

O surgimento e evolução do direito empresarial estão intrinsicamente ligados com estas relações, ainda mais no que se trata do direito falimentar. A própria evolução doutrinária caminhou, aos poucos, no intuito de não só viabilizar a falência, como também a recuperação judicial/extrajudicial e, portanto, permitir a preservação da empresa na medida do possível e de forma benéfica para todos os envolvidos.


2. FASES DO DIREITO COMERCIAL:

2.1 - 1ª FASE: SUBJETIVA - CORPORATIVA

Compreende a Idade Média e tem por contexto o mercantilismo, ressurgimento das cidades, a ampliação dos usos e costumes comerciais – marcada pela aglutinação dos comerciantes em torno das Corporações de Ofício.

O Direito Comercial amparava unicamente a classe dos comerciantes, daí esta ser considerada subjetiva.

O primeiro período ou fase de formação do Direito Empresarial é marcado pela aglutinação dos comerciantes em torno das chamadas Corporações de Ofício, através das quais buscam tutelar satisfatória e adequadamente as suas atividades. Marcado por forte subjetivismo, o Direito Comercial das Corporações tratava-se de um direito classista e corporativo, visto que amparava unicamente a classe dos comerciantes inscritos nas Corporações e submetidos às regras comerciais por eles próprios estabelecidas. Assim, estava-se diante de normas feitas pelos comerciantes e para os comerciantes. Com o surgimento dos ideais do liberalismo, expressados por movimentos como a própria Revolução Francesa de 1789, que idealizava sistema fundado na , não havia mais ambiente para a justiça classista das Corporações de Ofício, afinal, que igualdade havia naquele modelo?

Ademais, outros segmentos da sociedade já vinham pressionando as Corporações, para que seus juízes também julgassem matérias de cunho não comercial.

Nesta fase, a doutrina criou formas precursoras do atual direito falimentar, na medida em que havia regras especiais para a execução de devedores insolventes. Ainda assim, estas regras eram aplicadas de forma geral, sem especificar o tipo de devedor, comerciante ou não, e possuíam características extremamente repressivas.

2.2 - 2ª FASE: OBJETIVA – TEORIA DOS ATOS DE COMÉRCIO

Abrange a Idade Moderna (Sécs. XIX/XX), surgida com o Code de Commerce francês, em 1808. As relações mercantis não seriam mais definidas pela condição, ou não, de comerciante; mas, sim, pelos atos praticados, sempre que tipificados na lei como de comércio (atos de comércio).

Assim, não é difícil perceber que o Direito Comercial estaria mais voltado à proteção dos atos de comércio devidamente já elencados em rols taxativos e exaustivos.

Surge então a segunda fase de formação do Direito Empresarial, conhecida como Fase da Teoria dos Atos de Comércio. A segunda fase de formação do Direito Empresarial teve como principal protagonista o Code de Commerce francês, elaborado em 1808 pelos juristas de Napoleão Bonaparte. Aqui, houve o abandono do subjetivismo que marcou toda a primeira fase de formação do Direito Empresarial, o qual dá lugar à objetividade dos atos legais de comércio. A partir de então, as relações jurídicas mercantis não seriam mais definidas pela condição ou não de comerciante (elemento subjetivo), mas sim pelos atos por eles praticados, sempre que tipificados pela lei como atos de comércio. O diploma francês e sua Teoria dos Atos de Comércio viriam a se tornar referência em todo o mundo.

Ademais, o diploma napoleônico gerou grandes mudanças no direito falimentar, como ensina RAMOS (2013, p. 565):

Mas a codificação napoleônica [...], provocou uma profunda mudança no direito privado, dividindo-o em dois ramos autônomos e independentes, cada qual com um regime jurídico próprio para a disciplina de suas relações. O direito civil se consolidou como regime jurídico geral (direito comum) aplicável à quase totalidade das relações privadas, e o direito comercial se firmou como regime jurídico especial aplicável à disciplina das atividades mercantis, identificadas a partir da antiga teoria dos atos de comércio.

A mudança que o Code de Commerce de Napoleão trouxe para o direito comercial atingiu, consequentemente, o direito falimentar, que passou a constituir um conjunto de regras especiais, aplicáveis restritamente aos devedores insolventes que revestiam a qualidade de comerciantes. Para o devedor insolvente de natureza civil, não se aplicavam as regras do direito falimentar, mas as disposições constantes do regime jurídico geral, qual seja, o direito civil.

Observe-se, todavia, que a codificação napoleônica não chegou a alterar uma outra característica marcante do direito falimentar desde os seus primórdios: o caráter repressivo e punitivo do devedor.

Contudo, o progresso socioeconômico, advindos de eventos como o início da globalização, fez com que o direito falimentar mudasse seus conceitos acerca da falência, deixando de trata-la como um mero teor pejorativo, como se fosse uma culpa a ser punida fervorosamente.

A falência se tornou algo bem mais comum com o passar do tempo, uma vez que o próprio número de atividades comerciais se expandiu e, consequentemente, as “profissões” ou atividades que exerciam estes papéis. Com isso em mente, era mais vantajoso existirem métodos que garantissem a permanência dos comerciantes em suas atividades, visto que a atividade mercantil/comercial movimentava a economia e a sociedade como um todo.

Logo, deixou-se de lado o caráter necessariamente repressivo e punitivo do devedor, dando espaço ao conceito de preservação da empresa. Dessa forma, o foco não estava mais em apenas liquidar os bens do devedor e pagar os credores, mas sim na possível recuperação da crise empresarial, a fim de se manter o empresário em sua atividade, gerando lucros.

MAS, ONDE FICA O BRASIL EM TODO ESSE CONTEXTO?

No Brasil, mais especificamente em 1850, foi editado o nosso Código Comercial inspirado na Teoria dos Atos de Comércio. Ele descrevia comerciante como aquele que praticava mercancia, todavia, sem definir esta. Assim, coube ao Regulamento 737, também de 1850, elencar quais os atos considerados de comércio (exemplo: compra e venda de imóveis, câmbio, operações de seguro, transporte de mercadorias, etc). Assim, só seriam considerados atos de comércio, contando assim com a proteção das normas do diploma comercial pátrio, aqueles atos expressamente definidos como tal. Sem embargo, por estar a Teoria dos Atos de Comércio dotada de um perfil estático, esta não era capaz de acompanhar a evolução da atividade mercantil. Dessa forma, o Código Comercial de 1850 não definia os atos de comércio.

A complexidade da economia capitalista, marcada por elementos como a forte concorrência e a produção em escala, fez surgir novas formas mercantis que, embora dotadas de toda feição mercantil, estavam excluídas da proteção das leis

comerciais, haja vista não integrarem o rol taxativo dos atos elencados na lei como atos de comércio. É o caso, por exemplo, das atividades de prestação de serviços em massa, as quais, ao não integrarem a lista do Regulamento 737, eram regidas por legislação comum, não desfrutando assim da mesma proteção conferida àqueles atos enumerados pela legislação comercial.

Diante desse cenário, seguidas leis foram promulgadas com o escopo de reconhecer o caráter comercial das novas relações mercantis, alargando assim o âmbito de atuação da legislação comercial. É o caso da Lei 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), da Lei 5.474/68 (Lei das Duplicatas), da Lei 7.357/85 (Lei do cheque), da Lei 8.078/90 (CDC), da Lei 8.955/94 (Lei de Franquias), etc. Mas, mesmo com a crescente alteração da legislação nacional, o Direito Comercial permaneceu por longo período vinculado a arcaica Teoria dos Atos de Comércio, não acompanhando assim as mudanças na matéria que vinham ocorrendo em todo o mundo.

Já no escopo falimentar, a legislação brasileira também encontrou problemas sérios de atualização. Inicialmente, a terceira parte do Código Comercial de 1850 tratava “das quebras”, o que era, basicamente, o arcabouço jurídico falimentar até então. Já a parte processual foi regulada separadamente, no mesmo ano de 1850, por meio do Regulamento 738.

Posteriormente, entretanto, as críticas doutrinárias levaram a alteração legislativa, que só veio ocorrer 40 anos depois, com a outorga do Decreto 917/1890. Este decreto “aboliu o sistema de cessação de pagamentos e adotou os sistemas de impontualidade e da enumeração legal como critérios para a insolvência do devedor, além de ter trazido profundas mudanças na parte terceira do Código Comercial” (RAMOS, 2013, p.567).

As mudanças não pararam por aí, uma vez que a o decreto foi seguido por uma série de outras leis e decretos, com mudanças diversas. Essas constantes mudanças só se acalmaram com a edição do Decreto Lei 7.661/45, que conduziu a matéria de direito falimentar durante 60 anos.

2.3 3ª FASE: MODERNA – TEORIA DA EMPRESA

Corresponde à Idade Contemporânea, tem como marco o Código Civil Italiano, de 1942. Tem como principal papel aquele exercido pela empresa na

Sociedade, qual seja, o de atividade econômica organizada de circulação e produção.

Logo, nesta fase atual do Direito Comercial, por lógico que a proteção deste se dá em relação às Empresas como atividades econômicas organizadas.

Foi na Itália que, com a promulgação do Codice Civile de 1942, consagrou a terceira e última fase de formação do Direito Empresarial, até hoje vigente, a chamada Fase da Teoria da Empresa. De acordo com essa teoria, o amparo do Direito Comercial não decorreria mais da condição ou não de comerciante (ou seja, do subjetivismo, como nas Corporações de Ofício), não dependeria mais da presença ou não do ato em uma lista (ou seja, do objetivismo, como na Teoria dos Atos de Comércio), mas sim da caracterização ou não da atividade como empresária.

A Teoria da Empresa teve a sua efetiva inserção no ordenamento brasileiro apenas com o advento da Lei 10.406/02 (novo Código Civil), o qual derrogou a primeira parte do Código Comercial de 1850, inserindo o Brasil na terceira fase de formação do Direito de Empresa.

Outrossim, as mudanças constantes decorrentes do processo de globalização da economia criaram efeitos no Brasil, ao ponto de ser tornar necessária uma nova reformulação da legislação falimentar nacional.

O projeto de lei que deu origem à Lei 11.101/2005 foi apresentado ainda em 1993, no governo de Itamar Franco, mas passou mais de 10 (dez) anos em tramitação no Congresso Nacional, onde foi alvo de proposições de diversas emendas e substituições.

Interessante, ainda, o fato de estudo patrocinado pelo Banco Mundial ter demonstrando a insegurança do crédito em nosso país e a necessidade de distinguir empresa e empresário. O que acabou contribuindo ao advento da Lei 11.101/2005.

Por sua vez, a Lei 11.101/2005 sofreu profunda influência do princípio da preservação da empresa, até porque, segundo parte da doutrina, esse princípio teria origem na própria Constituição Federal de 1988, ao acolher a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa como princípios jurídicos fundamentais. Entre as diversas mudanças que a Lei de Recuperação de Empresas trouxe, RAMOS (2013, p. 568) cita:

(i) a substituição da ultrapassada figura da concordata pelo instituto da recuperação judicial; (ii) o aumento do prazo de contestação, de 24 horas para 10 dias; (iii) a exigência de que a impontualidade injustificada que embasa o pedido de falência seja relativa à dívida superior a 40 salários mínimos; (iv) a redução da participação do Ministério Público no processo falimentar; (v) a alteração de regras relativas ao síndico, que passa a ser chamado agora de administrador judicial; (vi) a mudança na ordem de classificação dos créditos e a previsão de créditos extraconcursais; (vii) a alteração nas regras relativas à ação revocatória; (viii) o fim da medida cautelar de verificação de contas; (ix) o fim do inquérito judicial para apuração de crime falimentar; e (x) a criação da figura da recuperação extrajudicial.


3. CONCLUSÃO:

De uma forma geral, e não apenas no contexto brasileiro, o direito empresarial/comercial evoluiu ao longo do tempo de uma forma benéfica aos devedores, sem trazer danos aos direitos dos credores. Limites foram criados para que o devedor, seja insolvente ou não, não fosse obrigado a arcar com um encargo fora de suas capacidades.

Essa evolução só foi possível em razão das diversas mudanças doutrinárias acerca da figura do empresário/comerciante, da atividade empresarial e, obviamente, dos conceitos acerca da falência.

Inicialmente, o direito falimentar adotava uma visão pejorativa daqueles que estavam correndo o risco de falência, não havia sequer o mínimo interesse em proteger qualquer direito do devedor ou lhe garantir meios acessíveis de lidar com suas dívidas. O caráter punitivo e repressivo do direito falimentar era sua maior característica.

Entretanto, essa visão deu espaço a novas concepções de falência. A sociedade evoluiu ao ponto de notar que era mais vantajoso o indivíduo permanecer em sua atividade comercial/empresarial do que ser obrigado a liquida-la para arcar com dívidas corriqueiras. Já não importava tanto o critério de urgência do pagamento das dívidas, mas sim o caminho mais proveitoso para todos os envolvidos, bem como ao interesse público.

Os procedimentos de recuperação judicial e extrajudicial são um claro exemplo recente disto. O interesse público pela preservação da atividade empresarial é tão evidente que o próprio judiciário brasileiro facilita, na medida do possível, o procedimento envolvendo recuperações. A falência, por sua vez, vira um

instituto subsidiário, utilizado apenas quando os outros, mais benéficos, são inviáveis no caso concreto.

Destarte, o direito falimentar caminha, até então, a um objetivo antagônico de seu nome. O interesse envolvido não é apenas em lidar sobre a matéria do direito falimentar por si só, tratando dos procedimentos que levam à falência; mas sim a de todos os meios possíveis para que essa eventual falência seja evitada. Não se busca delimitar a aplicação ao seu fim, mas sim ao procedimento como um todo.

Ironicamente, o ramo do direito que foi criado para lidar com falência em sua forma explícita, evoluiu ao ponto de discorrer mais sobre todas as formas de se evitar esse fim.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito societário, volume 1 – 5. ed. – São Paulo: Atlas, 2013.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito empresarial esquematizado. – 4. Ed. ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014.

BRASIL. Lei nº. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm>. Acesso em 23/06/2018.