Notas sobre a jurisdição como função criativa do juiz


Porwilliammoura- Postado em 17 junho 2013

Autores: 
MESSIAS, João Lucas Souto Gil

Hoje não já dificuldade em afirmar que decisão judicial tem força normativa, inclusive extra individual, na forma de precedentes. Outra mudança importante é a constatação de que toda interpretação é uma atividade criativa.

1. Introdução

Durante anos, a doutrina, seguindo os pensamentos de CHIOVENDA, afirmou que o juiz, exercendo jurisdição, se limitava a declarar a vontade da lei. É o que chamam de teoria dualista ou declaratória do ordenamento jurídico[1]. Contrapondo esse pensamento, CARNELUTTI, partindo da ideia de que a jurisdição pressupõe a existência de lide, nos traz o pensamento de que o juiz, quando exerce jurisdição, cria a norma individual para o caso concreto, solucionando o conflito. Chamam esse posicionamento - de origem kelseniana - de teoria unitária do ordenamento jurídico. O problema é que essa criação carneluttiana era, na verdade, mera declaração por parte do aplicador do direito. “Quando (o juiz) torna a norma concreta, ou compõe a lide no sentido da doutrina de CARNELUTTI, faz apenas um processo de adequação da norma – já existente – ao caso concreto”[2]. É certo que a norma pode possuir diversas possibilidades de aplicação, cabendo ao aplicador, escolher a mais adequada. A sentença judicial, assim não seria a norma individual, mas apenas uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral (lei)[3]. De todo modo, essa “escolha” não passava de mera declaração de um dos sentidos da norma geral. Em outras palavras, “as concepções de que o juiz atua a vontade da lei e de que o juiz edita a norma do caso concreto beberam na mesma fonte, pois a segunda, ao afirmar que a sentença produz a norma individual, quer dizer apenas que o juiz, depois de raciocinar, concretiza a norma já existente, a qual, dessa forma, também é declarada”[4]. Em suma, é possível concluirmos que, ontologicamente, as duas teorias não se diferenciam, uma vez que a jurisdição deveria levar em conta a norma geral (lei) para solucionar o caso concreto[5].

 

Saltando no tempo e aterrissando no pós-segunda guerra mundial, observamos que a própria teoria geral do direito sofreu grandes alterações que repercutiram sobre o conceito de jurisdição. Dentre essas grandes mudanças, podemos citar, a título de exemplo, transformações na hermenêutica jurídica, onde a diferenciação entre norma e princípio (este, agora espécie daquela) é de extrema importância e transformações nas fontes do direito, que agora têm como expoente, ao lado da lei, a jurisprudência. Hoje, não encontramos dificuldade em afirmar que decisão judicial tem força normativa, inclusive extra individual, na forma de precedentes. Outra mudança importante é a constatação de que quem interpreta, cria (agora sim, criatividade em seu melhor significado), pois toda interpretação é uma atividade criativa, em diferentes níveis.

Diante dessas e de outras tantas importantes mudanças na teoria geral do direito, podemos reproduzir (talvez) o melhor conceito atual de jurisdição como sendo “a função atribuída a terceiro imparcial de realizar o Direito de modo imperativo e criativo, reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas concretamente deduzidas, em decisão insuscetível de controle externo e com aptidão para tornar-se imutável”[6].

O objeto deste modesto trabalho é tratar, resumidamente, acerca da jurisdição como atividade criativa do juiz.


2. A criatividade judicial

A jurisdição é função criativa. No ponto, as ideias de Montesquieu, que afirmou em sua obra O espírito das leis ser o juiz inanimado, que jamais poderia moderar a força ou o rigor da lei, já foram superadas. É que, quando se decide, cria-se a norma jurídica do caso concreto, bem como se cria, comumente, a própria regra abstrata que deve regular o caso concreto[7]. É preciso repisar a ideia: quando se interpreta, se cria. É essa a função basilar dos órgãos judiciários. Não se trata apenas de escolher uma das alternativas possíveis, como já afirmado em outros tempos, mas sim de criar algo diferente. Nesse sentido, a decisão judicial contém a norma individual (ou norma jurídica individualizada), que, diferentemente das demais normas, tem aptidão de se tornar imutável pela coisa julgada material. PONTES DE MIRANDA[8] explica que o princípio de que o juiz está sujeito à lei é algo como um guia, um roteiro, que nem sempre serve ao viajante. É nesse ponto que entra a função criativa do juiz, pois se a criação jurisdicional fosse nula, os hard cases (casos em que ainda não há precedente sobre o tema, devendo o magistrado refletir, pela primeira vez sobre o assunto, já diante do caso concreto que se apresenta) não poderiam ser resolvidos. Inclusive, é justamente por que o judiciário tem o dever de solucionar todo e qualquer caso que se apresente[9], incluindo os "difíceis", que ele tem o poder da criatividade. Em suma: a criatividade jurisdicional serve, acima de tudo, para evitar o non liquet[10].

Se de um lado, o juiz tem, de fato, criatividade, esse poder não vem sem algum ônus. Como já se disse, grandes poderes trazem grandes responsabilidades[11].  O juiz, quando cria a norma individual, deve fundamentá-la. Esse dever, como se sabe, está até mesmo expresso na Constituição Federal (art. 93, IX). É que "a legitimidade da decisão jurisdicional depende não apenas de estar o juiz convencido, mas também do juiz justificar a racionalidade da sua decisão com base no caso concreto, nas provas produzidas e na convicção que formou sobre as situações de fato e de direito"[12]. Assim, o juiz, após formar seu próprio convencimento, deve exercer sua função criativa de maneira fundamentada, a fim de persuadir as partes e o público no sentido de que exerceu bem seu poder de criação. Não é a toa que qualquer decisão judicial esdrúxula é atacável pelas vias recursais.

Mesmo que alguns acreditem nisso, Justiça não é religião. Não se baseia ela em dogmas estabelecidos pelo órgão jurisdicional. Este, ao contrário, estabelece (meros) entendimentos, que devem ser justificados e argumentados de forma racional e ponderada. Não obstante, como entendimentos que são, as decisões do juiz, por mais bem feitas que sejam, podem ser tranquilamente superadas com o passar do tempo. É o que se dá, por exemplo, nos casos de overruling e overriding dos precedentes judiciais.

Pois bem.

Dito isso, destaque-se que a criatividade judicial tem, na verdade, duas dimensões: quando decide, o juiz cria a norma jurídica individualizada do caso (contida no dispositivo da decisão) como também cria a norma jurídica geral do caso (contida na fundamentação da decisão). É preciso diferenciá-las. A norma jurídica individual não é apenas a aplicação da norma abstrata ao caso concreto. É necessário que haja uma postura mais ativa do juiz, que deve interpretar (criar) a norma a partir de uma perspectiva constitucional, observando as particularidades do caso concreto[13]. Mas o magistrado não cria apenas a norma individual no caso concreto. Como já se disse, quando exerce jurisdição, o órgão julgador também cria uma norma jurídica geral do caso. É exatamente por isso que podemos usar uma decisão proferida num processo em outro, distinto, porém semelhante. Em suma, o juiz deve produzir um discurso que atinge duas plateias: as partes e a comunidade. Quando atingida a comunidade, temos a decisão como precedente (ratio decidendi). Trata-se de norma jurídica geral construída a partir de raciocínio dedutivo que pode servir como diretriz para demandas semelhantes.[14]

Não é por outra razão que a força normativa das decisões judiciais vem ganhando prestígio na atualidade. Exemplos desse movimento não faltam: súmula vinculante, repercussão geral do recurso extraordinário, possibilidade de julgamento sumário de causas repetitivas, reclamação constitucional, e, mais modernamente, a objetivação dos recursos extraordinários[15]. Mesmo não sendo tese aceita pelo Supremo Tribunal Federal atualmente, há quem defenda, inclusive, a vinculação aos fundamentos da decisão quando o STF declara a (in)constitucionalidade de lei em abstrato, como já ocorre com a parte dispositiva nesse tipo de decisão[16].

Até mesmo o próprio legislador encampa a ideia da criatividade judicial ao elaborar, mais costumeiramente, leis contendo cláusulas gerais ou conceitos juridicamente indeterminados. É dizer: o legislador, consciente de que não pode prever todas as situações possíveis da realidade, passa a bola ao Judiciário, que, de maneira cooperativa, e sempre atento aos princípios da boa-fé e da proporcionalidade (devido processo substancial), deverá criar a norma que, de fato, regulará as relações jurídicas da sociedade. Vê-se, portanto, que, ordeiramente, há certa tendência no judiciário em se adotar, como método interpretativo preferido, o método hermenêutico-concretizador em detrimento do método tópico-problemático: cada vez mais o Judiciário parte do problema para a norma e não da norma para o problema.

"Percebeu-se com o correr dos anos, que seria impossível e por que não dizer inviável a perfeita regulação normativa para a complexa vida social, razão pela qual inexiste uma regra jurídica adequada para cada circunstância concreta.

Hoje, já é assente o entendimento de que a função jurisdicional é uma atividade genuinamente criadora, pois, a concepção da sentença ou da decisão como sinônimo de silogismo caiu em descrédito, em virtude da defesa da ideia de que a obra do órgão jurisdicional traz sempre, em maior ou em menor medida, um aspecto novo, o qual, não estava contido na norma geral"[17].

In fine, anote-se que a criatividade jurisdicional, apesar de imprescindível, não é ilimitada. Ela tem dois grandes limites: de um lado, se limita pelo direito positivo propriamente dito (leis, decretos, tratados, Constituição, etc.); de outro, pelo próprio caso concreto. O juiz, em sua atividade criativa, jamais pode decidir além do que foi pedido (decisões extra ou ultra petita). Em suma: por mais bela que seja, a criação jurisdicional não pode fugir dos limites dessa "moldura" que a delimita.


· REFERÊNCIAS:

- ANDRADE, Sabrina Dourado França. O princípio da proporcionalidade e o poder de criatividade judicial. Disponível em http://atualidadesdodireito.com.br/sabrinadourado/2011/10/25/o-principio.... Acesso em 12.05.2013.

- DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil, vol. I. Salvador: Jus Podivm, 2013.

- DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil, vol. II. Salvador: Jus Podivm, 2013.

- DIDIER JR., Fredie.  Decisão em controle concentrado de constitucionalidade. Reclamação por desrespeito ao dispositivo e ao precedente. Disponível em http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-168/. Acesso em 25.04.2013.

- KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado – Editor, 1976.

- LEITE, Anderson Estevam de Souza. A objetivação do recurso extraordinário. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/13625/a-objetivacao-do-recurso-extraordinario-na-jurisdicao-contemporanea. Acesso em 17.03.2013.

- LIMA, George Marmelstein. O Asno de Buridano, o Non Liquet e as Katchangas. Disponível em http://direitosfundamentais.net/2009/01/07/o-asno-de-buridano-o-non-liqu.... Acesso em 21.03.2013.

- MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no estado constitucional. Disponível em http://bdjur.stj.jus.br/xmlui/bitstream/handle/2011/2174/A_Jurisdi%C3%A7.... Acesso em 17.03.2013.

- MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado da ação rescisória. Campinas: Bookseller, 1998.


Notas

[1] MARINONI, Luiz Guilherme. A jurisdição no estado constitucional. Disponível em http://bdjur.stj.jus.br/xmlui/bitstream/handle/2011/2174/A_Jurisdi%C3%A7.... Acesso em 17.03.2013.

[2] Idem.

[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Coimbra: Armênio Amado – Editor, 1976, p. 467.

[4] MARINONI, Luiz Guilherme. Idem.

[5] LEITE, Anderson Estevam de Souza. A objetivação do recurso extraordinário. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/13625/a-objetivacao-do-recurso-extraordinario-na-jurisdicao-contemporanea. Acesso em 17.03.2013.

[6] DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil, vol. I. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 105.

[7] Idem, p. 108.

[8] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado da ação rescisória. Campinas: Bookseller, 1998, p. 274-275.

[9] Art 5º, XXXV, CF. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

[10] "Non liquet é uma expressão advinda do Direito Romano que se aplicava nos casos em que o juiz não encontrava nítida resposta jurídica para fazer o julgamento, e por isso, deixava de julgar. Do latim "non liquere" pode significar não claro" (LIMA, George Marmelstein. O Asno de Buridano, o Non Liquet e as Katchangas. Disponível em http://direitosfundamentais.net/2009/01/07/o-asno-de-buridano-o-non-liqu.... Acesso em  21.03.2013.)

[11] Essa frase ficou eternizada pelo americano Stan Lee, autor de famosas revistas em quadrinhos, lidas em todo o mundo.

[12] MARINONI, Luiz Guilherme. Idem.

[13]DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil, vol. I. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 110.

[14] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil, vol. II. Salvador: Jus Podivm, 2013, p. 428.

[15] LEITE, Anderson Estevam de Souza. A objetivação do recurso extraordinário. Disponível em http://jus.com.br/revista/texto/13625/a-objetivacao-do-recurso-extraordinario-na-jurisdicao-contemporanea. Acesso em 17.03.2013.

[16] DIDIER JR., Fredie.  Decisão em controle concentrado de constitucionalidade. Reclamação por desrespeito ao dispositivo e ao precedente. Disponível em http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-168/. Acesso em 25.04.2013.

[17] ANDRADE, Sabrina Dourado França. O princípio da proporcionalidade e o poder de criatividade judicial. Disponível em http://atualidadesdodireito.com.br/sabrinadourado/2011/10/25/o-principio.... Acesso em 12.05.2013.





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