Lei Maria da Penha: violência de gênero


Pormathiasfoletto- Postado em 24 outubro 2013

Autores: 
BRITO, Alexandre Joaquim de

 

 

INTRODUÇÃO

A história da luta pelos direitos da mulher é árdua e nem sempre compensatória. Ainda hodiernamente, mesmo tendo como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a promoção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e sendo o princípio da isonomia um direito fundamental e cláusula pétrea da mesma Constituição (art. 5º, I), para não mencionar outras normas protetivas, o preconceito de gênero priva as pessoas do sexo feminino da efetivação plena de sua condição de pessoa humana e de cidadã.

Na Antiguidade, as tribos e famílias eram comandadas pela mãe, e por isso eram chamadas de sociedades matriarcais. Nessas organizações sociais, as mães eram responsáveis pela divisão de bens, pelo sustento da família e pela organização do clã. Ao contrário do que se observa posteriormente, o marido é que se mudava para a tribo da esposa. Além disso, os antigos consideravam que o sangramento mensal da mulher e aquele ocorrido no momento do parto eram responsáveis pela subsistência do recém-nascido (SERAFINS, 2002, item 934).

No entanto, por volta do século IV d.C., portanto posterior ao período de caçadores e após o surgimento do pastoreio, os hebreus mudaram essa perspectiva e inauguraram o patriarcalismo, organização segundo a qual o poder familiar e comunitário é exercido pelo homem, pelo pai. Essa foi uma das mudanças de ideologia mais importantes da história da humanidade, e seus efeitos ainda repercutem nos dias de hoje.

Na Idade Média, as mulheres tornaram-se objetos e a sua principal função era respeitar e obedecer ao marido e servir como elo entre os diferentes clãs, sempre às ordens dos homens[1]. Além disso, vítimas da inquisição e de acusações de bruxaria por serem responsáveis pelo cuidado com os doentes e possuírem habilidades com ervas medicinais, muitas mulheres entregaram-se à vida religiosa, marcando, assim, mas uma importante influência da Igreja Medieval na vida européia da época.

Na Idade Moderna, as mulheres sofreram um duro golpe. Apesar de lutar ao lado dos homens pelos seus direitos, algo que nunca antes havia acontecido, ficaram excluídas da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, documento que surgiu após a Revolução Francesa de 1789. Não obstante, Olympe de Gouges, insatisfeita com a situação, redigiu a Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã: o resultado foi sua morte na guilhotina.

Foi na Idade Contemporânea que a mulher emancipou-se e conquistou seu espaço no cenário social. Desde o direito de votar até a criação de leis versando sobre a proteção específica, a mulher está significativamente mais presente nas empresas, na política e no mundo científico. Muito importante neste processo foi o movimento do feminismo, movimento criado em 1848, na Convenção dos Direitos da Mulher dos Estados Unidos, que foi influenciado pelas conquistas da Revolução Francesa (cujo lema era “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”), e que reivindicava que os direitos sociais e políticos adquiridos nas revoluções também deveriam se estender às mulheres, pois estas também eram cidadãs.

No Brasil, muitos textos legais surgiram tendo como objeto central a proteção dos direitos da mulher. Sem prejuízo de outros, é importante mencionar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, Decreto-Lei 5.452/1943), que traz regras sobre a proteção ao trabalho da mulher, instituindo inclusive a licença maternidade e impondo a proibição de distinção salarial pelo gênero; o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940) que tipifica, entre outros crimes, o de estupro; e a Lei 10.778/2003 que estabelece a notificação compulsória no caso de violência contra a mulher em serviços de saúde públicos ou privados.

A discriminação e violência praticadas pelas mais variadas formas contra as mulheres são manifestações de desigualdade de poder estabelecida ao longo da história entre homens e mulheres.

A desigualdade é fruto da cultura patriarcal e machista dominante na sociedade, impondo nas leis e costumes uma falsa idéia de superioridade dos homens e de inferioridade e subordinação das mulheres. Com a promulgação da Lei Maria da Penha, a sociedade deparou-se com um novo mecanismo de proteção à mulher vitimada.

Nas Constituições brasileiras vê-se uma lista de direitos, direitos estes, em muitos casos que só tinham validade para homens. Com o passar do tempo e com a evolução gradativa da sociedade, buscou-se dar maior amplitude aos direitos consagrados na Carta Política. A Constituição Federal de 1988 deu um salto no que diz respeito à igualdade de direitos entre os indivíduos. Nesta esteira, a Emenda Constitucional n° 45 conferiu status constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados pelo Congresso Nacional.

Com a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, o Brasil atende à recomendação da Comissão interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.

A limitação da violência doméstica e familiar contra a mulher se dá em razão da própria gravidade do tema e de sua repercussão social.  Sendo a família a base da sociedade, sua desintegração passa a ser sentida na comunidade, em razão da própria projeção da violência doméstica à sociedade e recebe proteção especial do Estado.

A Lei Maria da Penha tem finalidade que transcende seu próprio objeto, ou seja, o de contribuir para uma aplicação mais eficaz da lei em geral. Por inicio, serão feitos alguns comentários a partir da violência intra-familiar, enfatizando sua caracterização e motivos que levam a vítima a não denunciar o agressor. Num segundo momento, será feita explanação dos dispositivos da Lei Maria da Penha, com ressalvas às divergências quanto à abrangência da norma, argüidas pela doutrina.

VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A mulher é a maior vitima da violência de gênero. De acordo com as estatísticas, em 95% dos casos de violência praticada contra a mulher, o homem é o agressor. Usam-se as expressões violência de gênero e violência contra a mulher como sinônimos[2].

Grossi[3] ressalta que a categoria violência contra a mulher, hoje de grande acepção no Brasil, passou a fazer parte do senso comum a partir das mobilizações feministas contra o assassinato de mulheres no final dos anos setenta. No começo dos anos oitenta, tais lutas impulsionaram a criação de serviços de atendimento a mulheres “vítimas de violência”, como os grupos SOS Mulher e Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher. Em função da grande incidência da violência contra a mulher que ocorre no âmbito do espaço doméstico, conjugal e/ou familiar, a categoria passou a ser usada como sinônimo de violência doméstica.(AZEVEDO[4]; GREGORI[5]; GROSSI[6]; SOARES[7]).

A partir dos anos noventa, com o impulso dos estudos de gênero no Brasil, alguns autores passam a usar a categoria violência de gênero para designar a violência contra a mulherpraticada pelo homem[8].

Conforme Saffioti[9], violência de gênero é um conceito mais amplo que o de violência contra a mulher e abrange não apenas as mulheres, que no Brasil é constitutiva das relações de gênero. Violência de gênero, por sua vez, produz-se e reproduz-se nas relações de poder onde se entrelaçam as categorias de gênero, classe, raça/etnia. Expressa uma forma particular da violência global mediatizada pela ordem patriarcal que dá aos homens o direito de dominar e controlar suas mulheres, podendo, para isso, usar a violência.

Dentro dessa ótica, a ordem patriarcal é vista como um fator preponderante na produção da violência de gênero, uma vez que está na base das representações de gênero que legitimam a dominação masculina internalizada por homens e mulheres.

Conforme Bourdieu[10], a dominação masculina enfatiza uma dominação simbólica sobre todo o tecido social, corpos e mentes, discursos e práticas sociais e institucionais, além de fortalecer diferenças e naturalizar desigualdades entre homens e mulheres.

De acordo com Lang[11], a dominação masculina não deve ser analisada como bloco monolítico onde tudo está dado, onde as relações se reproduzem de modo idêntico. Completa-se essa análise com a perspectiva crítica feita pelas autoras feministas, como Joan Scott, Tereza de Lauretis e Judsith Butler, que indicam novo ângulo analítico para refletir-se a violência de gênero não só sob a ótica da dominação masculina, mas também para além dela.

Scott[12], tomando o conceito de gênero, enfatiza que são suas três principais características: (i) dimensão relacional, (ii) gênero como construção social da diferença entre os sexos e (iii) gênero como um campo primordial onde o poder se articula. Scott historiza a definição de gênero e propõe sua utilização como categoria analítica e instrumento metodológico para entender como, ao longo da história, se produziram e legitimaram construções de saber/poder sobre a diferença sexual.

Esse novo ângulo de análise que ressalta a construção social das diferenças de gênero abre a possibilidade de desconstrução da universalidade das categorias homem e mulher, associadas a construções binárias que se baseiam em estereótipos sobre o que é masculino e feminino ou que associam poder e dominação ao masculino e obediência e submissão ao feminino. O caso do gênero é relacional: não se pode permitir no contexto das relações de gênero, um poder masculino absoluto. Mulheres detêm parcelas de poder, embora nem sempre suficientes para sustar a dominação ou violência que sofrem. Dessa maneira, é possível refletir na possibilidade de diferentes processos de subjetivação e singularização vivenciados pelos homens e mulheres.

É nessa linha de raciocínio que Lauretis[13] pensa a pluralidade do sujeito como “sujeito múltiplo” e Butler[14] desenvolve o conceito de “gêneros inteligíveis” para se referir às diferentes identidades de gênero que podem assumir a matriz hegemônica construída conforme as ideologias de gênero dominantes ou, ao contrário, distanciar-se delas assumindo novos modos de ser. No processo de singularizaçao é possível desenvolver formas de ser homem e ser mulher ou diferentes modos de expressão da masculinidade e feminilidade.

Para Scott[15], homens e mulheres não cumprem sempre nem literalmente as prescrições de sua sociedade ou de suas categorias analíticas. É necessário examinar as formas pelas quais as identidades geneficadas são construídas e relacionar seus achados com toda uma série de atividades, organizações e representações sociais historicamente especificas.

Contudo, a dominação masculina ainda é um privilégio que a sociedade patriarcal concede aos homens. Nem todos os homens usam-no do mesmo modo, assim como nem todas as mulheres submetem-se igualmente a essa dominação.

É com base nessas novas possibilidades analíticas, suscitadas pelos estudos de gênero, que se questiona o uso do conceito violência de gênero como sinônimo da violência contra a mulherou da violência praticada pelo homem contra a mulher. No nosso entendimento, a violência de gênero engloba as diferentes formas de violência praticadas no âmbito das relações de gênero, não só a violência praticada por homens contra mulheres, mas também a violência entre mulheres e a violência entre homens.

Notas

[1]No entanto, como esta época foi marcada por muitas guerras e, por conseqüência, grandes períodos de ausência dos maridos, também pode-se encontrar comerciantes e mercadoras nos centros urbanos da Europa medieval.

[2] TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher?: São Paulo: Brasiliense, 2003, p.11.

[3] GROSSI, M.P. “Rimando Amor e Dor: reflexões sobre violência no vínculo afetivo-Conjugal”. Em Pedro, J.M. & Grossi, M.P. (orgs.) Masculino, Feminino, Plural. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 1998.

[4]. AZEVEDO, Maria Amélia. Mulheres espancadas: a violência denunciada. São Paulo: Cortez, 1985.

[5] GREGORI, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993

[6] GROSSI, M.P. “Rimando Amor e Dor: reflexões sobre violência no vínculo afetivo-Conjugal”. Em Pedro, J.M. & Grossi, M.P. (orgs.) Masculino, Feminino, Plural. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 1998.

[7] SOARES, Bárbara Musumeci. Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

[8] SAFFIOTI, Heleieth I. B.; ALMEIDA, Suely de Souza. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro, Revinter, 1995.

[9] Ibid.

[10] BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999

[11] WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos Feminsitras, 2001, p.461.

[12] SCOTT, J. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, 1995, p.71-99.

[13] LAURETIS, T. Technologies of gender. Bloomington/Indianapolis: Indiana Unversity Press, 1987.

[14] BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo como subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2003.

[15] SCOTT, J. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, 1995, p.71-99.

 

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