As medidas restritivas da liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes


PorDiogo- Postado em 22 novembro 2011

Autores: 
SILVA, Fabiana Maria Lobo da

Embora titulares da liberdade de locomoção desde o nascimento, as crianças e os adolescentes não podem exercitá-la livremente enquanto não atinjam o necessário grau de maturidade biopsicossocial.

1. Considerações gerais sobre o direito fundamental à liberdade de locomoção

O direito à liberdade, definido por Jean Rivero como "o poder de autodeterminação, em virtude do qual o homem escolhe por si mesmo seu comportamento pessoal" [01], surgiu como reação aos arbítrios e às violações das monarquias absolutistas, despontando, formalmente, no mundo moderno, com a Magna Carta de 1215. Desde então, vem sendo reconhecido na generalidade das Constituições dos Estados Democráticos de Direito, a exemplo da Carta Constitucional brasileira.

Em seu contorno jurídico atual, o direito fundamental à liberdade comporta diversas outras liberdades, como a liberdade de locomoção, de pensamento, de opinião, de religião, de consciência e artística. Quanto à primeira delas – a liberdade de locomoção -, é cediço que representa o direito do indivíduo de ir, vir, ficar, permanecer, bem como de circular pelas vias públicas [02].

Com seu indubitável caráter de direito fundamental, a liberdade de locomoção encontra-se consagrada, no ordenamento jurídico brasileiro, no art. 5º, XV, da Constituição, que assim dispõe: "É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens". Afora esse dispositivo, há outros artigos constitucionais que a tutelam, também, ainda que indiretamente, a exemplo do art. 5º, LXI, que veda a prisão ilegal [03].

Como direito fundamental, a liberdade de locomoção possui as características típicas dessa natureza de direito, tais como: a universalidade [04], a indivisibilidade [05], a complementaridade [06], a interdependência [07] e a imprescritibilidade [08]. Apresenta, de igual modo, força normativa que atinge tanto o Estado, informando suas atividades políticas, administrativas, judiciais e legislativas [09], como os particulares, através da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung).

Por outro lado, assim como todos os direitos, o direito fundamental à liberdade de locomoção não é um direito ilimitado, sendo passível de restrições, de limitações. Com efeito, em certas circunstâncias, a própria Constituição autoriza a restrição ao direito de liberdade de locomoção, quer de forma imediata (restrições previstas diretamente no corpo constitucional), quer de forma mediata (restrições realizadas através de autorização expressa ou tácita [10] da Constituição ao legislador ordinário) [11], independentemente de haver ou não tempo de guerra [12].

Nesse contexto, é certo que as leis restritivas do direito à liberdade de locomoção, bem como as que venham restringir qualquer outro direito fundamental, devem respeitar o "limite dos limites", que é a observância ao princípio da não-retroatividade [13], da generalidade [14], da abstração e da proporcionalidade, em seu triplo aspecto (adequação, necessidade e razoabilidade). Outrossim, tais leis devem sempre resguardar o núcleo ou conteúdo essencial do direito fundamental a que se refere, que consiste, na definição de Peter Häbeler [15], naquele âmbito dentro do qual não há nenhum outro bem jurídico, de igual ou superior importância, que seja legitimamente limitador do direito fundamental [16].

Por fim, convém registrar que a liberdade de locomoção pode colidir com outro direito ou valor constitucionalmente protegido. Nesse caso, haverá um conflito a ser resolvido através do uso do princípio da harmonização ou da concordância prática, que, por meio de um juízo de ponderação [17], irá "coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição de princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas", como ensina Alexandre de Moraes [18]. Na impossibilidade de uma coordenação, o princípio em pauta indicará o interesse de maior peso que deverá prevalecer em determinada situação de fato, no âmbito de uma relação denominada de relação de precedência condicionada, haja vista que, como leciona Robert Alexy, a precedência de um interesse sobre o outro se condiciona às circunstâncias do caso concreto, que, se alteradas, poderão ocasionar uma solução de precedência inversa [19].


2. O direito à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes

Na qualidade de sujeitos de direitos, as crianças e os adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana [20], dentre os quais se encontra o direito à liberdade, que lhes é assegurado, expressamente, pelo art. 227, caput, da Constituição Federal brasileira de 1988 [21].

Regulamentando o citado dispositivo constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 15, estabelece: "A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis" [22]. Logo em seguida, em seu art. 16, dispõe sobre vários aspectos do direito à liberdade infanto-juvenil, sendo o primeiro deles referente à liberdade de locomoção, ou seja, à liberdade de "ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais".

Embora titulares da liberdade de locomoção desde o nascimento (capacidade de direito) [23], as crianças e os adolescentes não podem exercitá-la livremente (capacidade de exercício), enquanto não atinjam o necessário grau de maturidade biopsicossocial. A própria lei retira a autonomia, ou a autonomia absoluta, dos menores de determinada idade e assim o faz em caráter protetivo, à vista da maior suscetibilidade e fragilidade desses frente aos perigos da vida.

As restrições legais à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes podem decorrer do normal exercício do poder familiar ou das próprias funções do Estado. De uma forma ou de outra, é inegável que possuem, no ordenamento jurídico brasileiro, um denominador comum: o art. 227 da Constituição, que consagra a proteção integral da criança e do adolescente a cargo da família, do Estado e da sociedade.

É certo ainda que, em algumas hipóteses, tais restrições possuem fins adicionais (além da proteção das crianças e dos adolescentes), como a defesa da ordem pública e dos direitos alheios, conforme se verá adiante. Em todo caso, deverão observar os já explanados "limites dos limites" dos direitos fundamentais: devem resultar de leis não-retroativas, genéricas, abstratas e proporcionais, que preservem o núcleo essencial da liberdade da criança e do adolescente, sob pena de interposição do remédio constitucional do habeas corpus, utilizável sempre que alguém sofrer, ou seja ameaçado de sofrer, violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder [24].


3. As restrições à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes decorrentes do poder familiar

A família, seja ela biológica ou substituta, é co-responsável, nos termos do art. 227, caput, da Constituição, juntamente com o Estado e a sociedade, pela garantia dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes. A obrigação constitucional se estende a todo o núcleo familiar, composto pelos ascendentes, bem como pelos colaterais próximos. Todavia, não há como negar que os responsáveis imediatos por tal obrigação são os titulares do poder familiar [25], isto é, os titulares do conjunto de poderes-deveres [26] irrenunciáveis, inalienáveis e originários, mediante os quais os genitores, biológicos ou adotivos [27], assumem a responsabilidade pelos seus filhos menores [28].

O Estatuto da Criança e do Adolescente, a esse respeito, em seu art. 22, preceitua que são deveres dos pais para com os filhos menores os de sustento, de guarda e de educação, bem como o de fazer cumprir as determinações judiciais no interesse da criança e do adolescente.

A obrigação de sustento compreende a assistência material em todos os seus aspectos. Por seu turno, o dever de educação objetiva a formação moral, intelectual e espiritual do menor. Já a incumbência de guarda, como leciona Tânia da Silva Pereira, consiste na efetiva custódia e vigilância que os pais devem ter no direcionamento das ações da criança e do adolescente, como forma de protegê-los das influências nocivas à sua formação [29].

Observa-se, claramente, da leitura dessas definições, que do dever de educação e do dever de guarda, decorre o poder - dever dos pais de restringir a liberdade de locomoção dos filhos menores, como forma de resguardá-los e de lhes garantir um sadio desenvolvimento biopsicossocial. Podem assim, nesse esteio, proibir que os filhos menores freqüentem determinados lugares ou que circulem nas ruas em horários avançados ou ainda desacompanhados ou em má companhia, respeitando, sempre, a gradativa maturidade dos filhos. Isso porque, nas palavras de Rosa Cândido Martins, "a função protectora dos pais deve ser inversamente proporcional ao desenvolvimento físico, intelectual, moral e emocional dos filhos" [30].

Assim, dentro dos limites do razoável, compete aos pais decidir sobre a medida da liberdade a ser concedida aos seus filhos, sem que haja, nesse aspecto, interferência do Estado [31]. No entanto, em casos de abusos ou omissões, torna-se necessária a intervenção estatal, para fazer valer, em nome da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a liberdade de locomoção dos filhos [32]. Para tanto, há a previsão de tipos penais [33] (como o de abandono intelectual [34] e o de cárcere privado de descendente [35], previstos no Código Penal brasileiro) e de medidas cíveis (como as medidas de perda e de suspensão do poder familiar, estabelecidas, respectivamente, nos arts. 1.637 e 1.638, do Código Civil brasileiro [36]), que punem o uso irregular, desproporcional do poder em questão [37]. A propósito, Carla Fonseca destaca que a família não se beneficia de maior tolerância relativamente a qualquer abuso, uma vez que, justamente em seu seio, deve ser o espaço de maior segurança, do maior afeto, da melhor compreensão dos filhos menores [38].

Outrossim, no nosso entender, o Estado também poderá intervir contra os abusos e omissões do poder familiar sobre a liberdade de locomoção do filho criança ou adolescente através da apreciação de habeas corpus [39]. Nesse diapasão, Alexandre de Moraes salienta: "Na maior parte das vezes, a ameaça ou coação à liberdade de locomoção por parte do particular constituíra crime previsto na legislação penal, bastando a intervenção policial para fazê-la cessar. Isso, porém, não impede a impetração do habeas corpus, mesmo porque existirão casos em que será difícil ou impossível a intervenção da polícia para fazer cessar a coação ilegal" [40].

Por derradeiro, merece registro que os próprios titulares do poder familiar podem recorrer ao Estado quando divergirem entre si sobre as restrições da liberdade de locomoção dos filhos, tal como prevê o art. 1.631, parágrafo único, do Código Civil brasileiro [41].


4. As restrições à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes decorrentes do poder estatal

O Estado tem o dever de restringir a liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes com o intento de garantir sua efetiva proteção integral. Por outro lado, possui, de igual modo, a obrigação de restringir a liberdade de qualquer pessoa, sempre que necessário para assegurar a ordem pública e os direitos fundamentais alheios [42].

Em face dessa diversidade de fins (exclusivamente protetivos ou não), classificamos as restrições estatais à liberdade de locomoção das crianças e dos adolescentes em: restrições estatais de natureza puramente protetiva e restrições estatais de natureza mista [43], que são as denominadas medidas sócio-educativas, conforme passaremos a analisar.

4.2 Restrições estatais de natureza puramente protetiva

Ao longo do texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, encontramos várias medidas restritivas da liberdade de locomoção infanto-juvenil de cunho estritamente protetivo.

Destacamos, primeiramente, a medida prevista no art. 83 do Estatuto, que proíbe que a criança viaje para fora da comarca onde reside desacompanhada dos pais ou responsável ou sem expressa autorização judicial [44]. Já nos dois artigos subseqüentes, há o impedimento de que criança ou adolescente viaje para o exterior desacompanhado de ambos os pais ou na companhia de um deles, mas sem a autorização expressa do outro (através de documento com firma reconhecida) ou, ainda, sem autorização judicial. A outra proibição é a de que qualquer criança ou adolescente nascido no território nacional não pode sair do país, sem prévia e expressa autorização judicial, na companhia de estrangeiro residente ou domiciliado no exterior. Há, nesses casos, restrições diretas ao preceito contido no art. 5º, XV, da Constituição de 1988, que prevê a livre locomoção no território nacional. Porém, todas elas buscam proteger a criança e o adolescente contra perigos rotineiros, a exemplo do tráfico interestadual e internacional de menores para alimentar a prostituição infanto-juvenil e do mercado criminoso de venda de órgãos.

O art. 75 do Estatuto, por sua vez, determina que todas as crianças e todos os adolescentes só terão acesso às diversões e espetáculos públicos, quando classificados como adequados à sua faixa etária, vedando-se a entrada de menores de 10 anos, caso não estejam acompanhados dos pais ou responsável. De forma semelhante, o art. 80 proíbe a presença de crianças e adolescentes em estabelecimentos que explorem comercialmente bilhar, sinuca ou jogos de aposta.

Em seu art. 149, o Estatuto veio conferir ao juiz competente pela Justiça da Infância e da Juventude o poder de disciplinar, através de portarias, ou autorizar, através de alvarás, sempre de forma fundamentada e casuística, a entrada e a permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em determinados locais, bem como a sua participação em certos eventos [45]. Tem-se, aqui, as denominadas intervenções restritivas, que consistem, na lição de J. J. Gomes Canotilho, em atos ou atuações das autoridades públicas restritivamente incidentes, de modo concreto e imediato, sobre um direito [46].

Poder-se-ia indagar, nesse contexto, se o juiz da infância e da juventude tem poder para baixar portaria, restringindo a liberdade de locomoção da criança e do adolescente, fora dos casos previstos no aludido art. 149, do Estatuto. No nosso entender, a resposta é positiva [47], desde que a intervenção judicial restritiva seja estritamente necessária, adequada e razoável para resguardar outros direitos fundamentais infanto-juvenis [48]. Tal portaria, por conseguinte, encontraria seu fundamento não no artigo estatutário em comento, mas diretamente no art. 227, caput, da Constituição, que conclama a co-responsabilidade do Estado (inclusive Estado-juiz) pela proteção integral da criança e do adolescente. Assim, a título de exemplo, afirmamos ser legítima uma portaria da Justiça da Infância e da Juventude, que, sobre os auspícios da proteção integral, venha coibir a permanência de menores de idade, em determinados horários, em locais públicos onde notoriamente se pratique prostituição ou se comercialize substâncias entorpecentes, mesmo que haja autorização do titular do poder familiar em sentido contrário [49].

Outra forma de restrição estatal de natureza puramente protetiva é a de acolhimento em abrigos [50] de criança ou de adolescente em situação de risco social [51], que ocorre nas hipóteses previstas no art. 98, do Estatuto: violação ou ameaça de violação aos direitos da criança ou adolescente pela falta ou omissão do Estado ou da sociedade; pela falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; ou ainda em razão da sua própria conduta.

Quanto ao assunto, é questionável se a colocação de crianças e adolescentes em abrigo pode dar ensejo à impetração de habeas corpus, quando se pretenda discutir a legalidade da medida. Enfrentando questão similar, o Tribunal Constitucional Espanhol decidiu que a medida de acolhimento de menor em centro assistencial não é medida privativa de liberdade, não comportando, desde modo, habeas corpus [52].

Em sentido contrário, entendemos que a medida protetiva de abrigo pode ser questionada via habeas corpus. Isso por que vislumbramos que ela incide diretamente sobre a liberdade de locomoção da criança e do adolescente, restringindo-a, limitando-a. Possui, conseqüentemente, inegável caráter de restrição de liberdade, que tem por fim exclusivo a proteção do menor de idade. Por outro lado, o habeas corpus é o remédio jurídico cabível sempre que a restrição ou ameaça de restrição à liberdade de locomoção seja ilegal ou abusiva, independentemente do fim que persiga. Portanto, em um silogismo lógico, havendo ilegalidade ou abuso, poder-se-á, perfeitamente, interpor habeas corpus contra medida protetiva de acolhimento de criança ou de adolescente em abrigo.

Já no que diz respeito à colocação em abrigos de crianças e adolescentes abandonados - os conhecidos "meninos de rua" –, a doutrina diverge sobre a possibilidade ou não de aplicação compulsória da medida. Dentre os posicionamentos favoráveis, destacamos o de Luciana de Oliveira Leal. No entender da autora, o Estado tem o dever de abrigar crianças e adolescentes abandonados [53], mesmo contra a vontade desses, haja vista que, conforme argumenta, se tais menores de idade estivessem sobre o regular poder familiar, também teriam sua liberdade de locomoção restringida.

Concordando em parte com o referido posicionamento, sustentamos que o Estado possui a irrefutável obrigação de substituir os pais, quando ausentes, nos deveres de guarda, de educação e de sustento da criança e do adolescente, posto que é co-responsável da obrigação solidária de proteção integral (art. 227, caput, da Constituição) [54]. Nesse norte, não pode permitir que crianças e adolescentes façam das ruas as suas moradas, expondo-se a todos os tipos de perigo. Não há dúvida de que a omissão do poder estatal dá espaço a tragédias, como a da Candelária, no Estado do Rio de Janeiro, em que oito crianças foram mortas por "justiceiros" durante o sono [55]. A propósito, enfatiza Luciana de Oliveira Leal que há o direito de liberdade de locomoção da criança e do adolescente, mas há também, principalmente, o direito à vida, à dignidade, à proteção integral devida pela família, pela sociedade e pelo Estado [56], que autorizam as restrições daquela liberdade. No mesmo sentido, afirma Peter Häbeler, parafraseando Peters, que "forma parte de la esencia misma de la libertad el que ésta venga delimitada en relación a fines más altos" [57].

Ocorre que, a pretexto de proteger a criança e o adolescente, não pode o Estado trancafiá-los entre grades e cercas, cerceando, por completo, a sua liberdade de locomoção, assim como não poderia fazer o titular do poder familiar, sob pena de cometimento de crime de cárcere privado. De fato, tratar um menor abandonado como menor infrator é retroagir ao antigo cenário do Código de Menores de 1979 e da ultrapassada doutrina da situação irregular, impondo-lhe castigo pelo simples fato de já ser pela vida castigado.

Entendemos, portanto, que a melhor solução reside no dever do Estado de oferecer abrigos, mas abrigos de portas abertas, em que a permanência da criança e do adolescente seja garantida pelo tratamento que lhes é dispensado, pelas alternativas que lhes são ofertadas e não pelos ferros dos portões.

4.3 Restrições estatais de natureza mista

Como visto, o Estado pode impor medidas restritivas da liberdade de locomoção da criança e do adolescente, visando resguardar, paralelamente, a ordem pública e os direitos fundamentais alheios, violados ou ameaçados de violação, em face de conduta do próprio menor, que tenha contrariado os preceitos da lei penal [58].

É verdade que a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos, consagrada pela Constituição, não afasta a responsabilidade pela prática de fatos típicos, antijurídicos e culpáveis [59]. O menor, embora inimputável, é sujeito à responsabilização juvenil, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente [60], que ressalva, apenas, a irresponsabilidade absoluta das crianças (menores de 12 anos), às quais se aplicam, tão-somente, as medidas protetivas enumeradas no seu art. 101 [61].

Assim, se um adolescente praticar conduta equivalente a crime ou a contravenção penal, será por isso responsabilizado, podendo sofrer, inclusive, restrição da sua liberdade de locomoção. Isso acontece através das medidas sócio-educativas de internamento ou de semi-liberdade, previstas ao lado das medidas sócio-educativas de advertência, de reparação do dano, de prestação de serviços à comunidade, de liberdade assistida e das denominadas medidas sócio-educativas impróprias, que são as medidas de proteção aplicadas ao autor de ato infracional [62].

As medidas sócio-educativas privativas de liberdade, bem como as demais medidas aludidas, possuem evidente caráter de sanção, embora apresentem prevalente conteúdo pedagógico [63]. À vista disto, devem se pautar nos ditames do princípio da proporcionalidade: necessitam ser adequadas para a proteção e a reeducação do adolescente e para a preservação da ordem pública e dos direitos alheios; devem ser estritamente necessárias, representando uma "ultima ratio", somente aplicáveis diante da ineficácia das demais espécies de medidas; e ainda precisam ser proporcionais em sentido estrito, para repreender na justa medida da gravidade do fato e da lesão jurídica produzida, atendendo às necessidades de educação e de proteção do adolescente.

À luz do princípio da proteção integral, as medidas sócio-educativas restritivas de liberdade só podem ser aplicadas pelo Estado quando observadas todas as garantias constitucionais e processuais asseguradas aos imputáveis. Nesse sentido, enfatiza João Batista Costa Saraiva: "Não pode o adolescente infrator, dependendo da natureza do ato infracional que se venha a atribuir, receber de parte da Justiça Especial da Infância e da Juventude tratamento mais rigoroso do que aquele que é direcionado ao adulto (maior de 18 anos) pela Corte Penal, sob pena de estarmos a subverter um sistema e negar vigência à Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, na medida em que se nega ao adolescente a quem se atribui a prática de um ato infracional um direito que se reconhece a um adulto pelo mesmo fato" [64]. Logo, são reconhecidas aos adolescentes, dentre outras, as seguintes garantias: garantia do devido processo legal; do contraditório; da ampla defesa; da presunção de inocência; do juízo natural; da proibição de provas ilícitas; da proibição de apreensão sem que haja flagrante delito ou ordem judicial escrita e fundamentada [65]; do respeito ao princípio da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade [66]; e do princípio in dubio pro libertate [67]. Por outro lado, deverão ainda ser respeitadas as garantias especificamente reconhecidas ao adolescente infrator pelo art. 227, § 3°, da Constituição: garantia do pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional; de igualdade na relação processual; de defesa técnica por profissional habilitado; e da observância aos princípios da brevidade, da excepcionalidade e do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quanto às medidas de privação de liberdade [68].

O Estatuto da Criança e do Adolescente, regulamentando o princípio constitucional da excepcionalidade das medidas sócio-educativas restritivas de liberdade, estabelece, em seu art.122, que só se aplicará a medida de internação nas seguintes hipóteses: a) Tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência contra pessoa: aqui, a lei foi taxativa, pelo que não é cabível a internação pela prática de atos infracionais em que não haja ameaça ou violência contra pessoa, mesmo que sejam graves, a exemplo do correspondente ao tipo de tráfico de drogas, como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça [69]; b) Por reiteração no cometimento de outras infrações graves: a reiteração não se confunde com a reincidência. A propósito, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que só se justifica a aplicação da internação quando houver reiteração por, no mínimo, três vezes [70]. No entanto, discordamos deste posicionamento, por compreender que esta interpretação objetiva pode dar margem a perigosos sentimentos de impunidade e de injustiça. Nesse sentido, salienta Emílio Garcia Mendez: "Contribuir com a criação de qualquer tipo de imagem que associe a adolescência com impunidade (de fato ou de direito) é um desserviço que se faz ao adolescente, assim como, objetivamente, uma contribuição irresponsável às múltiplas formas de justiça com as próprias mãos, com as quais o Brasil desgraçadamente possui uma ampla experiência" [71]; c) Por descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta: é a denominada "internação sanção", aplicada pelo prazo máximo de 03 meses, com a devida observância do princípio do contraditório e da ampla defesa [72]. Nesta hipótese, não importa se a medida anterior descumprida tenha sido estabelecida em sede de sentença, que julgou a ação sócio-educativa ou em sede de decisão homologatória ou concessiva de remissão [73].

Outrossim, o Estatuto ainda prevê a possibilidade de decretação, mediante ordem fundamentada, de medida cautelar de internação provisória do adolescente pelo prazo máximo e improrrogável de 45 dias [74], bem como de sua apreensão em flagrante de ato infracional [75]. Em ambos os casos, exigem-se os pressupostos da gravidade do fato, da repercussão social, da garantia da ordem pública e da garantia da segurança do adolescente, previstos no art. 174, do referido diploma legal [76]. Analisando tais pressupostos, afirma Antônio Fernando do Amaral e Silva, que a gravidade do fato se dá quando o ato infracional praticado equivale a crime punido com reclusão; a repercussão social é a que causa alarma, revolta, provocada pelas circunstâncias e conseqüências do ato; a garantia da ordem pública se reportar à necessidade de se evitar que o adolescente cometa outras infrações; e a garantia da segurança pessoal do adolescente se refere à possibilidade de ameaça de vindita popular, do ofendido, ou de sua família, contra o menor [77].

Finalmente, devemos registrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente assegura, em seu art. 124, vários direitos ao adolescente privado de liberdade, que constituem, nas palavras de Emílio Garcia Mendez,"uma ‘Revolução Francesa’, com mais de 200 anos de atraso, no mundo dos adolescentes privados de sua liberdade" [78]. Dentre esses direitos, destacamos os seguintes: a) direito de ser tratado com respeito e dignidade; b) de ser internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável (decorre do direito fundamental à convivência familiar); c) de receber escolarização e profissionalização; d) de receber assistência religiosa; e) de realizar atividades externas, salvo expressa determinação judicial em contrário [79]; f) de reavaliação periódica, no máximo a cada 06 meses, sobre a necessidade de manutenção da medida; g) de não ser interno por período superior a 03 anos, contado separadamente para cada medida imposta, segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça [80]; h) de liberação compulsória, com o implemento da idade de 21 anos [81]; i) de cumprir a medida em entidades exclusivas para adolescentes [82]; j) de entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público; l) de peticionar diretamente a qualquer autoridade; m) de avistar-se reservadamente com o seu defensor. Em suma, o adolescente autor de ato infracional possui todos os direitos e prerrogativas do adulto, bem como aqueles exigidos pela sua peculiar condição de pessoa em fase de desenvolvimento biopsicossocial.


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Notas

  1. RIVERO, Jean. Les libertés publiques. Droits de l´homme. Apud SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 207. Na explanação de De Plácido e Silva, liberdade vem do "latim libertas, de liber (livre), indicando, genericamente, a condição de livre ou estado de livre, significa , no conceito jurídico, a faculdade ou poder outorgado à pessoa, para que possa agir, segundo sua própria determinação, respeitadas, entanto, as regras legais instituídas. A liberdade, pois, exprime a faculdade de se fazer ou não fazer o que se quer, de pensar como se entende, de ir e vir a qualquer atividade, tudo conforme a livre determinação da pessoa, quando não haja regra proibitiva para a prática do ato, ou não se institua princípio restritivo ao exercício da atividade" (SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Vol. III, 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 84).
  2. Destaca Alexandre de Moraes que a liberdade de locomoção engloba quatro situações: o direito de acesso e ingresso no território nacional; o direito de saída do território nacional; o direito de permanência no território nacional; o direito de deslocamento dentro do território nacional (MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.141).
  3. "Art. 5º (…). LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei".
  4. A universalidade decorre do fato de que todos são iguais e, por conseguinte, merecedores dos mesmos direitos, independentemente de raça, etnia ou religião. A respeito, John Rawls enfatiza: "Human rights are thus distinct from, say, constitutional rights, or the rights citizenship, or from other kinds of rights that belong to certain kinds of political institutions , both individualist and associationist. They are a special class of rights of universal application and hardly controversial in their general intention. They are part of a reasonable law of peoples and specify limits on the domestic institutions required of all peoples by that law. In this sense they specify the outer boundary of admissible domestic law of societies in good standing in a just society of peoples" (RAWLS, John. The law of peoples. In "On Human Rights. The Oxford Amnestry Lectures 1993". Stephen Shute and Susan Hurley, Editors. New York: Basic Books, 1993, pp. 70-71).
  5. Em face da indivisibilidade dos direitos fundamentais, resta superada a dicotomia, outrora existente, que separava os direitos civis e políticos de um lado e os direitos sociais, culturais e econômicos, de outro.
  6. Comentando a complementaridade dos direitos fundamentais, Peter Häberle afirma ser "fácilmente demostrable que los diversos derechos fundamentales, incluso en relación a cada uno de los titulares, se condicionan recíprocamente. Al objeto del pleno desarrollo de la personalidad , debe ofrecerse al individuo la oportunidad de hacerse de una propiedad (…)El derecho de formar asociaciones religiosas presupone de parte suya la libertad de conciencia e viceversa(…)La relación de complementariedad en que se hallan cada uno de los derechos fundamentales es una relación de condicionamiento no sólo con referencia al conjunto de la Constitución, sino también con referencia al individuo titular de los derechos subjetivos. Todos los derechos fundamentales se encuentran en una relación más o menos estrecha ente sí. Se garantizan y se refuerzan reciprocamenente. (HÄBERLE, Peter. La libertad fundamental en el Estado constitucional. Granada: Comares, 2003, pp. 41-43).
  7. Os direitos fundamentais devem ser entendidos e aplicados à luz de outros direitos fundamentais. Não há como desassociar o direito à liberdade religiosa, por exemplo, do direito à vida. Em razão da interdependência, a lesão a certo direito fundamental pode atingir outro direito dessa espécie.
  8. Para Luigi Ferrajoli, os direitos fundamentais apresentam a característica da indisponibilidade ativa (não são alienáveis pelo sujeito que é seu titular) e passiva (não são expropriados e limitados por outros sujeitos, dentre os quais o Estado) (FERRAJOLI, Luigi. Derechos fundamentales. In FERRAJOLI, Luigi et allii. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2001, p.32). Todavia, o mencionado jurista é criticado, em tal posicionamento, por Riccardo Guastini, que sustenta que a "indisponibilidade" só pode caracterizar um direito fundamental quando houver previsão legal expressa. Em sua crítica, Riccardo Guastini apresenta o exemplo da liberdade pessoal, que, embora consista em um direito fundamental, pode ser disponibilizada (por ordem judicial, v.g) (GUASTINI, Riccardo. Tres problemas para Luigi Ferrajo.. In FERRAJOLI, Luigi et allii. Op. cit., p.62).
  9. A vinculação de entidades públicas exige, conforme ensina J. J. Gomes Canotilho, "uma vinculação de todas as entidades públicas, desde o legislador, os tribunais à administração, desde os órgãos do Estado aos órgãos regionais e locais, desde os entes da administração central até às entidades públicas autónomas. A cláusula de vinculação de todas as entidades públicas exige, pois, uma vinculação sem lacunas: abrange todos os âmbitos funcionais dos sujeitos públicos e é independente da forma jurídica através da qual as entidades públicas praticam os seus actos ou desenvolvem suas actividades" (CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 439).
  10. Compartilhamos do entendimento de que pode haver restrições constitucionais aos direitos fundamentais não expressamente previstas na Constituição, mas necessariamente nesta inclusa. Neste norte, cf. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p.596.
  11. Para Jorge Miranda, as restrições podem deixar de fundar-se em preceitos ou princípios constitucionais, mas, indubitavelmente, qualquer restrição tem de ser consentida, explícita ou implicitamente, pela Constituição (MIRANDA, Jorge. O regime dos direitos, liberdades e garantias in "Estudo sobre a Constituição", 3º vol., 2 ed. Lisboa: Livraria Petrony, 1979, p.81).
  12. Discordamos, deste modo, do posicionamento de José Afonso da Silva, quando sustenta que o art. 5º, XV, da Constituição só autoriza leis restritivas em tempo de guerra (SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 211).
  13. Não apenas as leis restritivas totalmente retroativas (ou seja: que se aplicam a situações e relações já esgotadas) são vetadas, mas também leis restritivas parcialmente retroativas (quer dizer: que se aplicam a situações vindas do passado e ainda não terminadas) (MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, 3 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 339).
  14. Entende-se por lei individual aquela que impõe restrições aos direitos fundamentais de uma pessoa ou de um grupo de pessoas determinadas ou determináveis, ferindo, dessa forma, o princípio da igualdade.
  15. HÄBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en Ley Fundamental de Bonn. Madrid: Dykinson, 2003, p. 65.
  16. Para José Carlos Vieira de Andrade, o núcleo essencial de um direito fundamental consiste nas "faculdades típicas que integram o direito, tal como é definido na hipótese normativa, e que correspondem à projecção da idéia de dignidade humana individual na respectiva esfera da realidade – abrangem aquelas dimensões dos valores pessoais que a Constituição visa em primeira linha proteger e que caracterizam e justificam a existência autónoma daquele direito fundamental" (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 2 ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 172).
  17. Peter Häbeler se refere à ponderação de bens como o princípio através do qual se determinam o conteúdo essencial e os limites dos direitos fundamentais, bem como se solucionam os conflitos que surgem entre os bens jurídico-constitucionais, que coexistem uns junto aos outros (HÄBERLE, Peter. Op. cit., p. 33).
  18. MORAES, Alexandre de. Op. Cit., p.61.
  19. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997, p. 90.
  20. "Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade" (Estatuto da Criança e do Adolescente).
  21. "Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (grifo nosso).
  22. Grifo nosso.
  23. Como salienta Luís Maria Díez-Picazo, com relação aos menores, não há problema quanto à titularidade de direitos fundamentais, mas sim quanto ao exercício desses direitos (DÍEZ-PICAZO, Luís Maria. Sistema de derechos fundamentales. Madrid: Thomson Civitas, 2003, p.128). Assim, entendemos que as crianças e os adolescentes, desde o nascimento, são titulares de direitos fundamentais, que ficam em estado de latência até a conquista da sua gradativa maturidade. Por outra via, para John Stuart Mill, o direito de autonomia só pertence aos adultos. Nesta linha, aduz que: "It is, perhaps, hardly necessary to say that this doctrine in meant to apply only to human beings in the maturity of their faculties. We are not speaking of children, or of young persons below the age which the law may fix as that of manhood or womanhood. Those who are still in a state to require being taken care of by others, must be protected against their own actions as well as against external injury" (MILL, John Stuart. On Liberty. Apud FORTIN, Jane. Children’s rights and the developing law. 2 ed. Londres: Lexis Nexis, 2003, p. 21).
  24. "Art. 5º (…) LXVIII- conceder-se-á ‘habeas – corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder" (Constituição Federal brasileira de 1988).
  25. Expressão adotada pelo Novo Código Civil brasileiro em substituição ao termo "pátrio poder". Para Marcos Alves da Silva, a novel terminologia é passível de críticas, "porque familiar implica referência a toda a família, e tal ‘poder’ constitui-se prerrogativa exclusiva dos pais" (SILVA, Marcos Alves da. Do pátrio poder à autoridade parental. Repensando fundamentos jurídicos da relação entre pais e filhos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.10).
  26. É minoritária (e atualmente superada) a corrente doutrinária que sustenta a natureza de direito subjetivo do poder familiar, em detrimento da sua natureza de poder - dever.
  27. Impende ressaltar que, com o art. 226, § 5º, da Constituição brasileira de 1988, foi definitivamente extinta a figura do chefe da família, passando o poder familiar a ser exercido pelo pai e pela mãe em igualdade de condições. De igual modo, a Constituição em questão, em seu art. 226, § 3º e § 4º, veio tornar dispensável o matrimônio para fins do exercício do poder familiar, na medida em que reconheceu como entidade familiar a união estável entre pessoas de diferentes sexos e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
  28. Nesse sentido, cf.: SOTTOMAYOR, Maria Clara. Regulação do exercício do poder paternal nos casos de divórcio. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 17. Por outro prisma, na definição apresentada pelo jurista espanhol Luis Gómez Morán, consiste o poder familiar em: "Una suma de derechos y obligaciones que unen a los padres con sus hijos en relación recíproca, comprobándose esta bilateralidad en todos los aspectos de la organización paterno-filial, ya que dentro de ella no hay un solo derecho que no resulte compensado con el correlativo deber (MORÁN, LUIS GÓMEZ. La posición jurídica del menor en el derecho comparado. Tesis Doctoral de las universidades de Madrid y Coimbra. Madrid: Instituto Editorial Reus, 1947, p. 168).
  29. PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p.239.
  30. MARTINS, Rosa Cândido. Poder paternal vs autonomia da criança e do adolescente? In "Lex Familiae. Revista Portuguesa de Direito da Família." Coimbra: Coimbra Editora. Ano 1, nº 1, 2004, p.70.
  31. Jane Fortin salienta: "The prospect of government intervention in family life through legislation has traditionally provoked strong hostility, especially if such legislation threatens to interfere with the parente-child relationship" (FORTIN, Jane. Op. cit., p. 08).
  32. Antonio E. Perez Luño assinala que a ampliação da eficácia dos direitos fundamentais à esfera privada torna necessária a atuação dos poderes públicos encaminhada a "promover las condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas" e a "remover los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud".(LUÑO, Antonio E. Perez. Los Derechos Fundamentales. 7ª ed. Madrid: Tecnos, 1998, p.23).
  33. Nessa senda, Peter Häberle assevera: "Si la libertad del individuo no fuese tutelada penalmente contra la amenaza derivada del ajeno abuso de la libertad, no habría más lugar para hablar del significado de la libertad «para la vida social en conjunto». Se impondría el «más fuerte»" (HÄBERLE, Peter. La Libertad Fundamental en el Estado Constitucional. Granada: Comares, 2003, p.43 e 44).
  34. "Art. 247. Permitir alguém que menor de 18 (dezoito) anos, sujeito a seu poder ou confiado à sua guarda ou vigilância: I - freqüente casa de jogo ou mal-afamada, ou conviva com pessoa viciosa ou de má vida; II - freqüente espetáculo capaz de pervertê-lo ou de ofender-lhe o pudor, ou participe de representação de igual natureza; III - resida ou trabalhe em casa de prostituição; IV - mendigue ou sirva a mendigo para excitar a comiseração pública: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa".
  35. "Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos. § 1º - A pena é de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos: I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge do agente ou maior de 60 (sessenta) anos" (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) (grifo nosso).
  36. "Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. Parágrafo único. Suspende-se igualmente do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a 2 (dois) anos de prisão"; "Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou mãe que: I- castigar imoderadamente o filho; II- deixar o filho em abandono; III- praticar atos contrários à moral ou aos bons costumes; IV- incidir, reiteradamente, nas faltas cometidas no artigo antecedente".
  37. Nesse ínterim, Marcos Alves da Silva assevera que a família moderna não é mais vista como uma instituição, tendo adquirido uma função instrumental que possibilita uma maior ingerência do Estado, "especialmente para a proteção dos membros mais vulneráveis, como é o caso da criança" (SILVA, Marcos Alves da. Op. cit.,p.135). Como afirma Rosa Cândido Martins, surgiu um novo modelo de família de caráter "democrático", em substituição ao modelo "autoritário" da completa submissão dos filhos aos pais. Para a mencionada autora, "esse novo modelo das relações entre pais e filhos revela o facto de a família ter vindo a perder algumas das funções que tradicionalmente desempenhava. Esta desfuncionalização da família não se traduziu, porém, no esvaziar de sentido da comunidade familiar, muito pelo contrário. Na verdade o processo de desfuncionalização foi acompanhado por outro processo, o da descoberta dos valores da intimidade e da afectividade" (MARTINS, Rosa Cândido. Op. cit., p.65).
  38. FONSECA, Carla. A protecção das crianças e jovens: factores de legitimação e objectivos. In "Direito Tutelar de Menores. O sistema de mudanças". Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p.10.
  39. A Constituição brasileira de 1988, no nosso entendimento, não reduziu o pólo passivo do habeas corpus aos agentes estatais. Nesse sentido, há copiosos exemplares da jurisprudência brasileira, a exemplo dos seguintes: STF, HC, Rel. Orosimbo Nonato, RT 231/664; TJSP, HC, Rel. Cunha Bueno, RT 577/329; TJPR, RHC, Rel. Heliantho Camargo, RT 489/389.
  40. MORAES, Alexandre. Op. cit., p.144.
  41. "Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para a solução do desacordo".
  42. A propósito, José Adriano de Souto Moura enfatiza que, nesses casos, o Estado intervém em nome da segurança do cidadão, mas, sobretudo, em nome do próprio interesse do menor (Moura, José Adriano de Souto. A tutela educativa: factores de legitimação e objectivos. In "Direito Tutelar de Menores. O sistema em mudança". Coimbra: Coimbra editora, 2002, p. 108.).
  43. Terminologia que propomos.
  44. Estabelece o Estatuto que a autorização judicial não será exigida quando: "a) tratar-se de comarca contígua à da residência da criança, se na mesma unidade da Federação, ou incluída na mesma região metropolitana; b) a criança estiver acompanhada: 1) de ascendente ou colateral maior, até o terceiro grau, comprovado documentalmente o parentesco; 2) de pessoa maior, expressamente autorizada pelo pai, mãe ou responsável" (art. 83, § 1º).
  45. "Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará: I - a entrada e permanência de criança ou adolescente, desacompanhado dos pais ou responsável, em: a) estádio, ginásio e campo desportivo; b) bailes ou promoções dançantes; c) boate ou congêneres; d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas; e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão; II - a participação de criança e adolescente em: a) espetáculos públicos e seus ensaios; b) certames de beleza. § 1° Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária levará em conta, dentre outros fatores: a) os princípios desta lei; b) as peculiaridades locais; c) a existência de instalações adequadas; d) o tipo de freqüência habitual ao local; e) a adequação do ambiente à eventual participação ou freqüência de crianças e adolescentes; f) a natureza do espetáculo. § 2° As medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral".
  46. CANOTILHO, J.J.Gomes. Op. cit.,p. 451.
  47. Em outro sentido, Alyrio Cavallieri defende: "Crianças e adolescente não podem permanecer nos logradouros públicos vedados pelas restrições legais. Estas, entretanto, não são amplas, como seria adequado. A interpretação autêntica, aquela advinda do autor da lei, é no sentido de que as restrições legais só incidem sobre os locais referidos no próprio Estatuto (…) arts. 75, 80, 83, 85 como aqueles sobre os quais caem as restrições legais. Neles não há nenhuma alusão à rua" (CAVALLIERI, Alyrio. Falhas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Apud Leal, Luciana de Oliveira. Liberdade da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.18).
  48. A esse respeito, Manoel Monteiro Guedes et allii afirmam: encontrando-se a criança ou jovem em situação de perigo, o Estado só poderá interferir na sua vida e na vida da sua família, na medida em que esta interferência seja estritamente necessária à finalidade de proteção e de promoção de direitos. Exige-se que para a consecução do fim almejado, não seja possível adotar outro meio a não ser a restrição à liberdade do menor. Além do mais, a exigibilidade tem que ser material (a intervenção tem de promover e não limitar, excessivamente, direitos fundamentais do menor), espacial (a intervenção deve circunscrever um âmbito de atuação o mais limitado possível), temporal (a intervenção deve ser limitada no tempo) e pessoal (a intervenção deve apenas dizer respeito ao menor in casu) (VALENTE, Manuel Monteiro Guedes et allii. Direito de menores/Derecho de menores. Estudo luso-hispânico sobre menores em perigo e delinqüência juvenil. Lisboa: Âncora, 2003, p. 69).
  49. Convém esclarecer que defendemos que, de regra, deve prevalecer, sobre qualquer avaliação estatal, a avaliação dos pais quanto à medida da liberdade de locomoção de seus filhos. Apenas em casos extremos, como o acima aludido, em que a atitude permissiva, ou proibitiva, do titular do poder familiar possa causar um dano à formação moral, física ou psíquica da criança ou do adolescente, é que a restrição imposta pelo Estado deve sobrepor à vontade parental.
  50. "Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: (…)VII - abrigo em entidade" (Estatuto da Criança e do Adolescente).
  51. No direito francês, é utilizada expressão equivalente a "risco social", que é o termo "l’enfance en danger", conceituado como a situação em que a saúde, a segurança, a moral e a educação da criança estão gravemente comprometidas em razão da delinqüência ou de maus-tratos (DEKEUWER-DÉFOSSEZ, Françoise. Les droits de l’enfant. Paris : Universitaires de France, 1991, p. 97).
  52. Tribunal Constitucional Espanhol. Sentença nº 94/2003, nº de registro: 20030610, julgada em 19 de maio de 2003.
  53. Carla Fonseca afirma: "É um direito dos cidadãos que o Estado intervenha sempre que a segurança, a saúde, a formação, o desenvolvimento físico, psíquico e emocional, o bem estar, de uma criança ou jovem esteja em perigo" (FONSECA, Carla. Op. cit., p.12).
  54. Nesse sentido, cf. TAVARES, José de Farias. Direito da infância e da juventude. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 90.
  55. Chacina ocorrida no dia 23 de julho de 1993, no Estado do Rio de Janeiro.
  56. Leal, Luciana de Oliveira. Liberdade da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.20.
  57. HÄBERLE, Peter. La libertad fundamental en el Estado Constitucional. Granada: Comares, 2003, p.107.
  58. Afirma Rui Epifânio que o Estado tem o dever de intervir corretivamente sempre que o adolescente revele personalidade hostil, ao ofender valores essenciais da comunidade e regras mínimas de convivência social, pois tornar-se necessário educá-lo para o direito (EPIFÂNIO, Rui. Direito de menores. Coimbra: Almedina, 2001, p. 91). No mesmo diapasão, Eliana Gersão sustenta: "Mais educativo do que ignorar as infracções praticadas, será sem dúvida chamar a atenção para as consequências danosas das mesmas e levar os respectivos autores a reparar – de acordo com a sua idade e situação concreta – as vítimas individuais e a sociedade" (GERSÃO, Eliana. Menores agentes de infracções criminais. Que intervenção? Apreciação crítica do sistema português. Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra: "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1988, p.50).
  59. Sem tais características do ato perpetrado, não há que se falar em responsabilização do adolescente, pois não há sentido que o menor seja punido onde o maior não é.
  60. Houve a substituição do princípio da imputabilidade pelo princípio da responsabilidade juvenil, bem como do tratamento penalógico pelo tratamento pedagógico das medidas sócio-educativas. Nesse aspecto, não há, no nosso entender, que se cogitar de uma imputabilidade penal especial, tal como defendem os seguidores da doutrina do Direito Penal Juvenil.
  61. "Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta lei forem ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - em razão de sua conduta". "Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante, termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; V - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - abrigo em entidade; VIII - colocação em família substituta. Parágrafo único. O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade"
  62. Segundo Paulo Afonso Garrido de Paula, a medida de proteção decorrente da prática de ato infracional (medida sócio-educativa imprópria) tem natureza de sanção. Já a medida de proteção decorrente de outra situação de risco em que se encontre a criança ou o adolescente tem natureza assistencial (PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3 ed. Coordenadores: Munir Cury et allii. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 566).
  63. SARAIVA, João Batista Costa. Direito penal juvenil. Adolescente e ato infracional. Garantias processuais e medidas sócio-educativas. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 22. No mesmo sentido, cf.: MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. Inimputabilidade penal. Adolescentes infratores: punir e (re)socializar. Recife: Nossa Livraria, 2004, p.107-110. Em sentido oposto, Rui Epifânio, reportando-se ao similar ordenamento jurídico lusitano, afirma que a intervenção estatal educativa não visa à punição, portanto só deve ocorrer quando subsistir a necessidade de correção da personalidade do adolescente, no momento da aplicação da medida não punitiva (EPIFÂNIO, Rui. Direito de menores. Coimbra: Almedina, 2001, p. 92). Ainda quanto à finalidade pedagógica das medidas menoristas, esclarece Romano Ricciotti que, no ordenamento jurídico italiano, "l’educazione dei minori è la funzione più elevata che l’ordinamento attribuisce alla famiglia, con la fondamentale statuizione che, «in caso di incapacità dei genitori, la legge provvede a che siano assolti i loro compiti. In questo quadro la pena assume, per i minorenni, la funzione rieducativa propria dell’emenda" (RICCIOTTI, Romano. La giustizia penale minorile. 2 ed.Padova: CEDAM, 2001, p.05).
  64. SARAIVA, João Batista Costa. Op. cit., p. 43-44.
  65. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê as seguintes figuras típicas: "Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente: Pena - detenção de seis meses a dois anos. Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais". "Art. 231. Deixar a autoridade policial responsável pela apreensão de criança ou adolescente de fazer imediata comunicação à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada: Pena - detenção de seis meses a dois anos".
  66. O ato infracional, embora típico, pode ter sido cometido sob a égide de uma das causas excludentes da antijuridicidade ou da culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa ou ausência da potencial consciência da ilicitude), hipóteses em que não haverá responsabilização juvenil. Do contrário, o adolescente seria punido onde o maior não seria, conforme já ressaltado.
  67. Como adverte José Carlos Vieira de Andrade, "havendo dúvidas, deve optar-se pela solução que, em termos reais, seja menos restritiva ou onerosa para a esfera de livre actuação dos indivíduos" (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit., p. 299).
  68. Para Antônio Carlos Gomes da Costa: "Três são os princípios que condicionam a aplicação da medida privativa de liberdade: o princípio da brevidade, enquanto limite cronológico; o princípio da excepcionalidade, enquanto limite lógico no processo decisório acerca de sua aplicação; e o princípio do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, enquanto limite ontológico, a ser considerado na decisão e na implementação da medida" (COSTA, Antônio Carlos Gomes. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3 ed. Coordenadores: Munir Cury et allii. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 401).
  69. Por exemplo: "Habeas Corpus. Menor. Tráfico de entorpecentes. Medida sócio-educativa. Internação. Incabimento. Art. 122 da Lei nº 8.069/90. Enumeração taxativa. Concessão da ordem. 1. A norma inserida no art.122 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, numerus clausus, as hipóteses de imposição da medida de internação, às quais faz-se estranho o ato infracional equiparado ao crime de tráfico de entorpecentes. 2.Ordem concedida, para imposição de medida protetiva diversa da internação"(Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 25253/ RJ. 6ª Turma. Rel. Min. Fontes de Alencar. Data do julgamento: 23.08.2004).
  70. Supremo Tribunal Federal. HC 25817 / SP. Habeas Corpus 2002/0166202-7. Min. Jorge Scartezzini. Data do julgamento: 18/08/2004. De igual modo se posicionou o Superior Tribunal de Justiça: "Penal. Habeas Corpus. Estatuto da Criança e do Adolescente. Prática de novo ato infracional equiparado aos delitos constantes nos arts. 12 da Lei nº 6.368/76 e da Lei nº 9.437/97. Inexistência de laudo definitivo de exame de entorpecentes. Supressão de instância. Medida de internação aplicada. Impossibilidade. Inexistência de reiteração de conduta infracional ou descumprimento de medida educativa anterior. (…) III- A reiteração no cometimento de infrações capaz de ensejar a incidência da medida sócio-educativa da internação, a teor do art. 122, II, do ECA, ocorre quando praticados, no mínimo, 3 (três) atos infracionais graves. Cometidas apenas 2 (duas) práticas infracionais, como o foi na hipótese dos autos, tem-se a reincidência, circunstância imprópria a viabilizar a aplicação da referida medida" (HC nº 24349/RJ. 5ª Turma. Rel. Min. Félix Fisher. Data do julgamento: 15.06.2004).
  71. MENDEZ, Emílio Garcia. Adolescente e responsabilidade penal: um debate latinoamericamano. Apud SARAIVA, João Batista Costa. Op. cit. p. 32.
  72. "ECA.Recurso ordináio em Habeas Corpus.Medida de internação.Falta de oitiva do menor infrator. I. A decisão que determina a regressão da medida de semiliberdade para a de internação , por acarretar restrição ao status libertatis, não pode prescindir da oitiva do menor (art.110 e 111, V, ECA)"(STJ. RHC 9916/SP. 5ª Turma. Rel. Min. Félix Fisher, DJ 24.09.2001).
  73. "Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo" (Estatuto da Criança e do Adolescente).
  74. "Quarenta e cinco dias é o prazo máximo e improrrogável para a conclusão do procedimento infracional ex vi do art. 183 do Estatuto quando o adolescente está internado provisoriamente" (HC 597002500, 7ª CCiv. do TJRS, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcelos Chaves. Data do julgamento : 19.02.1997).
  75. A apreensão em flagrante do adolescente deve ser norteada pelos mesmos direitos e garantias constitucionais orientadores da prisão em flagrante do maior, como o direito à identificação do responsável por sua apreensão, o direito de permanecer calado, o direito de saber os motivos pelos quais está sendo apreendido e o direito à assistência da família e de advogado. Nestes termos, dispõe o art. 5º, da Constituição Federal que: "LXIII- o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial".
  76. "Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública".
  77. AMARAL E SILVA, Antônio Fernando do. A mutação judicial. Apud SARAIVA, João Batista Costa. Op. cit., p. 51.
  78. MENDEZ, Emília Garcia. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 3 ed. Coordenadores: Munir Cury et allii. São Paulo: Malheiros, 2000, p.406.
  79. As atividades externas são monitoradas no regime de internação e exercidas sem vigilância no regime de semi-liberdade.
  80. A exemplo do entendimento esboçado no Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 12.187-RS (2001/0176510-1) Rel. Min. Félix Fischer, DJ 04.03.2002. A propósito, corrente doutrinária majoritária, com a qual concordamos, sustenta que, se sobrevier a aplicação de uma nova medida sócio-educativa privativa de liberdade pela prática de ato infracional anterior ao início do cumprimento de medida de internação, a execução dessa nova medida ficará subsumida ao limite de 3 anos. Todavia, se a aplicação da nova medida se deu por fato praticado durante o cumprimento da medida de internação ou após este cumprimento, será fixado novo prazo de 3 anos. Neste sentido, esclarece João Batista Costa Saraiva que "iniciado o cumprimento da internação, por fato anterior à internação, ainda que grave, não poderá ser o adolescente novamente internado após o término daquela primeira medida aplicada, e a aplicação de uma nova internação no curso da execução de medida similar imposta em procedimento diverso não importará no reinício da contagem do prazo a que se refere o art. 121, § 3º, da Lei 8.069/90" (SARAIVA, João Batista Costa. Op. cit , p. 114).
  81. A alteração da maioridade civil de 21 para 18 anos, trazida pelo Novo Código Civil brasileiro, não afeta o limite etário do Estatuto da Criança e do Adolescente para a liberação compulsória do interno, como já se posicionou o Superior Tribunal de Justiça: "Criminal. HC. ECA. Paciente que atingiu 18 anos cumprindo medida sócio-educativa.Consideração da data do ato infracional praticado. Novo Código Civil. Liberação compulsória. Inocorrência. Ausência de constrangimento ilegal. Recurso desprovido. (…) II. A liberação obrigatória do adolescente somente deverá ocorrer quando o mesmo completar 21 anos de idade, nos termos do art. 121, § 5º, do ECA, dispositivo que não foi alterado com a entrada em vigor do Novo Código Civil"(Superior Tribunal de Justiça. RHC 16105/RJ. 5ª Turma. Rel. Min. Gilson Dipp. Data do julgamento: 03.06.2004).
  82. A internação deve ser feita em estabelecimento próprio. Entretanto, o Estatuto permite que o adolescente possa ficar, excepcionalmente, por 5 dias, em estabelecimento prisional comum, desde que em cela especial, separado dos adultos. Neste aspecto, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: "Habeas Corpus- Adolescente - Ato infracional cometido mediante violência a pessoa - Homicídio qualificado por motivo torpe (CP, art. 121, § 2º, I) - Medida sócio-educativa de internação imposta a adolescente com quase 17 anos de idade (ECA, art. 122, I) - Possibilidade de a internação, em tal hipótese, estender-se até após a maioridade penal (ECA, art. 121, § 5º) - Ausência, na comarca, de estabelecimento próprio para adolescentes - Custódia provisória em cadeia pública, motivada por razões excepcionais de caráter material – Admissibilidade extraordinária de tal recolhimento, desde que efetuado em local completamente separado dos presos adultos - Laudo de avaliação psicossocial inteiramente desfavorável ao paciente - Pedido indeferido. (…) Situações de natureza excepcional, devidamente reconhecidas pela autoridade judiciária competente, podem justificar, sempre em caráter extraordinário, a internação de adolescentes em local diverso daquele a que refere o art. 123 do ECA, desde que esse recolhimento seja efetivado em instalações apropriadas e em seção isolada e distinta daquela reservada aos presos adultos, notadamente nas hipóteses em que a colocação do adolescente em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida seja desautorizada por avaliação psicológica que ateste a sua periculosidade social" (HC 81519 / MG - MINAS GERAIS. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento:  19/11/2002. Órgão Julgador:  Segunda Turma. Publicação:  DJ DATA-02-05-2003 PP-00048).