A falácia da dosagem da pena: o "ovo da serpente"


Porbarbara_montibeller- Postado em 26 abril 2012

Autores: 
VICTÓRIO, Diorgeres de Assis

O presente artigo tem por objetivo auxiliar àqueles que militam na área da execução penal, tendo em vista que não há nas academias, via de regra, a cadeira de execução penal, o que vem a ocasionar uma grande dificuldade de militância frutífera nessa área, por deficiência quando da formação. Efetuará uma crítica quanto à má aplicação do artigo 59 do Código Penal[1] que versa sobre a aplicação da pena e consequentemente sua influência nefasta na execução penal.


DA PROBLEMÁTICA DA PERSONALIDADE

Observamos que, as penas são dosadas, a personalidade é aferida, mas não há no processo, um laudo de um psiquiatra. O exame de personalidade aqui tratado já na execução penal é submetido a esquemas técnicos de maior profundidade nos campos morfológicos, funcional e psíquico (...), sendo seu objetivo é o conhecimento amplo e profundo da pessoa do apenado, da personalidade do apenado, enquanto pessoa, sendo que a realização do exame de personalidade seria medida imprescindível (...), mas entendo que não somente deve ser feito para um procedimento científico de classificação dos apenados e de individualização da pena, como prega Alvino[2] (g.n.). Vou um pouco mais longe, entendo que deve ser feito quando da dosagem da pena. Deve o juiz determinar que um profissional técnico avalie a personalidade do agente. Isso deve ser feito, para que o magistrado quando da dosagem na pena, não dose a pena sem que haja uma verdadeira análise da personalidade da pessoa presa. Posteriormente, já no exame criminológico e nos outros exames que existem quando da inclusão no sistema, quando devidamente determinado e muito bem fundamentado pelo juiz da execução, for constatado que a pessoa presa apresenta problemas, na sua personalidade, que o impedem de progredir de pena, poderemos aí sim, verificar na dosagem da pena, se foi realmente constatada ou se a personalidade dessa pessoa foi alterada em virtude da prisionização ou de outras mazelas do cárcere.

[...] Ora, a personalidade não é um conceito jurídico, mas do âmbito de outras ciências – Psicologia, Psiquiatria, Antropologia – e deve ser entendida como um complexo de características individuais próprias, adquiridas, que determinam ou influenciam o comportamento do sujeito. [...] O exame de personalidade, de outro lado, não pode ser feito a contento pelo juiz, no âmbito restrito do processo penal, sem o concurso de especialistas - psiquiatras, psicólogos e etc. O magistrado não é formado e preparado para o exame aprofundado de características psíquicas do homem, e permitir-lhe exame apenas superficial, para um desiderato tão grave – perda liberdade -, seria de uma leviandade inaceitável num ordenamento jurídico democrático e sério. Facultar ao juiz a consideração sobre a personalidade do condenado importa em conceder ao julgador um poder quase divino, de invadir toda a alma do indivíduo, para julgá-la e aplicar-lhe a pena pelo que ela é, e não pelo que ele, homem, fez.[3] .


DECISÕES DO CNJ NO MUTIRÃO

A missão do CNJ foi denominada de “Mutirão Carcerário” e possuía objetivos bem claros, dentre os quais “garantia do devido processo legal - revisão das prisões”[4] dentre outras. Analisamos vinte e duas decisões do CNJ que versavam sobre benefícios e que muitas vezes “tratavam da personalidade” da pessoa presa, assim como falavam de exame criminológico, assim como fora analisada uma sentença a fim de verificarmos a dosagem da pena efetuada pelo magistrado e verificar sua influência quando da análise dos benefícios.

A decisão da “execução penal” 593.408, consta que o sentenciado foi condenado por crime grave que, por suas circunstâncias revela sua alta periculosidade. Se nessa decisão constou que o preso possui esse grau de periculosidade, sem sombra de dúvidas, essa informação deve ter sido tirada da sentença da condenação, quando da dosagem da pena, do artigo 59, do CP. Vejamos:

(...)  passo a dosar a pena.

Na primeira fase, atendendo aos critérios estabelecidos no artigo 59 do Código Penal, fixo a pena base no mínimo legal, ou seja, 04 quatros anos de reclusão e

pagamento de 10 (dez) dias de multa, fixados no valor mínimo legal (Autos n° 290/10 da 2ª Vara Judicial da Comarca de Monguaguá)

Na verdade não foi analisado, nenhum dos “requisitos” do artigo 59 do CP.

[...] tanto a falta de apresentação de qualquer justificação como a fundamentação incompleta, não dialética, contraditória, incongruente ou sem correspondência com o que consta dos autos, em relação à aplicação da pena, devem levar ao reconhecimento da nulidade da própria sentença condenatória, pois na verdade é a motivação desta que estará incompleta, na medida em que um dos pontos sobre o qual deveria versar não ficou devidamente fundamentado[5]. Deve o magistrado motivar as oito circunstâncias judiciais.


DOS OUTROS MOTIVOS PARA OS INDEFERIMENTOS

Na decisão da progressão de regime da execução 593.408, observamos que “não há o requisito subjetivo, pois o sentenciado teria sido condenado por crime grave que, por suas circunstâncias, revela sua alta periculosidade. Teria o sentenciado em concurso de agentes, praticado crime de roubo a residência e em circunstâncias que causaram desnecessário sofrimento à vítima, que teria sido amarrada e agredida com socos e chutes. Conforme se observa nos autos é absoluta prematura a colocação do(a) sentenciado(a) no regime com menor fiscalização, devendo ele(a) permanecer em regime fechado, com boa conduta, para demonstrar real mérito que lhe permita ter condições de, aos poucos, retornar a liberdade. Atualmente, a progressão é precoce. O(a) sentenciado(a) necessita permanecer mais tempo no regime mais rigoroso, com comportamento satisfatório e apto a indicar que terá condições de conviver em sociedade e que não voltará a praticar ilícitos. Impõe-se dessa forma, sua permanência em cárcere por maior tempo, até que demonstre ter condições de retornar ao convívio social. Indefiro, assim, a concessão de qualquer benefício ao sentenciado”.

Algumas dúvidas nos surgem quanto à decisão. Diz a mesma que, pelo fato de ter sido condenado por crime grave, que por suas circunstâncias, revela sua alta periculosidade.

Bem, o crime grave, não é motivo para indeferimento do benefício, e esse entendimento já está mais que pacificado em nossa jurisprudência, vejamos:

[...]"a concessão do benefício não pode levar em conta o que ocorreu no passado, mas apenas se estão reunidos os requisitos necessários, legalmente explicitados.[...] (Agravo em Execução Penal n° 473.684-3/7-00, 3a Câmara do TJSP, Rel. Des. Junqueira Sangirardi, j. 14.06.2005, RT 842/531)."

Agindo assim, desrespeitaríamos o Bis In Idem, pois estaria a pessoa presa sendo punida duas vezes, pelo mesmo fato, ou seja, o crime grave. Esse “requisito” para indeferimento sempre estará presente para outros indeferimentos, pois integra o crime praticado, assim, ela nunca progredirá de regime. Essa pessoa já foi apenada com a quantidade de dias, que deverá ficar encarcerada, pelo fato do “crime grave”. A parte da decisão que fala que, pelo fato de ter sido condenado por crime grave que, por suas circunstâncias, revela sua alta periculosidade, nos causa estranheza. A existência de periculosidade só pode constatada por pessoa com formação acadêmica na área. As decisões das execuções 665.929, 642.929, 510.073, 792.079, 653.142, 619.035, 530.817, 647.067, 470.453, 546.405, 751.842 e 665.971 são idênticas e prolatadas por cinco juízes. As decisões das execuções 765.944 e 840.542 são quase idênticas as citadas anteriormente mudando-se apenas algumas palavras e acrescentando-se poucas coisas.

As decisões das execuções 665.971, 751.842, 530.817, 546.405, 665.929, 765.944, 642.929, 510.073, 792.079, 653.142, 619.035, 530.817, 647.067, 470.453, apresentam alguns pontos interessantes. Dizem as mesmas que os sentenciados apresentam pena longa a cumprir pela prática de crime(s) grave(s). Depois nas mesmas decisões dizem que “aquele que pratica crimes muitos graves, deve, ao contrário do sustentado, demonstrar que não o fará ou, pelo menos, que a terapêutica penal já contribuiu para modificação de sua personalidade”. Como poderá uma pessoa que está condenada por crime(s) grave(s) demonstrar que não mais o fará? Como a terapêutica penal poderá contribuir para a modificação de sua personalidade? Que tipo de personalidade é essa que tem que ser modificada? De onde foram tiradas essas informações quanto à análise da personalidade dessa pessoa presa?

Posteriormente dizem “que o mesmo praticou crime(s) grave(s), de modo que não entronizou a terapêutica decorrente da pena e da prisão, razão pela qual não há possibilidade de concessão de benefício(s)."

Então quando ele pratica crime grave ele não entroniza a terapêutica decorrente da pena e da prisão e isso impossibilita a concessão de benefícios? O impedimento sempre estará presente.

Nas decisões das execuções penais[6] 792.079, 653.142, 619.035, 765.944, 546.405 e 840.542 também dizem que não é caso de realização de exame criminológico, pois a personalidade do agente indica que ele deve primeiro demonstrar que vem assimilando a terapêutica penal para, ao depois, galgar benefícios. Essas decisões sendo prolatadas por dois juízes diferentes. Outra dúvida. Como podem dizer nas decisões que não são casos de realizações de exames criminológicos e dizer que as personalidades dos agentes indicam que eles devem primeiro demonstrar que vem assimilando a terapêutica penal para, ao depois, galgar benefícios? Como pode na decisão falar da personalidade sem que haja um “laudo” de um técnico, e que não há a necessidade de se fazer o exame criminológico?

No final das decisões constam os fundamentos para os indeferimentos, seriam os mesmos, o tempo da pena a cumprir, a gravidade do(s) delito(s) e a ausência de demonstração inequívoca de méritos, indeferindo a concessão de benesses ao sentenciado. É uma decisão coletiva, capaz de indeferir todos os benefícios dos quais o educando venha a possuir, seja ela, remição de pena, seja ela pelo trabalho ou pelo estudo, indulto, comutação, semiaberto, aberto e livramento condicional. (g.n.)

Concluímos que os magistrados na têm condições de efetuar a dosagem da pena sem que sejam auxiliados por um profissional, a fim de que, este analise a personalidade do réu, e assim, auxilie o magistrado na dosagem da pena com o “laudo” que produzira. A análise da personalidade é importante para que posteriormente, quando dos posteriores “exames”, conforme determina a LEP[7] possamos comparar, se ocorrera uma “evolução”, ou uma “regressão” na personalidade.  As decisões prolatadas em sede do mutirão carcerário devem ser revistas em razão de terem sidos desrespeitados os direitos e garantias fundamentais da pessoa presa. Esperamos que decisões análogas a essas aqui abordadas, não tenham sido prolatadas em muitas execuções, durante não somente no mutirão em São Paulo, mas em todo o Brasil.

Vejamos o que os nossos Tribunais têm a nos dizer sobre esse tema:

Entendimento firmado no Supremo Tribunal quanto, a apenas dizer que é “facultativa a realização de exames criminológicos para a aferição da personalidade e do grau de periculosidade do sentenciado [...]sendo “inclusive [...] um direito ao preso, consagrado na Seção II, art. 41, inciso VII, da Lei nº 7.210/84”. (HC 111416/SP-SÃO PAULO (RELATOR: Min. Luiz Fux -Julgamento: 05/12/2011) (g.n.) HC 82.052/DF – Rel. Ministro Celso de Mello – Segunda Turma) Habeas Corpus n. 85.963, Rel. Ministro Celso de Mello, DJ 27.10.2006). (HABEAS CORPUS 108.279 RIO DE JANEIRO RELATORA :MIN. CÁRMEN LÚCIA PACTE.(S) :SEBASTIÃO PAULO RODRIGUES IMPTE.(S) :MARCELO DA SILVA CÂNDIDO COATOR(A/S)(ES) :RELATOR DO HC Nº 151020 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA)


DO INDEFERIMENTO COMBINADO COM O DEFERIMENTO.

Muito interessante é a decisão da execução 593.233. O indeferimento na data de 21/11/2011 partiu do mutirão com fundamento na personalidade violenta do sentenciado, sendo que posteriormente, quando do retorno da execução penal a VEC competente, o juízo em 30/01/2012 deferiu o mesmo benefício, e com fundamento na conduta e no exame criminológico favorável.

Quando não houver uma análise da personalidade da pessoa feita por um profissional, a aplicação da pena estará incompleta. E com isso, nunca poderemos reintegrar o homem de volta a sociedade, pois não teremos condições de “mensurar” a sua personalidade e verificar um método para a reintegração social.

Já dizia minha saudosa avó: o “bolo” só ficará bom, se tivermos em mãos, todos os “ingredientes” da “receita”.


Referências bibliográficas

BRASIL. Congresso Nacional. Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal.

BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal.

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2001.

SÁ, Alvino A. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral – II, arts 32 a 120 do Código Penal: teoria geral da pena, medidas de segurança e extinção da punibilidade, suspensão condicional do processo, prescrição. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 1998.


 

Notas

(1) Essa terminologia foi empregada a fim de frisar a problemática gerada em virtude de uma má aplicação de pena, que sem sombra de dúvidas afeta o cumprimento de pena, principalmente quando dos “exames criminológicos”.

(2) BRASIL. Congresso Nacional. Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal.

(3) SÁ, Alvino A. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

(4) TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral – II, arts 32 a 120 do Código Penal: teoria geral da pena, medidas de segurança e extinção da punibilidade, suspensão condicional do processo, prescrição. 2ª Ed. São Paulo: Atlas, 1998

(5) BRASIL. Conselho Nacional de Justiça.

(6) GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2001.

(7) O termo muito empregado em São Paulo é “Execução Criminal”. Inclusive as Vara são denominadas como Varas de Execuções Criminais, as “VECs”.

(8) BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal.