Homenagem ao amigo Amaro


Poraires- Postado em 29 novembro 2012

Nosso amigo Amaro se foi.

Mas fica sua presença brilhante.

Boa viagem meu caro.

 

segue o prefácio que fiz para o Livro: SILVA NETO, Amaro Moraes. O direito de nos aborrecerem.

O que fazemos na vida repercute na eternidade, diziam os romanos. Cada um de nós, bem ou mal, faz suas escolhas e elas repercutem pelo menos durante a nossa existência. Se vão além dela, isto depende da qualidade das mesmas e de nossa competência em fugir das doenças que a sociedade nos herda através de suas ideologias, determinismos e vícios. Falo aqui de uma em particular e que não acredito que já esteja no catálogo geral da medicina física e mental. Porém, você já deve conhecê-la seja por conta própria ou, se felizardo, por conta dos amigos e estranhos: a normose.

Este mal, bem mais que outros mais chocantes, é um representante legítimo da nossa modernidade, defensora a todo custo de uma normalidade mesmo diante de fatos absurdos, bárbaros e nada dignos da chamada razão humana. Esta, por via da razão instrumental e funcionalista, produz padrões e consensos estúpidos. Não conseguimos mais ver o veneno, as desigualdades e o absurdo das situações cotidianas em que vivemos. Passamos a conviver bem com a banalização da vida e dos seus mais belos princípios e procuramos razões superiores para justificar essa atitude tão deplorável. O mal estar na civilização instala-se hoje, local e globalmente, na medida em que a TV e seus acessórios telemáticos e lógicos instalaram-se em nossas salas de estar e quartos de dormir. Novas ‘mídia’ já se apresentam para ajudá-la na tarefa.

Absurda a situação? A única prova que trago a favor desse argumento é que parte dos presentes leitores está a discordar de mim, incluindo-se nas premissas.

Mas afinal, o que isto tem a ver com este livro? Tem tudo a ver na medida em que é um livro sobre um problema que a maioria de nós desde o seu inicio já achava normal ter que suportá-lo e Amaro, ao contrário, ousou combatê-lo.

Para quem conhece o meu caro amigo Amaro não é despropositado ou ofensivo dizer que ele não é um ser humano normal. Sem prova em contrário devemos admitir que pertença à espécie humana, mas seria um ultraje dizer que suas idéias e valores adentram à normalidade e que seus argumentos beiram à banalidade.

Nosso amigo está imune aos padrões e modas que sempre se nos apresentam. Com esta competência inaugurou a discussão, aparentemente infértil e sem importância. O tempo demonstrou que a razão estava com ele.

Tratar inteligentemente do tema spam não foi fácil. Levou certo tempo, mas nada que se compare aos 300 anos que duram as tempestades em Júpiter. Até porque o tempo é a mais relativa das variáveis. Podemos afirmar, então, a também relativa maturidade da discussão do problema proposto, expressa radicalmente neste trabalho, a ponto de Amaro dizer que com ele encerra sua contribuição para a matéria.

De outro lado, fiquei muito orgulhoso ao ter sido convidado a apresentar o tema, principalmente pela certeza da competência de seu autor e pela admiração que tenho por ele. Além do mais, compartilhamos algumas idéias importantes sobre o problema. Vamos a elas.

O spam é um verdadeiro “atentado a um serviço de utilidade pública” (AMARO), a Internet. Por isto, há quem preconize e defenda o chamado “direito da Internet”, coisa que não aconteceu quando do surgimento de outras mídias. Ao contrário, concordamos radicalmente que o importante é sabermos interpretar as leis já existentes e consolidadas, fugindo dessa mania nacional de querer legislar casuisticamente. Todos sabemos que isto tem produzido mais males do que benefícios, mas na hora derradeira, lá estamos defendendo uma breve inovação.

Em artigo encaminhado para Amaro na inauguração de sua frente anti-spam escrevia eu que não adiantava imaginarmos que éramos capazes de erigir normas superiores a nós mesmos e incapazes de injustiças e efeitos reversos. Mesmo acreditando que poucos seriam esses efeitos a verdade é que basta apenas uma dessas dissonâncias para se pôr em xeque toda boa intenção.

É evidente que os efeitos muitas vezes indesejáveis fazem parte da natureza das coisas e o direito não passa ao largo dessa regra. É o que já representava na antiga Grécia a deusa Nêmesis e sua justiça distributiva: velava tão escrupulosamente a lei que fazia suceder a infelicidade à felicidade. Este risco aumenta significativamente nos complexos sistemas hodiernos.

Exemplos há em todas as áreas. Veja a política. Quem não conhece o caso de generais que tentando promover a democracia desencadearam ditaduras, e de pijama, ou prenderam e bateram em seus opositores?

Mas no direito os exemplos são também numerosos e com conseqüências da mesma forma nefastas. Todos nós conseguiremos lembrar de situações derradeiras no direito ambiental, penal, do consumidor, da criança e do adolescente, domínios sensíveis de recentes alterações. Imagine então nossos legisladores e juristas em geral tão “maníacos por novas leis” (AMARO) investindo-se como Dom Quixote no campo da vida digital. Que o deus brasileiro nos acuda!

Nessa mesma direção radicalmente crítica, compartilhamos a idéia de que é preciso desvelar os paradoxos do direito, mais presentes do que imaginamos ou gostaríamos. No texto escrito por Amaro o tema do spam, na sua aparente singeleza, se presta exemplarmente para tal.

Dentre as inúmeras propostas apresentadas em projetos de lei ou defendidas doutrinariamente há aquelas que, para resolver o problema, simplesmente o proíbem, esquecendo-se que além do direito à privacidade há o direito à liberdade de expressão. A proposta contrária, exposta na defesa da total liberdade dos spammers é baseada na inexistência de qualquer ofensa ao direito em decorrência dessas ações inconseqüentes. Como resolver a equação? Amaro dá pistas importantes.

E o que dizer do paradoxo decorrente da defesa radical de pesadas penas nos projetos de lei em tramitação? No dizer do autor deste livro isso promove simplesmente a total ineficácia dos efeitos desejados pela norma devido aos sérios limites em sua aplicação. Sem contar a falta de uma visão totalizadora do sistema jurídico do qual fará parte, bem típico de normas casuísticas. É a parte querendo ser maior que o todo.

Outro pressuposto importante do texto, que também compartilho, é que o mundo da vida cada vez mais é dinâmico, superando os seus limites em tempo cada vez menor. O direito, mesmo sendo de natureza conservadora, vem adquirindo características inovadoras: o que valia ontem não vale hoje. O mesmo acontece com o desenvolvimento da tecnologia. Neste campo, aliás, estamos à beira de mudanças que significam transpor os limites da “singularidade”, da nossa capacidade racional em poder compreendê-las.

O fato é que as diferenças entre as gerações ou ondas de mudanças ocasionam verdadeiros impactos ainda não bem avaliados. A complexidade é muito grande. Precisamos mais do que nunca da crítica severa (roedora, segundo MARX) de verdadeiros surfistas dourados. Como tal, Amaro pegou a onda da crítica ao spam. Depois vieram muitos outros, como em toda boa onda, mas já era tarde, pois hoje só há lugar para os que trabalham por antecipação.

Florianópolis,  dezembro, 2005

Aires J Rover