Globalização e Estado: dimensões e dilemas


Porrafael- Postado em 07 dezembro 2011

Autores: 
FURMANN, Ivan

Globalização e Estado: dimensões e dilemas

Abordam-se as faces do Estado atual com seus desafios ambientais, econômicos, sociais e relativos ao multiculturalismo, perquirindo sobre um possível desaparecimento do Estado-nação.

RESUMO: Para compreender a globalização e suas implicações no conceito de Estado é necessário observar todas as dimensões do fenômeno, bem como os impactos na própria estrutura estatal. Nesse sentido, um olhar apurado sobre as dimensões da globalização orienta a reorganização da luta por direitos e dos problemas a serem enfrentados para efetivá-los. Assim, tanto as políticas do multiculturalismo como a defesa do Estado como garantidor de direitos revelam-se de suma importância no momento histórico atual.

Palavras-Chave: globalização – estado – multiculturalismo – dimensões


1. GLOBALIZAÇÃO: ENTRE CONCEITO SOCIOLÓGICO E O PROCESSO HISTÓRICO.

A globalização não é um fenômeno fácil de ser explicado. Existe uma multiplicidade de conceitos e de pontos de vista diferentes sobre o tema. Mister, por isso, apontar o que se compreende com o termo "globalização" como premissa para entender suas conseqüências. Anthony Giddens sintetiza brilhantemente um conceito de globalização ao afirmar que ela é a "intensificação das relações sociais em escala mundial" (GIDDENS, 2008, p.61). Essa idéia simples, remete a perspectiva de "uma crescente interconexão em vários níveis da vida cotidiana a diversos lugares longínquos no mundo" (LIMA, 2002, p.125). Daí o empenho dos pesquisadores em desvendar "os nexos políticos, econômicos, geoeconômicos, geopolíticos, culturais, religiosos, lingüísticos, étnicos, racionais e todos os que articulam e tencionam as sociedades nacionais, em âmbito internacional, regional, multinacional, transnacional ou mundial." (IANNI, 2006, p.30).

Globalização é normalmente associada a processos econômicos, como a circulação de capitais, a ampliação dos mercados ou integração produtiva em escala mundial. Mas descreve também fenômenos da esfera social, como a criação e expansão de instituições supranacionais, a universalização de padrões culturais e o equacionamento de questões concernentes à totalidade do planeta (meio ambiente, desarmamento nuclear, crescimento populacional, direitos humanos etc.) Assim, o termo tem designado a crescente transnacionaliação das relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ocorrem no mundo, sobretudo nos últimos 20 anos. (VIEIRA, 2002, p.72-3)

Logo, o processo de globalização é polifacético, com diversas dimensões, desde econômicas, sociais, políticas, culturais, até religiosas e jurídicas, que são combinadas das maneiras mais complexas. "Además, debido a su complejidad, variedad y amplitud, el proceso de globalización está conectado a otras transformaciones en el sistema mundial que sin embargo no son reducibles a él, tales como la creciente desigualdad a nivel mundial, la explosión demográfica, la catástrofe ambiental, la proliferación de armas de destrucción masiva, la democracia formal como condición de asistencia internacional a países periféricos y semiperiféricos, etc." (SANTOS, Boaventura, 1998, p.39)

A globalização aparece sobre as mais diversas dimensões, porém para análise é preciso delimitá-las. Uma classificação operativa dessas dimensões é a Liszt Vieira, apontando que existem cinco dimensões da globalização: a) econômica; b) política; c) social; d) ambiental; e) cultural (VIEIRA, 2002, p.80 e Ss.). Essa classificação, que não se pretende inesgotável, destaca o papel da economia e da cultura dentro do processo de globalização.

O principal deles é o econômico, que se refere a novos padrões de comércio, investimento, produção e empreendimento. Um segundo tipo, geralmente derivado do primeiro, é o sócio-político, concentrando-se no papel cada vez menor do estado e de um tipo de organização social a ele associada. Em terceiro lugar, a globalização surgiu como centro de um discurso e de um protesto sócio-críticos, como uma nova forma que assumem as forças adversas: o inimigo da justiça social e de valores culturais particulares. Há outros dois outros discursos, mais especializados, mas igualmente importantes. Existe o discurso cultural, dos estudos antropológicos e culturais, que apresenta a globalização como fluxos, encontros e hibridismo culturais. Por fim, como responsabilidade social, a globalização é parte de um discurso ecológico e de preocupações ambientais planetárias. (THERBORN, 2001).

Dimensão Econômica: Normalmente a globalização é apontada como um fenômeno econômico. Tal ênfase está relacionada à autonomia adquirida pela Economia em relação à política nas últimas três décadas (FARIA, 2004, p. 59) em decorrência da internacionalização do capital. No discurso oficial a política econômica dirige os interesses públicos, no sentido de guiar o Estado para possibilitar à participação na produção internacionalizada de bens. Para tanto os países devem se acomodar as demandas do mercado e dos investimentos internacionais. Assim, a abertura econômica é um imperativo de participação no desenvolvimento social proveniente das conquistas do capitalismo. É possível vislumbrar, por esse elo econômico da globalização, mudanças no cotidiano das pessoas. Os bens de consumo passam a ser produzidos predominantemente por conglomerados de empresas multinacionais. Estes, por sua vez, exercem cada vez maior controle sobre a produção de bens.

Las implicaciones de estas transformaciones para la política económica pueden ser expresadas de la siguiente manera: las economías nacionales deben estar abiertas al comercio, y los precios domésticos deben estar conformes con los precios internacionales del mercado; las políticas fiscal y monetaria deben estar prudentemente dirigidas al mantenimiento del precio y a la estabilidad de la balanza de pagos; los derechos de propiedad privada deben ser claros e inviolables; las empresas productivas de propiedad del Estado deben ser privatizadas; la toma de decisiones privada, guiada por precios no distorsionados, debe dictar los patrones nacionales de especialización, distribución de recursos y remuneración de factores de producción, con regulación o política sectorial gubernamentales mínimas; el presupuesto gubernamental residual debe ser dirigido a una política educativa y social con propósitos definidos. (SANTOS, Boaventura, 1998, p.40)

Portanto, pode-se afirmar que a internacionalização do capital e da produção de bens é o cerne do conceito de globalização em termos econômicos. Com essa dimensão da globalização ocorreu: a) a liberalização dos mercados de capitais, permitindo que os capitais transfiram-se para locais que gerem maiores rendimentos; b) a eliminação de barreiras comerciais entre os Estados; e, ainda, c) a produção independentemente das fronteiras nacionais e continentais (HOBSBAWN, 2009, p. 62-63). Por isso, a busca incessante pelo lucro diferenciado (e sempre crescente), gera a produção compartilhada internacionalmente, situação favorecida pelas técnicas de comunicação e transporte (cf. SANTOS, Milton, 2006, p. 26).

Em termos históricos, o processo de globalização não pode ser situado fora do capitalismo, entretanto, como Marx apontava, é próprio do capitalismo internacionalizar-se, desde o século XIX. "A burguesia, através da exploração do mercado mundial, deu um caráter cosmopolita para produção e o consumo em todos os países (...) No lugar da antiga reclusão e auto-suficiência local e nacional, temos conexões em todas as direções, uma interdependência universal das nações." (MARX; ENGELS, 1998, p. 14-15). O que diferencia a internacionalização do capitalismo do período da globalização é a intensificação das relações econômicas. Tais idéias surgem, em especial, no pós-guerra, que pode ser simbolicamente demarcado com o consenso de Washington [01]. Porém, é só a partir da década de 70 que se assiste a mudança de paradigma econômico, da concepção de "industrialização substitutiva de importações" para a "industrialização orientada para a exportação" (IANNI, 2006, p. 61). Observe-se tal fenômeno nas palavras do historiador Eric Hobsbawn:

(...) os EUA, que tinham sido em grande parte auto-suficientes antes da Segunda Guerra Mundial, quadruplicaram suas exportações para o resto do mundo entre 1950 e 1970, mas também se tornaram um maciço importador de bens de consumo a partir do final da década de 1950. Em fins da década de 1960, começaram até a importar automóveis. Contudo, embora as economias industriais comprassem e vendessem cada vez mais suas respectivas produções, o grosso de suas atividades econômicas continuou centrado no mercado interno. No auge da Era de Ouro, os EUA exportaram apenas pouco menos de 8% de seu PIB, e, mais surpreendentemente, o Japão, tão voltado para a exportação, só um pouco mais." (HOBSBAWM, 2003, p. 271-2)

Entre 1965 e 1990, a porcentagem do produto mundial destinado às exportações iria duplicar (World Development, 1992, p. 235). Três aspectos dessa transnacionalização foram particularmente óbvios: as empresas transnacionais (muitas vezes conhecidas como "multinacionais"), a nova divisão internacional do trabalho e o aumento de financiamento offshore (externo). Este último foi não só uma das primeiras formas de transnacionalismo a desenvolver-se, mas também uma das que demonstraram mais vividamente a maneira como a economia capitalista escapava do controle nacional, ou de qualquer outro. (HOBSBAWM, 2003, p. 272)

Essa globalização econômica, que pode ser constatada por qualquer um que verifique as origens nacionais de produtos vendidos num centro comercial norte-americano, desenvolveu-se lentamente na década de 1960 e se acelerou de modo impressionante durante as décadas de perturbações econômicas mundiais após 1973. A rapidez com que avançou pode ser ilustrada mais uma vez pela Coréia do Sul, que no fim da década de 1950 ainda tinha quase 80% de sua população trabalhadora na agricultura, da qual extraía quase três quartos da renda nacional. Inaugurou o primeiro de seus planos qüinqüenais de desenvolvimento em 1962. Em fins da década de 1980, extraía apenas 10% de seu PIB da agricultura e tornara-se a oitava economia industrial do mundo não comunista. (HOBSBAWM, 2003, p. 354)

Pode-se afirmar que as transformações históricas que levaram a intensificação do fenômeno da globalização foram: a) a suplantação do espaço parcelado dos três mundos (primeiro, segundo e terceiro) por outro unificado em torno do mercado mundial capitalista; b) o surgimento do fenômeno complementar de macrorregionalização do mundo, ao redor de três principais áreas: América do Norte, Europa Ocidental e Ásia Oriental, e outras secundárias; c) a destruição dos anteriores Segundo e Terceiro Mundos, dando lugar a uma nova polarização internacional entre países semi-industriais (de crescente peso na economia mundial) e países pré-industriais marginalizados. (VIEIRA, 2002, p.78).

Em conseqüência do processo de globalização em sua dimensão econômica, o planeta tornou-se um grande mercado, aonde o capital transita, preferencialmente nos espaços que não encontra barreiras. Para os economistas e o mundo foi redesenhado, agora sob o vértice econômico (do ponto de vista das finanças, pouco importando as fronteiras geográficas-nacionais). (OHMAE, 1996).

Em contraposição, as linhas divisórias territoriais que fazem sentido pertencem ao que denomino "Estados-regiões" (...) são essas as zonas econômicas naturais. Embora limitadas no tamanho geográfico, sua influência econômica costuma ser enorme. (...) podem ou não enquadrar-se nas fronteiras de uma nação específica. O fato de se enquadrarem ou não é puramente um acidente da história (...) a população, então, não é a questão-chave. O mais importante é que cada Estado-região possua, em uma ou outra combinação, os ingredientes básicos para a participação bem-sucedida na economia global. (OHMAE, 1996, p. 74-5).

Dimensão Política: em termos políticos, o termo globalização remete a idéia de crise do Estado nacional. Nesse sentido, a figura do Estado-nação teria perdido suas características elementares em favor de novas formas de poderes, ou seja, perdeu sua capacidade de gestão pública:

A nova divisão internacional do trabalho, contribui para o esforço desde poder, eis que o processo de produção sendo realizado em vários países, em certa medida, torna obsoletas as fronteiras dos Estados, mitigando cada vez mais o poder dos mesmos e consolidando de forma crescente o poder das empresas transnacionais, [...]. (LIMA, 2002, p. 151-152).

A China talvez seja um exemplo extremo, mas o veredicto é universalmente aplicável: os antigos meios de controle não mais funcionam e já não podem ser usados com impunidade. Eles simplesmente espantarão a economia global e a participação ativa dessa economia é essencial para o desenvolvimento num mundo sem fronteiras. A não ser que optem por isolar-se dela inteiramente, como a Coréia do Norte tem mais ou menos feito (embora recursos continuem afluindo, não-oficialmente, é claro, das vendas de armas ao exterior e do grande número de coreanos no Japão), os governos perderam simplesmente o poder de manter à distância os mercados de capitais globais. Ao mesmo tempo, eles ainda detêm — mas estão gradualmente perdendo — o poder de manter seus mercados internos fechados aos produtos estrangeiros e à participação direta de empresas estrangeiras. (OHMAE, 1996, p. 69).

Com o surgimento dos grandes grupos econômicos ocorreu certo deslocamento de parcela do poder dos Estados para os grandes conglomerados, aliados, por vezes, por Estados fortes e, ainda, pelos organismos internacionais (Fundo Monetário Internacional). As grandes empresas estariam em posição privilegiada em termos de negociação, requerendo expressivas concessões para a permanência em país periféricos.

Ao lado dos Estados nacionais, mesmo os mais fortes, já se colocam e impõem as corporações transnacionais, que se transformaram inclusive em estruturas mundiais de poder. (IANNI, 2006, p. 186).

O outro instrumento de ação internacional era igualmente, senão mais, protegido contra Estados-nações e democracias. A autoridade dos organismos financeiros internacionais estabelecidos depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Apoiados pela oligarquia dos grandes países capitalistas, que, sob o vago rótulo de "Grupo dos Sete", se tornaram cada vez mais institucionalizados a partir da década de 1970, eles adquiriram crescente autoridade durante as Décadas de Crise, à medida que as incontroláveis incertezas das trocas globais, a crise da dívida do Terceiro Mundo e, após 1989, o colapso das economias do bloco soviético tornaram um número cada vez maior de países dependentes da disposição dos países ricos de conceder-lhes empréstimos. Esses empréstimos eram cada vez mais condicionados à busca local de políticas agradáveis às autoridades bancárias globais. O triunfo da teologia neoliberal na década de 1980 na verdade traduziu-se em políticas de privatização sistemática e capitalismo de livre mercado impostas a governos demasiado falidos para resistir-lhes, fossem elas imediatamente relevantes para seus problemas econômicos ou não (HOBSBAWM, 2003, p. 420).

Dentre as características do Estado Nacional que estariam em crise, pode-se destacar a soberania. O Estado teria perdido a capacidade gerir a economia pela vontade política. Portanto, deixando de ser um ente soberano para ser um ente subordinado a vontade internacional. A partir desse discurso justificam-se as privatizações de empresas públicas, com a passagem de seus ativos para o capital privado, aparecendo como ações inexoráveis numa sociedade globalizada. Da mesma forma a abertura a especulação internacional. Essas ações demonstrariam a fragilidade estatal em termos de controle econômico.

A política agora é feita no mercado. Só que esse mercado global não existe como ator, mas como uma ideologia, um símbolo. Os atores são as empresas globais, que não têm preocupações éticas, nem finalísticas. Dir-se-á que, no mundo da competitividade, ou se é cada vez mais individualista, ou se desaparece. Então, a própria lógica de sobrevivência da empresa global sugere que funcione sem nenhum altruísmo. Mas, se o Estado não pode ser solidário e a empresa não pode ser altruísta, a sociedade como um todo não tem quem a valha. Agora se fala muito num terceiro setor, em que as empresas privadas assumiriam um trabalho de assistência social antes deferido ao poder público. Caber-lhes-ia, desse modo, escolher quais os beneficiários, privilegiando uma parcela da sociedade e deixando a maior parte de fora. Haveria frações do território e da sociedade a serem deixadas por conta, desde que não convenham ao cálculo das firmas. Essa "política" das empresas equivale à decretação de morte da Política. (SANTOS, Milton, 2006,p.67)

A fragilidade do poder político na sociedade atual ocorre em grande medida devido à fragmentação das demandas sociais. (BAUMAN, 2000, p.113). Os grandes projetos de sociedade estão limitados por certa visão fragmentada de sociedade, nessa o poder é multifacetado e a ação política ineficiente. Essa limitação da ação política tradicional e de grandes projetos de sociedade, em especial devido à desilusão com as alternativas socialistas pós-queda do muro de Berlim, formula uma certa obstrução do Estado como espaço de ação coletiva. Ao menos como projeto total de sociedade. Nesse espaço desabitado instalam-se poderosos lobbys econômicos.

No final do século XX, reabrem-se os espaços e fronteiras, inesperados ou recriados, disponíveis ou forçados. Juntamente com a desagregação do bloco soviético, com a dissolução do mundo socialista, generalizam-se políticas de desestatização, desregulação, privatização, abertura de mercados, fluxo cada vez mais livre das forças produtivas, modernização das normas jurídico-políticas e das instituições que organizam as relações de produção, tudo isso universalizando mais do que nunca o modo capitalista de produção; e o capitalismo como processo civilizatório. (IANNI, 2006, p. 180-81).

Outro sinal que parecia apontar para a crise do Estado-Nação é a formação de blocos econômicos. Em especial, a formação de blocos de países com objetivo de fortalecer a economia, organizar vantagens tributárias e estreitar laços políticos apontava para o enfraquecimento do Estado nacional.

Entretanto, tais sinais apenas mascaravam o papel do Estado. O discurso tem apenas um efeito ilusório, não traduz a realidade. Objetiva ludibriar a real função do aparato político. "Fala-se, igualmente, com insistência, na morte do Estado, mas o que estamos vendo é seu fortalecimento para atender aos reclamos da finança e de outros grandes interesses internacionais, em detrimento dos cuidados com as populações cuja vida se torna mais difícil." (SANTOS, Milton, 2006, p.19). Outros autores já apontavam que a globalização não podia ser apontada como inevitabilidade natural, mas deveria ser pensada como construção política em que o Estado tem papel relevante:

A interdependência econômica de forma alguma é fenômeno natural, mas sim provocado por uma política deliberada, consciente de suas metas. Cada acordo, cada lei, foi aprovado por governos e seus parlamentos, cujas deliberações removeram barreiras alfandegárias, permitindo o livre trânsito de capital e mercadorias, por cima das fronteiras nacionais. (MARTIN; SCHUMANN, , p. 17).

A crise do sistema financeiro de 2008-2009 problematizou a idéia de crise do Estado nacional. O conflito entre tendências liberais e intervencionistas pareceu ainda mais acirrado. Do acontecido parece que ficou no ar a idéia que o Estado Nacional não está em declínio, mas em fase de mutação.

A palavra não aparece na mídia norte-americana, mas é disso que se trata: nacionalização. Perante as falências ocorridas, anunciadas ou iminentes de importantes bancos de investimento, das duas maiores sociedades hipotecárias do país e da maior seguradora do mundo, o governo dos EUA decidiu assumir o controle direto de uma parte importante do sistema financeiro. (...) O que é novo na intervenção em curso é a sua magnitude e o fato de ela ocorrer ao fim de trinta anos de evangelização neoliberal conduzida com mão de ferro a nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, FMI e o Banco Mundial: mercados livres e, porque livres, eficientes; privatizações; desregulamentação; Estado fora da economia porque inerentemente corrupto e ineficiente; eliminação de restrições à acumulação de riqueza e à correspondente produção de miséria social. (...) o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização (SANTOS, Boaventura, 2009).

Segundo Milton Santos, o Estado-nação na verdade não está enfraquecido, ao contrário, continua com sua antiga força porém com objetivos diversos dos interesses dos cidadãos.

Ao contrário do que se repete impunemente, o Estado continua forte e a prova disso é que nem as empresas transnacionais, nem as instituições supranacionais dispõem de força normativa para impor, sozinhas, dentro de cada território, sua vontade política ou econômica. Por intermédio de suas normas de produção, de trabalho, de financiamento e de cooperação com outras firmas, as empresas transnacionais arrastam outras empresas e instituições dos lugares onde se instalam, impondo-lhes comportamentos compatíveis com seus interesses. (SANTOS, Milton, 2006, p.77)

Dimensão Social: Quando se refere à globalização no campo social, em geral, aponta-se a ação corrosiva que a entrada de grandes capitais tiveram em países periféricos. As crises econômicas têm efeito intensificado nesses países em virtude da sua dependência em relação à produção de multinacionais. Em geral, o empobrecimento de países periféricos caminha ao lado do desemprego e da marginalização de certas populações. São os períodos de queda de consumo que mais demonstram a desigualdade social dentro do processo de globalização. (VIEIRA, 2002, p.89).

De fato, para a grande maior parte da humanidade a globalização está se impondo como uma fábrica de perversidades. O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a AIDS se instalam e velhas doenças, supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção. (SANTOS, Milton, 2006, p.19-20).

Outras conseqüências sociais significativas são os problemas da alimentação e da saúde. Em relação aos alimentos, a globalização trouxe regulação mundial de preços. Isso explica, por exemplo, preços elevados de gêneros essenciais. A crise de produção em países distantes pode gerar aumentos de preço em gêneros alimentícios como o litro do leite ou o açúcar. Bem como surtos e doenças ganham escala mundial. Os riscos de grandes pandemias como a gripe A (H1N1) ou da gripe aviária, ou doenças como a AIDS tem levado o problema da prevenção para a escala global.

Além disso, a urbanização sem planejamento tem trazido conseqüências de igual forma nefastas. Vive-se numa realidade de globalização perversa em que a própria noção de espaço e de realidade acaba per perder-se. "A população aglomerada em poucos pontos da superfície da Terra constitui uma das bases de reconstrução e de sobrevivência das relações locais, abrindo a possibilidade de utilização, ao serviço dos homens, do sistema técnico atual." (SANTOS, Milton, 2006,p. 21). Ao invés do homem dominar o território ele fica a mercê do território e das possibilidades que o próprio mercado impõe. Não há uma verdadeira globalização territorial mas uma concentração daninha.

O território fragmentaliza-se nos estados-nações e começam a surgir objetivos diversos dentro da mesma esfera de poder político. "Dentro de um mesmo país se criam formas e ritmos diferentes de evolução, governados pelas metas e destinos específicos de cada empresa hegemônica, que arrastam com sua presença outros atores sociais, mediante a aceitação ou mesmo a elaboração de discursos "nacionais-regionais" alienígenas ou alienados." (SANTOS, Milton, 2006, p.87).

Daí se criarem situações de alienação que escapam a regulações locais ou nacionais, embora arrastando comportamentos locais, regionais, nacionais em todos os domínios da vida, influenciando o comportamento da moeda, do crédito, do gasto público e do emprego, incidindo sobre o funcionamento da economia regional e urbana, por intermédio de suas relações determinantes sobre o comércio, a indústria, os transportes e os serviços. Paralelamente, alteram-se os comportamentos políticos e administrativos e o conteúdo da informação." (SANTOS, Milton, 2006,p.93)

Tudo isso gera o que Milton Santos denomina de esquizofrenia do espaço, que não é mais representativo da organização social, mas perde-se em relação a forma de organização social. "Os lugares são, pois, o mundo, que eles reproduzem de modos específicos, individuais, diversos. Eles são singulares, mas são também globais, manifestações da totalidade-mundo, da qual são formas particulares." (SANTOS, Milton, 2006,p. 112)

Por fim, o desemprego e as crises econômicas, por vezes, também tem motivado o surgimento de sectarismos nacionalistas bem como segregação de minorias. As reações locais ao desemprego ou as crises que a economia global coloca manifesta-se como sectarismos raciais, religiosos e outros. (VIEIRA, 2002, p.91-2).

Dimensão Ambiental: A globalização é vislumbrada como uma questão ambiental quando se propõe o problema da industrialização descontrolada e da expansão do mercado. Em certo aspecto tal dimensão é continuidade da dimensão social. É certo que o meio ambiente é uma questão global e que só pode ser preservado com ações globais.

Os principais problemas ambientais enfrentados no mundo atual não podem ser combatidos apenas localmente. O aquecimento global devido à emissão de gases poluentes (em especial CO2) e o buraco na camada de ozônio não podem ser combatidos sem uma ação global efetiva. A frustração maior está na falta de acordos internacionais como o tratado de Kyoto (1997) e/ou o fracasso da conferência sobre o clima em Copenhagem em 2009.

Em conseqüência do desequilíbrio ambiental, a maior freqüência de fenômenos de grande repercussão ambiental (Furações, Tornados, Tsunamis, Enchentes, Queimadas) tem afetado a vida de muitas pessoas. Outro problema importante é a escassez de água potável que logo afetará grandes parcelas populacionais e poderá gerar migrações e novos problemas sociais (VIEIRA, 2002, p.94-5).

A globalização poderia possibilitar auxílio a essa crise ambiental se existissem investimentos em questões ambientais. Alguns inclusive poderiam ser sustentáveis como a busca por fontes alternativas de energia. Entretanto, a lógica do capital ainda não se adaptou aos problemas eminentes a serem enfrentados.

Dimensão Cultural: A última dimensão é a dimensão cultural. Nessa, enfatiza-se em geral a padronização global do consumo. No processo histórico recente, o desenvolvimento tecnológico tem facilitado o contato cultural entre diversos povos. O desenvolvimento dos meios de comunicação transformou a forma das pessoas observarem o mundo. A mídia possibilita que pessoas das mais diversas culturas e formações educacionais usufruam, a partir da televisão por exemplo, de uma experiência de conhecimento padronizada. Entretanto, a dimensão cultural da globalização é muito mais complexa, recheada não só de homogenizações, mas também de resistências e hibridismos. (CANCLINI, 2000, p. 163 e Ss.)

É difícil explicar o sucesso da mídia e da tecnologia, alguns autores como Russel Neuman (Cf. CASTELLS, 2005, p.416) apontam que as pessoas são atraídas pelos caminhos de menor resistência, ou seja, a platéia em geral é preguiçosa e procura formas de obter informação com o menor esforço possível. A televisão representou o fim do predomínio da linguagem alfabética na cultura humana, hoje predomina uma linguagem multisensorial, em que a imagem, os sons e a mídia escrita se misturam. Na década de 90 um adulto americano dedicava cerca de 6,43 horas diárias vendo televisão, o que portanto, representa grande parcela de seu dia útil. Outra pesquisa apontava apenas 14 minutos de interação familiar por dia nos EUA. No Japão o tempo gasto com televisão é de 8 horas e 17 minutos em 1992, 25 minutos a mais que em 1980 (Cf. CASTELLS, 2005, p. 418 e Ss). Tudo isso leva a crer que o cotidiano das grandes cidades tende a homogenização devido a proliferação da mídia, o que determina profunda mudanças culturais.

Nós não vemos a realidade como ela é mas como são nossas linguagens. E nossas linguagens são os nossos meios de comunicação. Nossos meios de comunicação são nossas metáforas. E nossas metáforas criam nossa cultura. (POSTMAN, 1985 apud CASTELLS, 2005, 414).

Entretanto, não existem provas contundentes que as pessoas respondem a todos os estímulos da televisão. Existem estudos que falam de algo em torno de 1600 mensagens publicitárias por dia atingindo o notrte-americano médio. A resposta consciente a essa publicidade ocorrerá apenas 12 vezes durante o dia. Além disso, nem sempre essa resposta a publicidade será positiva, muitas vezes desvalorizará o produto. (CASTELLS, 2005, p. 419)

O que se observa nos últimos anos é, por um lado, o crescimento da mídia privada e a abertura acionária das emissoras de televisão, e por outro lado, a expansão da televisão a cabo. Ambos os movimentos tem relativizado o poder das grandes redes de televisão nacionais. A televisão também perde a força com a internet de banda larga que oportuniza entretenimento e informação direcionados em que ao usuário. A velocidade de penetração da internet no cotidiano das pessoas tem reorganizado suas rotinas e vidas. A internet vem superando barreiras de classes sociais e traz um meio recheado de novas representações sociais. O cibermundo tem uma esfera simbólica própria e transforma as culturas de diferente formas. (CASTELLS, 2005, p. 423; 428 e Ss)

Outro ponto interessante de se ressaltar é que as pessoas não procuram nessas novas mídias apenas lazer. A principal função da internet entre adultos nos EUA, é a busca de informação, serviços e economia de tempo Apesar da importância das sociedades interativas, os vínculos oportunizados pela internet, em geral, ficam restritos a própria área de convivência dos usuários. (CASTELLS, 2005, p. 442 e Ss). Por isso, é necessário relativizar idéias maniqueístas de completa americanização do mundo, simplificação das idéias ou invasão cultural. As culturas têm trabalhado com a tecnologia no sentido de adaptá-las a interesses locais.

Apesar de relativizar a homogenização da cultura, deve-se atentar para a seleção que a grande mídia ainda realiza. Além de mundializar informações fúteis, acaba por repassar preceitos ideológicos no campo econômico. Talvez uma das grandes mentiras da globalização seja o mito da informação prestada de forma ampla e irrestrita.

Uma dessas fabulações é a tão repetida idéia de aldeia global (Octávio Ianni, Teorias da globalização, 1996). O fato de que a comunicação se tornou possível à escala do planeta, deixando saber instantaneamente o que se passa em qualquer lugar, permitiu que fosse cunhada essa expressão, quando, na verdade, ao contrário do que se dá nas verdadeiras aldeias, é freqüentemente mais fácil comunicar com quem está longe do que com o vizinho. (SANTOS, Milton, 2006, p.40-1).

Tais instrumentos têm apenas o objetivo de manter certos preceitos do mercado e de seus interesses. Tudo isso leva a crer que os efeitos da globalização na cultura devem ser observados com maior cuidado.


2. O ESTADO E OS DILEMAS DA GLOBALIZAÇÃO

Globalização, Estado Nação e multiculturalismo: A globalização não pode ser entendida apenas como um processo de imposição econômica do modelo capitalista sobre o mundo, esfacelando o Estado Nacional. Em geral, a globalização é contraposta ao Estado-Nação, mas o Estado nação não é um modelo universal e atemporal. Ao contrário, o Estado nacional é um fenômeno localizado geográfica e historicamente. Segundo Hobsbawm:

Precisamos distinguir entre os dois significados do termo "Estado Nacional". No sentido tradicional, refere-se a um Estado territorial sobre o qual o povo que nele vive, a Nação, tem um poder soberano. Este é sentido de Estado Nacional que surgiu com a Revolução francesa e, em parte, com a Revolução Americana. Trata-se de um definição política, e não étnica ou lingüística , do Estado: é um povo que escolhe seu governo e decide viver sob determinada Constituição e sobre determinadas leis (...) o outro significado do termo é muito mais recente e consiste na idéia de que todo o Estado territorial pertence a um povo específico, definido por determinadas características étnicas, lingüísticas e culturais – e que isso constitui a nação. Segundo essa idéia, apenas a nação pertence ao Estado nacional, e todos os outros não passam de minorias que, embora vivam no mesmo local, não fazem parte da nação. (HOBSBAWM, 2009, p. 27)

Tal conceito é típico da sociedade européia e de sua organização política. Portanto, analisando-se historicamente a questão do Estado Nacional:

(...) descobre-se que a nação é um produto histórico europeu, desenvolvido no bojo da revolução burguesa e transformado em um modelo exportado pelo imperialismo europeu e norte-americano pelos diversos continentes, ilhas e arquipélagos. Um modelo que se concretiza às vezes muito precariamente na Ásia, Oceania, África, América Latina, no Caribe, na Europa Central e Europa do Leste. Aliás, mesmo nos países em que o estado-nação se formou originariamente, mesmo nesses países revela-se não só histórico, mas problemático. (IANNI, 2007, p. 111).

Acontece que a revolução burguesa raramente resolveu a questão nacional satisfatoriamente, tendo-se em conta os interesses das maiorias e minorias. Persistem e recriam-se as desigualdades sociais, culturais e raciais, além das políticas e econômicas. Em toda sociedade nacional o povo é uma estranha coletividade de cidadãos de várias e desiguais categorias, com participação às vezes extremamente desigual nos produtos das atividades nacionais. São muitas as sociedades em que a população ainda não se transformou em povo, entendido como uma coletividade de cidadãos, fato que muitas vezes aparece claramente nas ideologias raciais por meio das quais também se classificam, hierarquizam e discriminam racialmente indivíduos e coletividades. (IANNI, 2007, p. 167-8)

Para superar a limitação do Estado-Nação, Will Kymlicka apresenta a hipótese do que ele denomina de Estados Multiculturais e Estados Poliétnicos: a) Estados multinacionais, onde uma nação (comunidade histórica) mais ou menos completa institucionalmente, que ocupava um território ou uma terra natal determinada e que compartilha uma cultura e uma língua diferenciada, convive com uma ou mais nações dentro de um mesmo Estado, gerando minorias nacionais; b) Estados poliétnicos, onde a formação populacional foi efetivada pela imigração em grande escala. (Cf. KYMLICKA, 1996, 26 e Ss). Ambas as espécies de Estado enfrentam o problema de minorias, que de uma forma ou de outra acabam tendo seus direitos suprimidos.

(...) Estados multinacionais (onde a diversidade cultural surge da incorporação de culturas que anteriormente possuíam auto-governo e estavam concentradas territorialmente num Estado maior) e Estados poliétnicos (onde a diversidade cultural surge da imigração individual e familiar) (KYMLICKA, 1996, 19-20).

Por este conceito o Brasil seria tanto um estado poliétnico, pois possui grande parcela de imigrantes, e também um estado multicultural, pela existência de várias etnias e povos indígenas, quilombolas, entre outros. Segundo tal autor, o Brasil, como um Estado multicultural e multiétnico, deveria agir de forma mais séria em relação às demandas das minorias: "O Brasil tem sido especialmente insistente na hora de afirmar que não detém minorias nacionais; o certo é que o quase total extermínio de suas tribos indígenas está perigosamente perto de ratificar dita afirmação". (KYMLICKA, 1996, p.40). Portanto, o próprio conceito de Estado-nação não se encaixa com a realidade desses países. Além disso, Stuart Hall faz importante distinção:

Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo que retêm algo de sua identidade original. Em contrapartida o termo multiculturalismo é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedade multiculturais. (HALL, 2002, p.52)

Multiculturalismo, portanto, define políticas públicas para convivência entre diversas culturas dentro de um mesmo Estado-nação. O Canadá e a Austrália são exemplos de países que adotam medidas de multiculturalismo. Em contraponto ao multiculturalismo, pode-se constatar a existência de políticas de monoculturalismo, ou seja, políticas de cunho nacionalista, que pretendem excluir imigrantes ou assimilá-los a cultura dos países de acolhimento (KYMLICKA, 1996, passim).

As políticas do multiculturalismo começaram ser reivindicadas no período entre as décadas de 60 e 70, em especial, na luta por direitos civis, no movimento feminista, nas lutas contra a guerra do Vietnã. Tais movimentos são inspirados na expansão do político e da superação da dicotomia direita e esquerda (KYMLICKA, 2006, passim). O que pode aparecer como um problema para Bauman (2000), aqui pode ser um caminho possível de reorganização política. O multiculturalismo implica, portanto, em reivindicações e conquistas das chamadas minorias (negros, índios, mulheres, homossexuais, entre outras). Além disso, enfatiza-se a idéia de que as culturas minoritárias são discriminadas e devem merecer reconhecimento público. Para se consolidarem, essas culturas singulares devem ser amparadas e protegidas pela lei.

No âmbito jurídico o multiculturalismo propõe três dimensões de direitos a serem reconhecidos: a) direitos de autogoverno: representação e governo próprios (princípio da autodeterminação dos povos); b) direitos poliétnicos: direitos relacionados à própria diferenciação cultural (resgate cultural, preservação da língua, etc...) e direitos de resgate por diferenciações históricas (ações afirmativas); c) direitos de especial representação: percentuais em cargos da administração, poder executivo e legislativo (KYMLICKA, 1996, 46-55).

A política multiculturalista visa resistir à homogeneidade cultural, principalmente quando esta homogeneidade é considerada única e legítima, submetendo outras culturas a particularismos e dependência. Como é o caso da cultura do consumo da globalização. Sociedades pluriculturais coexistiram em todas as épocas, e hoje, estima-se que apenas 10 a 15% dos países sejam etnicamente homogêneos. Na construção de movimentos sociais fortes, na mobilização social e em suas novas formas de manifestação estão ancoradas as novas perspectivas de ação na sociedade. "Estos movimientos han venido haciendo énfasis en el poder democrático (derechos humanos, derechos colectivos o de grupo, democracia participativa), la autonomía institucional y la igualdad, la identidad cultural, la expansión de la libertad contra el autoritarismo estatal o la dominación cultural masiva." (SANTOS, Boaventura, 1998, p.63). Por isso, o multiculturalismo pode ser apontado como forma de resistência à homogenização da globalização.

Globalização e fim do Estado-nação? Durante a crise econômica de 2008 e 2009 voltou-se ao debate o papel do Estado na era da globalização. A reação conjunta dos países ricos (atuação do G8) e o desencadeamento da crise demonstrou que a absoluta desregulação do mercado é inviável, eis que não existe razoabilidade na obtenção do lucro.

A palavra não aparece na mídia norte-americana, mas é disso que se trata: nacionalização. Perante as falências ocorridas, anunciadas ou iminentes de importantes bancos de investimento, das duas maiores sociedades hipotecárias do país e da maior seguradora do mundo, o governo dos EUA decidiu assumir o controle direto de uma parte importante do sistema financeiro. (...) O que é novo na intervenção em curso é a sua magnitude e o fato de ela ocorrer ao fim de trinta anos de evangelização neoliberal conduzida com mão de ferro a nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, FMI e o Banco Mundial: mercados livres e, porque livres, eficientes; privatizações; desregulamentação; Estado fora da economia porque inerentemente corrupto e ineficiente; eliminação de restrições à acumulação de riqueza e à correspondente produção de miséria social. (...) o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização (SANTOS, Boaventura, 2009)

Diante da crise o papel Estado foi ressaltado, pois a única instituição capaz de assegurar a ordem e o equilíbrio econômico foi o Estado. Foram gastos quase 4 trilhões de dólares para salvar o mercado financeiro. "Os US$ 152,5 bilhões investidos pelos EUA para o resgate de uma só empresa, a AIG, supera longe os 90,7 bilhões de dólares que esse país e os europeus destinaram à ajuda para o desenvolvimento em 2007". (RIZVI, 2010). O problema está no papel que o Estado vem exercendo para o desenvolvimento social. O Brasil é um péssimo exemplo histórico disso:

Se essas décadas provaram alguma coisa, foi que o grande problema político do mundo, e certamente do mundo desenvolvido, não era como multiplicar a riqueza das nações, mas como distribuí-la em benefício de seus habitantes. Isso se dava mesmo em países pobres ‘em desenvolvimento’ que precisavam de mais crescimento econômico. O Brasil, um monumento à negligência social, tinha um PNB per capita quase duas vezes maior que o Sri Lanka em 1939, e mais de seis vezes maior no fim da década de 1980. No Sri Lanka, que subsidiara alimentos básicos e dera educação e assistência médica gratuitas até a década de 1970, o recém-nascido médio podia esperar viver vários anos mais que o brasileiro médio, e morrer ainda bebê mais ou menos na metade da taxa brasileira de 1969, e num terço da taxa brasileira de 1989 (World Tables, 1991, pp. 144-7, 524-7). A percentagem de analfabetismo em 1989 era quase duas vezes maior no Brasil que na ilha asiática. (HOBSBAWM, 2003, p. 554-4).

O Estado é a esfera que supre as demandas sociais e, mesmo que não totalmente eficiente, é imprescindível para concretização de direitos fundamentais. Isso ocorre exatamente porque sua lógica é oposta à lógica do capital.

O Estado e seu governo continuam sendo a única instância junto à qual os cidadãos e eleitores podem reivindicar justiça e reformas. [...]. Nenhum chefe de empresa, por mais poderoso que seja, desejaria assumir a responsabilidade por processos que ocorrem fora de sua alçada. (MARTIN; SCHUMANN, 1997, p. 293).

Nesse sentido, somente pelo Estado e pela recuperação da perspectiva de cidadania como elo central entre os atores sociais e o espaço público se poderá encaminhar o processo de superação do modelo hegemônico a fim de encontrar um novo rumo para a globalização.

(...) no mundo da globalização, a intervenção do mercado tem de ser combinada com a intervenção do Estado. A questão é determinar o papel e a efetividade do Estado. O desenvolvimento requer um Estado atuante e catalisador, facilitando, encorajando e regulando os negócios privados (...) O fator determinante é a efetividade do Estado. Parece claro que a sua primeira tarefa é garantir os direitos fundamentais à população, a saber: definição de uma base legal; a manutenção da estabilidade econômica; o investimento em serviços sociais básicos e em infra-estrutura; o amparo aos vulneráveis; a proteção ao meio-ambiente. (DUPAS, 1999, p. 131-2).

Por fim, há de se encontrar saídas para o modelo de globalização atual. "A globalização atual não é irreversível." (SANTOS, Milton, 2006,p.176). Portanto, a globalização é um desafio a ser enfrentado, mas jamais uma fatalidade irremediável.


3. REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. (trad. Marcus Penchel). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede - a era da informação: economia, sociedade e cultura. 8ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, Estado e futuro do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4ª ed.. Porto Alegre: Artmed, 2008.

HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações. Belo Horizonte: Editora. UFMG, 2002.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: O Breve século XX (1914-1991). 2 ed. 26 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

HOBSBAWM, Eric. O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução: Cláudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

IANNI, Octavio. A era do globalismo. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

IANNI, Octavio. Teorias da globalização. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

KYMLICKA, Will. Ciudadanía Multicultural. Paidós: Barcelona, 1996.

KYMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea. (trad. Luís Carlos Borges). São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização Econômica, Política e Direito: Análise das mazelas causadas no plano político-jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

MARTIN, Hans-Peter; SCHUMANN, Harald. A armadilha da globalização: o assalto à democracia e ao bem-estar social. Waldtraut U.E. Rose e Clara C.W. Sackiewicz. São Paulo: Globo, 1997.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. (trad. Maria Lucia Como). 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

NEGRÃO, João José. Para conhecer o neoliberalismo. São Paulo: Publisher Brasil,1998.

OHMAE, Kenichi. O fim do Estado-nação. A ascensão das Economias Regionais. Rio de Janeiro: Campus, 1996.

RIZVI, Haider. Bancos recebem ajuda de US$ 4 trilhões. E o resto do planeta? In: Carta Maior. Extraído de: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15401. Acesso em 29 de Março de 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. La Globalización del derecho: Los nuevos caminos de la regulación y la emancipación. Bogotá: ILSA, 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O impensável aconteceu. Retirado de: < http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3981> ; extraído em 6 de setembro de 2009.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

THERBORN, Göran. Globalização e desigualdade: questões de conceituação e esclarecimento. Sociologias, Porto Alegre, n. 6, dez. 2001 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222001000200007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 21 de março de 2010.

VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 6ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.


Notas

01 O processo de globalização intensificou-se com o Acordo de Bretton Woods (1944). Suas principais deliberações foram: a)acabar com a inflação; b) privatizações; c) deixar o mercado livre = Estado mínimo. (Cf. LIMA, 2002, p. 159). O Consenso de Washington (1989) foi outro encontro de diversas instituições financeiras e economistas de cunho liberal para traçar medidas que fossem cabíveis aos países Latino-americanos com os fins de ajustá-los ao mercado internacional. Dez foram os pontos colocados: a) disciplina fiscal; b) gastos públicos centralizados em saúde, educação e infra-estrutura; c) reforma tributária; d) liberalização financeira; e) competitividade da taxa de câmbio; f) diminuição das alíquotas de importação; g) não restrição ao capital externo; h) privatização; i) desregulação trabalhista; j) propriedade intelectual. Para maiores esclarecimentos Vide NEGRÃO, João José. Para conhecer o neoliberalismo. São Paulo: Publisher Brasil,1998.