A importância dos direitos fundamentais e da supremacia constitucional na conservação da força normativa da Constituição


PorJeison- Postado em 18 março 2013

Autores: 
CANCELLA, Carina Bellini.

 

1.    Introdução

 

O presente estudo tem como objetivo principal despertar aos operadores do direito a importância da força normativa da Constituição na atuação e concretização dos direitos fundamentais. Por meio da supremacia constitucional, chega-se à efetivação dos direitos assegurados, uma vez que a Constituição somente é eficaz se estiver de acordo com a realidade política e social do país.

 

Também os métodos de interpretação são importantes para a preservação e concretização dos princípios fundamentais, porquanto conferem novos conteúdos à norma constitucional, porém, sem modificá-la literalmente. Contudo, é possível a existência de aparente conflito entre as normas constitucionais, quando então deverá ser preservado aquele que mais se coaduna com a lógica constitucional, por meio da técnica da ponderação ou concordância prática, que são mecanismos específicos de harmonização.

 

2.    Considerações sobre Constituição

 

A constitucionalização dos direitos tem por escopo o estabelecimento das leis fundamentais que regerão toda a vida de uma sociedade politicamente organizada. Entretanto, tão importante quanto a constitucionalização dos direitos em si é a própria postura do Texto Constitucional em prever formas de assegurá-los e concretizá-los na prática.

 

Tendo em vista a doutrina moderna constitucionalista, cumpre inicialmente afirmar que a Constituição pode ser conceituada como a lei maior e fundamental de um determinado país, na qual se encontram regradas a organização e estrutura do Estado, servindo de parâmetro para todas as demais leis vigentes no ordenamento jurídico pátrio.

 

Não obstante existam diversos conceitos consolidados na doutrina pátria sobre a definição de Constituição, Ferdinand Lassale expõe ser necessário descobrir antes qual seria a sua essência. Nesse diapasão, afirma que essência da Constituição é:

 

(...) a força ativa que faz, por uma exigência da necessidade, que todas as outras leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que realmente são (...) os fatores reais de poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.[1]

 

Para ele, a Constituição escrita, aquela transcrita em “folhas de papel” e que estabelece documentalmente todas as instituições e princípios de um governo vigente, apóia-se na Constituição real ou efetiva, integralizada pelos fatores reais de poder que regem determinada sociedade, uma vez que no eventual conflito entre o texto escrito e a realidade social, essa (Constituição real) prevaleceria, porquanto sempre existiu e existirá esses fatores reais de poder, que são pressupostos de existência de uma nação.

 

Com isso, Lassale consagra a essencialidade da Constituição explicando que a verdadeira Lei Maior de um país deve ter por base os fatores reais de poder que naquele país vigem, pois as Constituições escritas não têm valor a não ser que exprimam fielmente os fatores que imperam na realidade social.[2]

 

Posteriormente, Konrad Hesse contrapõe-se a Lassale, tecendo uma concepção jurídica sobre o que seria Constituição. Para Hesse, exige-se um condicionamento recíproco entre Constituição jurídica e a realidade político-social, afirmando que o resultado do conflito entre os fatores reais de poder e a Constituição escrita não implica, necessariamente, a derrota desta, porquanto a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade.

 

De acordo com Hesse, a essência da Constituição:

 

reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas[3].

 

Entretanto, a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização, porque com elas se associa de forma autônoma. Assim, como a Constituição não configura apenas a expressão de um ser, mas também de um dever ser, não pode ser considerada mero pedaço de papel, na medida em que a pretensão de eficácia busca conferir ordem e conformação à realidade política e social.[4]

 

Konrad Hesse ressalta, ainda, o perigo que a revisão constitucional traz para a força normativa da Constituição, uma vez que acaba por atribuir maior valor às exigências fáticas do que à ordem normativa vigente, abalando, assim a sua inquebrantabilidade. Com isso, a interpretação é o meio primordial de se preservar a força normativa da Constituição, porquanto deverá acompanhar, de modo construtivo, a dinâmica das relações fáticas sociais[5].

 

E não se trata de qualquer interpretação. Para que a vontade da Constituição seja preservada, faz-se necessária uma interpretação sistemática dos princípios basilares da Lei Fundamental, de modo que seu significado originário seja atualizado de acordo com o momento social.

 

Nos ensinamentos de Paulo Bonavides:

 

Nunca é de esquecer, pois, que toda interpretação constitucional não somente varia segundo a modalidade de Constituição senão que, aplicada à mesma forma de Constituição, está sujeita também a modificações impostas pela ‘força normativa’ do fato social ou da realidade política, conforme admiravelmente assinalaram Jellinek e Hesse (...) A interpretação sistemática da Constituição permite ainda estabelecer no regime político a sede daqueles valores a que a linguagem jurídica conferiu a denominação de princípios constitucionais. Nesses valores se inspiram ou têm base os direitos fundamentais, bem como as normas constitucionais de organização e competência.[6]

 

Também, consoante lição de Luís Roberto Barroso, é necessária a interpretação evolutiva, por ser um processo informal de reforma da Constituição, que, em virtude da dinâmica política e social, atribui dentro dos limites e princípios fundamentais novos conteúdos à norma constitucional sem, contudo, modificar literalmente o texto da Lei Maior, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes. Para o referido autor:

 

essa interpretação evolutiva se concretiza, muitas vezes, através de normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou indeterminados (...) que podem assumir significados variados ao longo do tempo[7].

 

Tendo em vista os posicionamentos acima mencionados, percebe-se que a simples existência de uma Constituição escrita é insuficiente para que se faça válido e eficaz seu papel de regulamentar as relações sociais e políticas. A Constituição converte-se em força normativa ativa se os deveres que impõe forem efetivamente realizados, de acordo com a “vontade da Constituição”.

 

Com isso, pode-se afirmar que a Força Normativa da Constituição é o imperativo de conformação entre a realidade social e o Texto Constitucional escrito de forma equilibrada. Em outras palavras, a Constituição, para ser dotada de força normativa, deve expressamente fixar preceitos fundamentais relevantes para a sociedade da época, com caráter mandatório capaz de servir como instrumento de inviolabilidade da Constituição e com condições de se adaptarem a uma eventual mudança da realidade social, política e econômica, ante a dinâmica do processo constitucionalista de permanente mudança.

 

Feita essa exposição inicial, cumpre destacar, no âmbito constitucional, a importância dos direitos fundamentais na conservação da força normativa da Constituição.

 

3.    Perpectiva dos direitos e princípios fundamentais constitucionais

 

O Ministro Gilmar Mendes lembra que para o desenvolvimento de qualquer direito fundamental é imprescindível a definição do seu “âmbito de proteção”, que abrange os diferentes pressupostos fáticos contemplados na norma jurídica, ou seja, é o “núcleo essencial da norma”, que não pode ser fixado em regras gerais, pois para cada direito fundamental haverá um procedimento[8].

 

A importância de se identificar o âmbito de atuação de um direito fundamental decorre da possibilidade de existir conflito entre direitos constitucionalmente protegidos, dependendo da interpretação que se confere às normas jurídicas elencadas na Constituição.

 

Entretanto, cumpre aferir que se de um lado o estabelecimento de reservas legais (ante a identificação do âmbito de atuação dos direitos fundamentais) dificulta a existência de conflitos entre normas constitucionais, porque há uma delimitação expressa no Texto Constitucional, de outro gera insegurança jurídica, na medida em que a utilização da interpretação hermenêutica pode levar à redução ou até a exclusão do âmbito de proteção que o constituinte originário quis conferir a determinada norma.

 

Por isso, a inclusão de fórmulas vagas e de conceitos indeterminados no Texto Constitucional pode configurar uma efetiva ameaça às garantias individuais e fundamentais, deixando ao legislador ampla liberdade de interpretação da Constituição segundo a lei.

 

Nesse ponto, pode-se dizer que o controle da constitucionalidade das normas se faz presente para preservação da força normativa da Constituição, porquanto muitas vezes, devido a essa amplitude de discricionariedade conferida ao legislador ordinário, as leis deixam de observar a ordem jurídica consagrada na Lei Maior, ocasionando, inclusive, exclusão do núcleo da garantia fundamental.

 

De outro lado, apesar de os princípios fundamentais, abstratamente considerados, possuírem o mesmo grau, podem apresentar diferentes pesos ou até hierarquias diversas na ordem constitucional brasileira, de acordo com a peculiaridade de cada caso concreto.

 

Nesta oportunidade, merece destaque o princípio da unidade da Constituição, que consiste na idéia de que o Texto Constitucional não admite nem tolera antinomias, impondo ao intérprete o dever de harmonização entre as normas constitucionais.

 

Nesse princípio é que se verifica a significativa importância das técnicas de ponderação e de concordância prática. Isso porque, embora o preceito seja claro em afirmar que a Constituição é um complexo jurídico harmônico e unitário, é possível a verificação de tensões entre normas constitucionais, sejam elas princípios ou regras.

 

No aparente conflito entre princípios constitucionais, impõe-se a preservação daquilo que mais se coaduna com a própria lógica constitucional, segundo a qual toda a validade das normas jurídicas deriva da força normativa da Lei Maior.

 

Assim, para solucionar eventual colisão de princípios, o intérprete deve utilizar uma de duas técnicas jurídicas afetas à hermenêutica constitucional: a da concordância prática, desenvolvida por Konrad Hesse ou a da ponderação de princípios, defendida por Ronald Dworkin como a dimensão de peso e importância, por serem instrumentos de preservação da unidade constitucional.

 

Para aplicar um desses mecanismos específicos de harmonização entre princípios constitucionais, caberá ao intérprete identificar, no caso concreto, qual deles será viável. Primeiro tenta-se a concordância prática. Na hipótese deste parecer inexeqüível em determinada situação prática, daí sim será necessária a utilização da técnica da ponderação.

 

Observa-se, portanto, que a limitação de direitos em virtude de eventual conflito entre princípios fundamentais deve ser exceção, cabendo ao intérprete procurar primeiro harmonizá-los, por meio da concordância prática, nem que para isso seja necessário diminuir o campo de incidência de um determinado princípio para, em contrapartida, alargar o âmbito de atuação do outro princípio.

 

No entanto, verificado que a concordância prática não se faz eficaz, deve-se utilizar o critério da ponderação de princípios na preservação da integridade do ordenamento constitucional brasileiro, seguindo a lógica de se observar qual princípio é o mais relevante, por possuir, no caso em exame, maior peso ou valor.

 

De qualquer modo, pode-se dizer que toda interpretação de norma jurídica, principalmente nas hipóteses em que há fundada divergência sobre seu conteúdo e alcance, deve estar dirigida para a preservação da soberania constitucional e da constitucionalidade das leis, que retiram seu fundamento de validade da própria Constituição.

 

Desse modo, os princípios fundamentais são o alicerce utilizado pelo intérprete da ordem jurídica, na medida em que consubstanciam conjunto de normas que contêm as decisões políticas estruturais e organizacionais do Estado, servindo de limite às mutações constitucionais.

 

Não obstante o papel importante que exercem os direitos fundamentais, eles não podem ser utilizados de modo absoluto e ilimitado, para servir como escudo protetor da prática de atividades ilícitas; ao contrário, encontram limites nos demais direitos igualmente consagrados na Constituição, assim chamado por Alexandre de Moraes como princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas.[9]

 

Nesse aspecto, destaca-se a supremacia da Constituição que, segundo ensinamento de Luís Roberto Barroso, é o primeiro princípio que deve ser levado em conta no processo de interpretação constitucional, por conferir à Lei Maior o caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento. Além do mais, afirma que:

 

Toda interpretação constitucional se assenta no pressuposto da superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos no âmbito do Estado. Por força da supremacia constitucional, nenhum ato jurídico, nenhuma manifestação de vontade pode subsistir validamente se for incompatível com a Lei Fundamental.[10]

 

O prestígio da ordem constitucional está sintetizado na observância una e indistinta de suas disposições, devendo o Texto Constitucional servir de parâmetro para conformar as normas legais aos direitos e princípios reconhecidamente constitucionais.

 

4.    Conclusão

 

Diante das considerações feitas, pode-se afirmar que o princípio da supremacia constitucional tem estrita relação com a força normativa da Constituição, porquanto consagra que todos os atos de conteúdo normativo que emanam do Estado devem necessariamente sujeitar-se à hierarquia constitucional.

 

Assim, por meio dos preceitos fundamentais a força normativa da Constituição se consolida, na medida em que conferem efetividade ao ordenamento jurídico constitucional, ainda que exista conflito entre os princípios fundamentais, uma vez que a interpretação conferida a eles visa a preservação da soberania constitucional e da constitucionalidade das leis, que retiram seu fundamento de validade da própria Constituição, em observância à supremacia constitucional.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

 

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

 

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

 

LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998.

 

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3ª ed. 3ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2007.

 

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

 

Atualizado em fevereiro de 2013.

 

Notas:

[1] LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição, 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p. 10-11.

[2] Op. cit., p. xxii.

[3] HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 13-14.

[4] Op. Cit., p. 14-15.

[5] Op. cit., p. 22-23.

[6] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 130-131.

[7] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 146 e 149.

[8] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 13.

[9] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 19ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 27-28.

[10] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 161.

 

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