Legitimação de posse


PorPedro Duarte- Postado em 29 maio 2012

Autores: 
Patrícia Fortes Lopes Donzele

Legitimação de posse


27/fev/2004

Desde o descobrimento do Brasil, o apossamento de terras constituiu fenômeno comum, dado a concessão de sesmarias. Este regime foi alterado com a Lei de Terras, que introduziu a legitimação de posse, que se dá sobre terras devolutas.

 

Resumo: Desde o descobrimento do Brasil, o apossamento de terras constituiu fenômeno comum, dado a concessão de sesmarias. Este regime foi alterado com a Lei de Terras, que introduziu a legitimação de posse, que se dá sobre terras devolutas, não obstante uma certa confusão constitucional. Posteriormente, a Lei n.º 6.383/76 estabeleceu a licença de ocupação como exigência à legitimação de posse, trazendo consigo outras exigências. Observa-se que estas exigências – questionáveis – acabam por dificultar a privatização das terras públicas.

A distribuição de terras no Brasil remonta à época da colonização portuguesa, onde foi adotado o regime sesmarial nos moldes do tradicional direito de Portugal. Vigorou este regime até a data de 7 de julho de 1822, quando alterou-se o sistema de ocupação do solo por meio da Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras).

Conforme nos demonstra Arnaldo Rizzardo [1], com a Lei de Terras, a posse torna-se meio de aquisição da propriedade; abrangendo na transferência de terras, as caracterizadas como devolutas.

Seguindo orientação legal do Decreto-lei n.º 9.760, de 1946, e do Decreto-lei n.º 1.164, de 1971, entende-se por terras devolutas aquelas que não se encontram aplicadas a algum uso público, nem estejam incorporadas ao domínio particular, as situadas nas faixas de fronteiras, nos territórios federais, no Distrito Federal, e as declaradas indispensáveis à segurança nacional.

Com a previsão do seu artigo 5º, a Lei de Terras criou um instituto genuinamente nacional – o da Legitimação de Posse.

Determinou, assim, o artigo 5º daquela Lei:

Art. 5º. “Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas adquiridas por ocupação primária, ou havidas de primeiro ocupante, que se acharem cultivadas ou com princípio de culturas, e moradia habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes...”

Desta disposição legal, Luiz Lima Stefanini [2] conceitua a legitimação de posse como:

“... exaração de ato administrativo, através do qual o poder público reconhece ao particular que trabalha na terra a sua condição de legitimidade; outorgando, ipso facto, o formal domínio pleno”.

É importante ressaltar que as terras legitimáveis são as devolutas, apesar de a Constituição Federal de 1988 ter trazido em seu artigo 188 que seriam legitimáveis as terras públicas. Sabe-se que terras devolutas são espécies de terras públicas e que a primeira Constituição que tratou da legitimação foi a de 1946 e que utilizou o vocábulo devolutas para determinar as terras a serem legitimáveis. O Estatuto da Terra em seu artigo 99 também usou a expressão terras devolutas se referindo ao mesmo assunto. Como bem pontua o Prof. Benedito Ferreira Marques [3] não encontra-se razão de a Constituição Federal de 1969 ter alterado a expressão para terras públicas e que a Constituição Federal de 1988 tenha repetido o erro.

Em conformidade com o artigo 99 do Estatuto da Terra, a legitimação é instituto jurídico de índole administrativa, sendo o processo competente o administrativo.

“Art. 99. A transferência do domínio ao posseiro de terras devolutas federais efetivar-se-á no competente processo administrativo de legitimação de posse, cujos atos e termos obedecerão às normas do Regulamento da presente Lei”.

Atualmente, a legitimação de posse está regulamentada pela Lei n.º 6.383 de 1976. Observa-se consoante disposição desta Lei que a legitimação da posse não é promovida de vez; há a concessão de uma licença de ocupação, que só será obtida se atendidos pelo possuidor os seguintes requisitos prévios: a) serem as terras devolutas; b) área de até 100 (cem) hectares; c) comprovação de morada permanente e cultura efetiva, pelo lapso temporal não inferior a 1 (um) ano; d) não ser proprietário de imóvel rural; e) exploração de atividade agrária com seu trabalho e o de sua família direta e pessoalmente.

A licença de ocupação será concedida se observados estes requisitos prévios. Esta licença de ocupação é um documento que demonstra a titulação da posse, permitindo o acesso ao crédito rural e a preferência para aquisição definitiva do imóvel pelo preço histórico da terra nua. É dada pelo prazo mínimo de 4 anos.

É consenso entre os jusagraristas que a legitimação de posse não constitui uma liberalidade do Poder Público, mas sim uma obrigação que advém de um ato de reconhecimento de legitimidade àquele que trabalha a terra. Tratar-se-ia de formalização de um domínio, se concorrerem os requisitos prescritos pela lei.

Na dúvida se estariam abarcadas as pessoas físicas e jurídicas com a legitimação de posse, a Portaria n.º 812, de 26 de agosto de 1991 do INCRA, exclui no seu artigo 12 a pessoa jurídica de se beneficiar da alienação ou concessão de terras públicas federais, ainda que tenha na agropecuária a sua principal atividade. Resta claro, então, que somente serão beneficiadas neste caso as pessoas físicas.

Crítica consistente encontramos nos dizeres do Prof. Getúlio Targino Lima [4] ao apontar a impropriedade legislativa no §1º do artigo 29 da Lei n.º 6.383/76 quando esta diz que “a legitimação de posse .... consistirá no fornecimento de uma licença de ocupação....”. Demostrando que uma licença de ocupação não se equipara a uma legitimação de posse.

Analisando os requisitos prévios para esta licença de ocupação e dentre eles o da morada permanente, o Prof. Paulo Torminn Borges [5] defende a posição de que este não deve significar obrigação de o possuidor residir exclusivamente no imóvel, pois o Código Civil prevê em seus artigos 31 e 32 a possibilidade de existir mais de um domicílio. Parece que no mesmo sentido dispõe a Portaria n.º 812, de 26 de agosto de 1991 do INCRA, quando assim determina no seu artigo 1º:

“Art. 1º. A alienação de terras públicas federais, ocupadas, destinadas à atividade agropecuária, nos termos da Lei n.º 4.947, de 6 de abril de 1966, fica condicionada ao implemento, pelo respectivo pretendente, dos seguintes requisitos:

...........................................................................................................

c) manter residência no imóvel ou em local próximo a ele, de modo que possibilite a sua exploração”. (grifo nosso)

No que diz respeito à exigência legal de o possuidor explorar atividade agrária com seu trabalho e o de sua família, chama a atenção o renomado autor para o fato de que o possuidor deve demonstrar, ainda, ter tornado a terra produtiva. Quiçá este entendimento se deva a uma tentativa de se resguardar a função social da terra; tendo em vista que, de acordo com a letra ‘b’, do §1º, do artigo 2º do Estatuto da Terra, um dos requisitos para tanto é manter níveis satisfatórios de produtividade.

Ainda tendo em vista este mesmo requisito legal para a legitimação de posse, pode-se criticar o fato da exigência de a atividade agrária ser exercida direta e pessoalmente pelo possuidor e sua família. Exigir o trabalho direto e pessoal do possuidor seria correto; mas o fazer quanto à sua família, seria restringir a concessão da licença de ocupação a um requisito que dependerá da vontade da família trabalhar a terra ou escolher uma outra ocupação, como por exemplo estudar na zona urbana.

No que tange à exigência da dimensão da área ser de até 100 (cem) hectares, deveria esta fixação se pautar na restrição ao módulo correspondente ao tipo de exploração desenvolvido no imóvel, nos termos da lei. Isto com o fito de impedir que se formem minifúndios em regiões onde o módulo rural poderá ser superior a esta área de 100 (cem) hectares.

Cabe, ainda, ressaltar que a Lei n.º 6.383/76 em seu artigo 29, §§ 1º e 2º, traz a exigência para o requerente de além dos requisitos prévios para a licença de ocupação, deverá evidenciar para alcançar a mesma, concomitantemente com aqueles, a capacidade para desenvolver a extensão ocupada.

Importante se faz mencionar que não obstante todas estas exigências para se conseguir a licença de ocupação, existe a possibilidade de cancelamento da mesma. A Lei n.º 6.383/76 previu em seu artigo 31 estas hipóteses de cancelamento.

“Art. 31. São hipóteses de cancelamento da Licença de Ocupação: inadimplência do financiamento do crédito rural; por necessidade pública; por utilidade pública”.

Conclui-se que, da forma como a lei trata a legitimação de posse, o que se verifica é uma verdadeira legalização de ocupação; tanto assim o é que desde a Lei de Terras, o que se observa é o emprego dos termos ‘ocupação’, ‘ocupante’, quando se quer referir à ‘posse’ e ao ‘posseiro’. A própria Lei n.º 6.383/76 criou a ‘licença de ocupação’, no intuito de descaracterizar a posse.

Conforme se expôs, a mesma Lei n.º 6.383/76 transformou a natureza de direito adquirido da legitimação de posse, que advinha do trabalho sobre a terra onde se formalizava o domínio, em mero direito de preferência para a aquisição onerosa da terra, pelo preço histórico da terra nua.

Chega-se, ainda, à inarredável conclusão de que todas estas exigências trazidas pela Lei n.º 6.383/76 levam apenas à preferência para a aquisição onerosa, tendo sido criados mecanismos não tão eficientes para a viabilização da legitimação de posse, não obstante o princípio da privatização das terras públicas.

Referências Bibliográficas:

BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos de Direito Agrário. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

LIMA, Getúlio Targino. A Posse Agrária Sobre Imóvel Rural. São Paulo: Saraiva, 1992.

MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. Goiânia: AB Editora, 1996.

RIZZARDO, Arnaldo. O Uso da Terra no Direito Agrário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Aide Editora.

STEFANINI, Luiz Lima. A Propriedade no Direito Agrário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.

[1] Rizzardo, Arnaldo. O Uso da Terra no Direito Agrário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Aide Editora.

[2] Stefanini, Luiz Lima. A Propriedade no Direito Agrário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.

[3] Marques, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. Goiânia: AB Editora, 1996.

[4] Lima, Getúlio Targino. A Posse Agrária Sobre Imóvel Rural. São Paulo: Saraiva, 1992.

[5] Borges, Paulo Torminn. Institutos Básicos de Direito Agrário. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.