O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue


Pormarina.cordeiro- Postado em 09 abril 2012

Autores: 
MARINI, Bruno

Sumário:1 – Introdução: Análise não preconceituosa dos fatos. 2 – Os riscos inerentes às transfusões de sangue. 3 - Tratamentos alternativos às transfusões 4 – Análise Constitucional. 4.1 – Liberdade de Consciência e Crença 4.2 – Direito à Privacidade 4.3 – Direito à vida 5 – Estudos dos Princípios Bioéticos no caso em análise. 5.1 - Princípios Bioéticos da "Autonomia" e do "Consentimento Informado" 5.2 - Princípios Bioéticos da "Beneficência" e da "Justiça" 6 – Menores de idade. 7 – Conclusão.


1-) Introdução: Análise não preconceituosa dos fatos

A postura das Testemunhas de Jeová de recusa às transfusões de sangue muitas vezes chama à atenção da mídia e causa acalorados debates. Infelizmente, não raro às Testemunhas de Jeová são mal interpretadas e acabam sendo tachadas de "fanáticas" e "suicidas".

No entanto, a lógica e o bom censo ensinam que antes de se fazer um julgamento deve-se analisar serenamente os fatos sem preconceitos ou ódio.

Muitos profissionais da Medicina e do Direito têm demonstrado este sábio espírito. Embora não seja do conhecimento do público leigo, o fato é que nas últimas décadas a medicina tem evoluído a ponto de propiciar alternativas seguras e eficazes às transfusões de sangue. Do mesmo modo, às Testemunhas de Jeová organizaram uma rede internacional de "Comissões de Ligação com Hospitais" (COLIH), a qual atualmente trabalha com cerca de 100.000 médicos ao redor do globo em programas de desenvolvimento de tratamentos e técnicas cirúrgicas sem sangue (que serão abordadas no decorrer deste trabalho).

Ressalta-se que este artigo abordará questões jurídicas e bioéticas. Em nenhum momento serão debatidas crenças religiosas.


2) – Os riscos inerentes às Transfusões de Sangue

A transfusão de sangue é vista pelo público leigo como o mais eficaz, senão único, tratamento para repor a perda do plasma, bem como outros componentes sangüíneos. De fato, tal visão é compreensível, pois durante a II Guerra Mundial tal prática se popularizou e tornou-se até mesmo símbolo de nacionalismo e solidariedade. Enquanto às nações se digladiavam nos campos de batalha, seus governos estimulavam às doações de sangue para serem transfundidos em seus soldados.

No entanto, renomados médicos vêm questionando este caráter ultra-salvador atribuído às transfusões de sangue. Um estudo revelou que:

A utilização excessiva dos componentes sangüíneos é atribuída às idéias errôneas sobre seu valor, à falta de conhecimento das situações em que seu emprego não é justificável e à apreciação equivocada da incidência e da magnitude de suas eventuais complicações. [1]

Uma pesquisa realizada nos E.U.A. nos revela:

... dos residentes entrevistados, 61% indicaram que, pelo menos uma vez por mês, prescreviam transfusões que consideravam desnecessárias pelo mero fato de que um médico com mais experiência sugeria que fosse feito.

Um terço informou que isso ocorria duas ou mais vezes por mês. [2]

A Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia informou que:

... a utilização indiscriminada de sangue e derivados continua sendo muito grande no Brasil, apesar dos enormes riscos inerentes a estas transfusões... foram revisados os prontuários [de 75] pacientes para se determinar a indicação de cada transfusão. Do total, apenas 25% tinha uma indicação precisa... Estes resultados mostram a necessidade de educação continuada em hemoterapia, a fim de se evitarem as transfusões desnecessárias. [3]

Uma publicação médica explanou extensivamente os riscos envolvidos nas transfusões:

As transfusões são perigosas. Podem causar reações do tipo hemolítico, leucoaglutinante e alérgico... O perigo principal é a infecção induzida pela transfusão... o maior perigo é a transmissão da hepatite não-A, não-B. Calcula-se que de 5% a 15% dos doadores voluntários são portadores deste vírus. Os testes laboratoriais prévios à doação, para detectar os anticorpos contra o"core" da hepatite B, permitem detectar entre 30% e 40% dos portadores do vírus da hepatite não-A, não-B... A vasta maioria dos casos de hepatite pós-transfusional são subclínicos, visto que a enfermidade evolui durante vários anos. Uma alta porcentagem de receptores infectados contraem cirrose.... [4]

Algumas pesquisas mostram que pelo menos cerca de 5% do total de pessoas que recebem transfusões de sangue nos E.U.A contraem hepatite (o que representa uma margem de 175.000 por ano), e que cerca de 4.000 morrem! As perspectivas não são muito animadoras, pois outros vírus ainda não detectáveis nos testes de bolsas de sangue podem causar a hepatite. Isso sem mencionar diversas outras doenças que são contraídas como a sífilis, malária, vírus da herpe, a toxoplasmose, tripanossomíase, tifo, leishmaniose e a temível AIDS.

O mais preocupante é que os testes realizados nos bancos de sangue não geram a segurança que muitos pacientes imaginam ter. Um dos diretores da Cruz Vermelha Americana, ao abordar os autos custos que envolvem tais testes, declarou: "Simplesmente não podemos continuar a adicionar teste após teste para cada agente infeccioso que poderia ser disseminado". [5] O Dr. Neil Blumberg, diretor da Unidade de Medicina Transfusional e do Banco de Sangue da Universidade de Rochester, de Nova York, E.U.A., numa estimativa conservadora, afirmou que o número de mortos em seu país devido a tais infecções provenientes das transfusões gira em torno dos 10.000 a 50.000 por ano! [6]

De fato, as transfusões não têm o caráter salvador que o público imagina. Ademais, apresenta um desconfortável grau de periculosidade e morbidade. Devido a estes riscos, a Presidential Commission on the Human Immunodefidiency Vírus Epidemic (E.U.A.), recomendou que antes de realizar uma transfusão de sangue, o médico deve obter o consentimento de seu paciente, e que o procedimento deve incluir uma explicação dos riscos implicados na transfusão de sangue e de seus componentes, entre eles a possibilidade de contrair o HIV, bem como informações sobre terapias alternativas à transfusão de sangue homólogo.... (Negrito acrescentado). [7]

No entanto, surge uma questão: há tratamentos que podem servir de alternativas a transfusão de sangue? Analisaremos esta pergunta no próximo tópico.


3 -) Tratamentos Alternativos às transfusões.

Nas últimas quatro décadas vem aumentando o interesse em boa parte da classe médica nas alternativas às transfusões. No dia 16 de maio de 1962, o Dr. Denton Cooley realizou a primeira cirurgia de coração aberto, sem sangue, em uma Testemunha de Jeová. No ano de 1977 o Dr. Cooley publicou um relatório de 542 cirurgias cardiovasculares em Testemunhas de Jeová sem realizar transfusão de sangue, no qual ele declarou que os riscos eram baixos e aceitáveis. [8]

No ano de 1997 foi lançado um apêndice no Canadá abordando várias medicações, tratamentos e técnicas cirúrgicas sem sangue, muitas das quais são simples e com um custo acessível. [9]

Uma delas é a Eritropoetina [Humana] Recombinante, a qual é uma forma biossintética de um hormônio humano natural que estimula a medula óssea a produzir hemácias. Este fármaco pode ser administrado antes, durante ou depois do tratamento ou cirurgia, bem como para pacientes com câncer que recebem quimioterapia ou para tratar pacientes anêmicos portadores de insuficiência renal crônica. Aplica-se também ferro e hematínicos para dar suporte a produção de hemácias estimulada pela eritropoetina.

Do mesmo modo, para estimular a produção de plaquetas (as quais são essenciais para o processo de coagulação sangüínea), utiliza-se a Interleucina-11 Recombinante, a qual é uma forma, geneticamente produzida, de um hormônio humano.O Ácido Aminocapróico e Tranexâmico são muito úteis para estimular a coagulação inibindo ou cessando a fibrinólise (decomposição dos coágulos sangüíneos), sendo eficazes nos casos de hemorragia, inclusive na cirurgia cardíaca, a oncologia, a obstetrícia, a ginecologia, o transplante, a cirurgia ortopédica, o trauma e os distúrbios hematológicos. Os Adesivos Teciduais (como por exemplo, à cola de fibrina), são usados para diminuir a perda de sangue. São utilizados para selar superfícies das feridas cirúrgicas de modo a reduzir o sangramento pós-operatório.

Em casos de emergência, no qual se perde muito plasma (parte líquida do sangue), utilizam-se os Expansores do volume do Plasma, tais como os Cristalóides (incluindo a solução salina, lactato de Ringer e a solução salina hipertônica), os quais são fluidos intravenosos compostos de água, com vários sais e açucares, que têm a função de manter o volume circulatório do sangue no corpo. Do mesmo modo, os Colóides são fluidos compostos de água misturada com partículas bem diminutas de proteínas, os quais mantêm os níveis de proteína sangüínea, estabilizando o equilíbrio dos fluidos e o volume circulatório do sangue no corpo. Entre estes incluem o pentastarch, hetastarch (hidroxietila de amido) e o dextran.

Os instrumentos cirúrgicos Hemostáticos são utilizados tanto em cirurgias convencionais a céu aberto como na cirurgia minimamente invasiva. [10] Quando utilizados com habilidade reduzem o sangramento e facilitam o manejo dos tecidos, e permitem que haja maior visibilidade, graças a um campo cirúrgico mais seco, o que pode abreviar o tempo cirúrgico bem como reduzir a exposição da equipe médica ao sangue.

Entre os referidos instrumentos podemos destacar o eletrocautério, lasers, coagulador com raio de argônio, dentre outros.

O coagulador com raio de argônio causa um trauma mínimo aos tecidos, coagula os vasos grandes (2 a 3 mm de diâmetro) e reduz o risco de hemorragia pós-operatória. O fluxo de argônio, por ser um gás incolor, inodoro e inativo, facilita a coagulação controlada por uma área mais ampla, acentua a visibilidade no campo cirúrgico, diminui o manejo de tecidos bem como a exposição do médico ao sangue através de rupturas das luvas ou furo de agulhas.

Nos casos de pacientes que dão entrada no hospital com uma variedade de ferimentos, utilizam-se os equipamentos de Recuperação intra-operatória de sangue. Assim, recupera-se parte do sangue derramado (o qual é lavado ou filtrado pelo equipamento) e depois ele é reinfundido no paciente. O sangue pode ser desviado do paciente para um aparelho de hemodiálise ou para uma bomba coração-pulmão. O sangue flui para fora através de um tubo até o órgão artificial que o bombeia e filtra (ou oxigena) e daí volta para o sistema circulatório do paciente. Há também instrumentos para a Recuperação pós-operatória do sangue (tubo de drenagem, no qual o sangue derramado é processado e devolvido ao paciente).

A Hemodiluição, quando é usado um circuito fechado e não se faz coleta de sangue pré – operatório é aceitável para muitas Testemunhas de Jeová.

De fato, há uma enorme lista de tratamentos e métodos isentos de sangue (os quais podem beneficiar não somente às Testemunhas de Jeová, mas a todo paciente independente de opção religiosa). Os que mencionamos são apenas alguns exemplos. Talvez o grande interesse que estes medicamentos vêm despertando em vários setores da classe médica está relacionado a evitar os riscos decorrentes das transfusões de sangue, conforme analisado no tópico anterior [11].


4) – Análise Constitucional

A Constituição Federal ocupa o ápice da pirâmide normativa. De fato, a análise jurídica de um problema deve, por questão de lógica, começar pelos preceitos fundamentais do sistema jurídico. Deste modo, iniciamos com a abordagem dos direitos fundamentais à "liberdade de consciência e crença" (Art.5º, VI, C.F.), á "privacidade" (art.5º,X, C.F.), e á "vida" (art.5º, "caput", C.F.).

4.1) – "Liberdade de Consciência e de Crença" (art.5º, VI, C.F.).

"Penso, logo existo!" Esta famosa frase de Decartes nos revela algo maravilhoso e assombroso a respeito da natureza humana – a saber - a capacidade de nos relacionarmos com o que está ao nosso redor e formarmos valores que, pouco a pouco constroem nossa consciência, a qual moldará nossa personalidade. Assim sendo, é de fundamental importância que a sociedade crie mecanismos para garantir a liberdade de consciência a fim de que o indivíduo possa manifestar seus pensamentos, sentimentos e convicções.

Por outro lado, uma sociedade que não preza a liberdade de consciência dos seus cidadãos, estará sufocando e negando (ou pelo menos subestimando) a própria "personalidade humana". A maior prova disso é que os regimes totalitários (tais como o nazismo, o fascismo e o comunismo stalinista), são encarados como verdadeiras aberrações ao jusnaturalismo, pois estrangulavam a pessoa humana num tenebroso processo de "robotização", transformando cada indivíduo numa "máquina" de propriedade estatal.

Felizmente, a nossa Constituição tutela a "liberdade de consciência e de crença" como um "direito e garantia fundamental" (art.5º, VI, C.F.). É valioso ressaltar que essa proteção é decorrente do mais sublime fundamento da nossa sociedade que é a "dignidade da pessoa humana" (art.1º, III, C.F.). De fato, ao analisarmos o tripé "liberdade de consciência" (a qual projeta a "liberdade de crença"), "direito a privacidade" (art.5º, X. C.F.) e "dignidade da pessoa humana" (art.1º, III C.F.), chegaremos à conclusão de que o mesmo está inexoravelmente ligado a substância humana, e que romper este tripé por suprimir ou desrespeitar tais imperativos da conduta humana seria tão criminoso (e até mais doloroso) que provocar a própria "morte física" do indivíduo.

Abordando de maneira específica a liberdade religiosa, o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, observou algo interessante sobre o tema em análise:

Tenha se presente que a liberdade religiosa é uma das formas por que se explicita a liberdade... Mais do que isto, é ela para todos os que aceitam um direito superior ao positivo, um direito natural. É o mais alto dentre todos os direitos naturais. Realmente, é ele a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais seres animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade. [12]

Mas qual é o alcance da "liberdade religiosa?" Será que a "liberdade de culto" se limita literalmente às missas e reuniões realizadas dentro das igrejas?

Celso Ribeiro Bastos, ao abordar os aspectos que integram a "liberdade de culto", elucida o ponto em questão:

Como já visto, a religião não pode... contentar-se com sua dimensão espiritual, isto é, enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai, contudo, via de regra, procurar uma externação... a que se denomina ‘liberdade de culto’. [13]

O referido jurista continua respondendo:

Poder-se-ia inserir, dentro da liberdade de culto, todas as práticas que envolvessem qualquer opção religiosa do indivíduo. Assim, as restrições decorrentes da invocação religiosa estariam, igualmente, albergadas sob este título, sendo certo que, como dito, não há verdadeira liberdade de religião se não se reconhece o direito de livremente orientar-se de acordo com as posições religiosas estabelecidas... Ora, o culto não se exerce apenas em locais pré-determinados, como em igrejas, templos, etc. A orientação religiosa há de ser seguida pelo indivíduo em todos os momentos de sua vida, independentemente do local, horário ou situação. De outra forma, não haveria nem liberdade de crença, nem liberdade no exercício dos cultos religiosos, mas apenas ‘proteção aos locais de culto e as suas liturgias’.(Grifo nosso). [14]

Desta forma, a liberdade de religião não consiste apenas em o indivíduo estar autorizado a crer em algo, antes inclui o direito de exercer os preceitos de sua fé. Dentre estes se destacam os cultos religiosos e suas liturgias (como vem expresso no inciso em análise). Obviamente, isto também abrange a garantia de expressar sua fé nos demais aspectos da vida, como na literatura, na melodia ou na escolha de tratamentos médicos. Esta interpretação segue a lógica do sistema.

Portanto, a lógica do sistema é no sentido de que o "Direito fundamental e constitucional à Liberdade de Consciência e Crença", bem com a proteção aos cultos e liturgias, projetam, no caso em análise, a satisfação da necessidade do cidadão poder adentrar em um hospital cônscio de que seus direitos e o respeito ao seu "ser" não ficarão do lado de fora.

4.2) – Direito à Privacidade (art.5º, X, C.F.)

O Direito fundamental à Privacidade decorre da tutela constitucional no art.5º, X: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". [15]

A privacidade é uma necessidade básica do ser humano. Esta decorre do nosso desejo nato de levarmos uma vida pacífica, com um mínimo de sossego, tranqüilidade, e não sermos incomodados em nossos relacionamentos mais íntimos, nem termos expostos fatos da nossa vida privada ao público de maneira desautorizada. Desejamos também conduzir nossas vidas com o mínimo de interferência, seja por parte de uma outra pessoa ou do próprio Estado.

Historicamente, tal direito foi por demais vilipendiado. Por exemplo, nos arquivos secretos da GESTAPO [16] ou da STASI [17] na Alemanha, encontra-se a descrição de milhões de indivíduos considerados inimigos do Estado. Consta que uma das táticas de pressão psicológica da STASI consistia em seus membros entrarem secretamente na casa da vítima e mudar os móveis do local. Isso era feito com uma certa freqüência e a vítima, a qual muitas vezes nem imaginava que estava sendo vigiada, ficava perplexa ao cada dia ver alguns móveis em posições diferentes em sua casa sem que aparentemente alguém estivesse no local. Isso levou alguns até mesmo ao estado de loucura.

Vivemos em uma época em que a privacidade como nunca está ameaçada, sobretudo devido ao avanço tecnológico e a propagação do sensacionalismo em uma boa parte da mídia.

Diante de tudo isso, não é à toa que o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho descreve o direito fundamental à privacidade como projeção do próprio fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. O ilustre jurista define:

O direito à privacidade é dos que reclamam a não-interferência, a não-ingerência, a não-intromissão, seja do Estado, seja de todo o grupo social, seja de qualquer outro indivíduo. Nisto, ele coincide com as liberdades públicas clássicas que impõem um não-fazer, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular que não pode ser violada por quem quer que seja.

Reflete ela a dignidade humana cuja primeira e principal expressão é a liberdade.

Dela decorre que cada ser humano tem o direito de conduzir a própria vida como entender – fora dos olhos da curiosidade e da indiscrição alheias – desde que não fira o direito de outrem [18]

Em outras palavras, de uma forma sintética, direito á privacidade consiste em a sociedade permitir que a pessoa faça escolhas e viva não da maneira como os outros querem, mas conforme a sua consciência requer, desde que não interfira na privacidade dos outros.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, fazendo referência a Suprema Corte Americana, cita como incluída na privacidade as decisões relativas ao próprio corpo, se destacando a escolha de tratamentos médicos. [19]

O jurista Celso Ribeiro Basto, também raciocinou:

Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos. [20]

Deste modo, a transfusão de sangue forçada (ainda mais quando feita de modo precipitado, atendendo a um pedido do hospital sem analisar os argumentos do paciente e a real situação fática, como ocorrem nas liminares), ferem a honra, a intimidade e a privacidade do indivíduo, o que é uma afronta à tutela do art.5º, X, da Constituição Federal.

4.3) – Direito à vida (art.5º, caput, C.F.).

Alexandre de Moraes observa que o enquadramento jurídico do direito à vida inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, e que inclusive o zigoto (posteriormente embrião e feto) é encarado como uma carga genética própria, ou em outras palavras, uma vida autônoma. Deste modo, o nascituro pode até mesmo ser parte num processo (geralmente representado pela mãe) e tem expectativa de direito, o qual se consagra com o nascimento (respiração). [21]

O direito à vida está previsto no "caput" do art.5º da Constituição. Este consiste não só no direito de não ser morto pelo Estado ou algum particular, mas também á uma vida digna, ou seja, também é uma projeção do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, C.F.).

Assim, numa visão mais ampla, a Carta Magna não está apenas garantindo o funcionamento biológico do indivíduo, mas o seu bem estar físico, emocional-psicológico e espiritual. Não se pode reduzir o ser humano a uma abordagem puramente fisiológica, pois o mesmo, ao contrário das demais espécies existentes no planeta, é capaz de abstrair e transcender em busca do seu Originador.

O direito á vida é visto como uma condição para o exercício dos demais direitos constitucionais. Por outro lado, a mesma, desprovida de liberdade e dignidade, torna-se pesarosa. Atento a isso, o legislador vai além de prover a mera existência biológica do indivíduo, objetivando também resguardar sua intimidade, privacidade, consciência, crença, segurança etc. No caso em análise, todos esses bens jurídicos devem ser levado em consideração, pois, por mais que um médico bem intencionado realize uma transfusão de sangue forçada acreditando que é o melhor para salvar a vida de seu paciente, na realidade, ele poderá estar ferindo os sentimentos mais íntimos do cidadão, estigmatizando-o permanentemente com a infelicidade! O ideal é obter a cura física do ser humano sem ferir-lhe psicologicamente (e aí entram os tratamentos alternativos às transfusões já abordados).

No próximo tópico, analisaremos alguns princípios bioéticos que lançará ainda mais luz sobre o caso em estudo.

5) – Estudo dos Princípios Bioéticos no caso em análise

Analisaremos os quatro princípios angulares da bioética: autonomia, consentimento informado, beneficência e justiça.

5.1) Princípios Bioéticos da "Autonomia" e do "Consentimento Informado"

O princípio da Autonomia (também chamado de "Autodeterminação"), é aquele que visa reconhecer o direito da pessoa humana de decidir acerca da utilização de determinado procedimento ou tratamento médico, livre de interferência ou pressão externa, levando em conta seus valores mais íntimos. Affonso Renato Meira, professor titular de medicina da USP e presidente da Associação Brasileira de Ética Médica (Abradem), em seu artigo intitulado "O direito de dizer não", publicado no jornal "O Estado de São Paulo", define o referido princípio do seguinte modo:

A autonomia se refere a um conjunto de diversas noções, incluindo autogovernança, direito á liberdade, privacidade, escolha individual, liberdade para seguir seus desejos e decidir sobre seu comportamento. Enfim, ser sua própria pessoa. [22]

No mesmo sentido, o Doutor Marco Segre, também professor titular de medicina da USP, em um Parecer sobre o assunto em análise, define:

Autonomia, de acordo com sua etimologia grega, significa capacidade de governar a si mesmo... é a capacidade de auto-governo, uma qualidade inerente aos seres racionais que lhes permite escolher e atuar de forma pensada, partindo de uma apreciação pessoal das futuras possibilidades, avaliadas em função de seus próprios sistemas de valores... é uma qualidade que emana da capacidade dos seres humanos de pensar, sentir e emitir juízos sobre o que considera bom. (Negrito acrescentado). [23]

De fato, das definições expostas nota-se a preocupação em respeitar os valores do paciente nas intervenções médicas, e nada mais justo, pois quem terá de suportar os efeitos de tal intervenção (seja ele físico ou psicológico) será o mesmo. Alguns argumentam que ao realizar uma transfusão de sangue forçada o médico estaria atuando no interesse da sociedade, pois a preservação da vida seria um bem jurídico superior. Porém, na realidade o referido "chavão" serviria de fachada para abusos e discriminação religioso-ideológica de um setor da sociedade. Aliás, tal premissa envolvendo o "interesse público" é um tanto temeroso, ainda mais quando se leva em consideração a ignorância (no sentido de falta de conhecimento) da nossa população em relação à postura das Testemunhas de Jeová, as quais ainda são retratadas e encaradas por muitos setores (incluindo os meios jornalísticos e de comunicação em massa), como fanáticas e suicidas. Assim sendo, alegar que se deve realizar a transfusão porque o "interesse coletivo" assim o quer é uma solução simplista e fantasiosa.

Desta forma, Shultz afirma que decisões sobre tratamento médico envolvem tanto incerteza quanto conflitos de julgamento e de valores, nem os peritos nem a sociedade podem julgar o que é melhor para um indivíduo, melhor do que ele mesmo. [24] (Negrito Acrescentado).

Ademais, tal visão choca-se com a evolução principiológica efetuada pela bioética. De fato, se o que deve prevalecer é a vontade coletiva, o princípio da Autonomia perde a sua razão de ser, ou seja, ele deixa de existir, pois a vontade social vai aos poucos substituindo o direito de decisão do paciente, e cairíamos no absurdo de uma pessoa ser atendida de acordo com os valores de outrem (muitas vezes totalmente estranhos aos seus). Além do mais, não podemos esquecer que é um tanto confuso e obscuro decifrar a "vontade social" em questões tão controvertidas como as que envolvem tratamento médico! O que pode ser correto para um não o será para outro. Interessante é o raciocínio do Dr. Volnei Garrafa, pós-doutorado em Bioética pela Universidade de Roma, professor titular e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília:

Casos, como o de uma Testemunha de Jeová que não deseja que lhe seja administrado sangue sob qualquer hipótese, devem ser considerados a partir do princípio bioético da autonomia do paciente sobre seu corpo e sua integridade moral, e não a partir da fórmula de que a ‘preservação da vida é bem jurídico maior do que a liberdade da própria pessoa’. É aí, exatamente, onde reside a modernidade e o espírito democrático da bioética – livre de paternalismos que se confundem com a beneficência... Para a bioética, o que é ‘bem’ para uma comunidade moral não necessariamente significa ‘bem’ para outra, já que suas moralidades podem ser diversas. [25]

O posicionamento de que a transfusão forçada deve ser realizada em nome da "superioridade" do bem jurídico "vida material" esbarra em algo interessante que Louis Brandeis, em sua famosa divergência no caso Olmstead v. United States, fez já no ano de 1928:

Os legisladores de nossa Constituição incumbiram-se de assegurar condições favoráveis para a busca da felicidade. Eles reconheceram o significado da natureza espiritual do homem, de seus sentimentos e de seu intelecto. Sabiam que somente uma parte da dor, do prazer, e das satisfações na vida são encontradas nas coisas materiais. Procuraram proteger os americanos em suas crenças, pensamentos, emoções e sensações [26] (Negrito Acrescentado).

Zelita da Silva Souza [27] e Maria Isabel Dias Miorim de Moraes [28] na introdução do artigo "A Ética Médica e o Respeito às Crenças Religiosas", raciocinam:

O respeito à autonomia do paciente estende-se aos seus valores religiosos. Tais valores não podem ser desconsiderados ou minimizados por outrem, em particular pelos profissionais de saúde, a despeito dos melhores e mais sinceros interesses destes. Ademais, os valores religiosos podem ser uma força positiva para o conforto e a recuperação do paciente se ele estiver seguro de que os mesmos serão respeitados. [29] (Negrito Acrescentado).

Assim sendo, a cooperação entre médicos e paciente, tendo como alicerce à Autonomia, com certeza contribuirá para uma relação de confiança e conforto, pois ao invés de estarem competindo, ambos estarão buscando um mesmo objetivo, o que poderá ter reflexos até mesmo na recuperação do enfermo, ou pelo menos mitigará seu sofrimento.

Da "Autonomia" decorre inexoravelmente um outro princípio bioético denominado "Consentimento Informado" (também conhecido como "Consentimento Conscientizado"). Segundo o referido princípio, antes de uma intervenção o médico deve esclarecer ao paciente os benefícios e riscos da terapia (bem como alternativas), deixando com que o paciente expresse seu consentimento para o tratamento que considera ser o mais adequado aos seus interesses. Assim, notamos que é muito importante o médico ter uma mentalidade democrática e estar disposto a explicar ao seu paciente de maneira clara e didática os fatores envolvidos. Ao passo que na maioria dos casos os pacientes optarão pelo tratamento aconselhado pelo médico, em outros casos pode ocorrer de escolher a terapia que não é a preferida do profissional, e é neste momento que entra o "Consentimento Informado", ou seja, o médico não utilizará um tratamento que não lhe foi consentido.

O "Consentimento Informado" e a "Autonomia" são realidades tão próximas que ambos são tratados juntos sob o tópico "Derecho a la Autodeterminación", na "Declaración de la Associación Médica Mundial sobre los Derechos Del Paciente", a qual foi adotada na 34ºAssembléia Médica Mundial em 1981 na cidade de Lisboa (Portugal) e emendada na 47º Assembléia Geral no ano de 1995, na cidade de Bali (Indonésia). O referido tópico determina:

Derecho a la Autodeterminación:

A) El paciente tiene derecho a la autodeterminación y a tomar decisiones libremente en relación a su persona. El médico informará al paciente las consecuencias de su decisión.

B) El paciente adulto mentalmente competente tiene derecho a dar o negar su consentimiento para cualquier examen, diagnóstico o terapia. El paciente tiene derecho a la información necesaria para tomar sus decisiones. El paciente debe entender claramente cuál es el propósito de todo examen o tratamiento y cuáles son las consecuencias de no dar su consentimiento.

No entanto, muitos poderiam questionar se o médico precisa obter o consentimento do paciente no caso que estamos analisando (quando ele acredita que a transfusão de sangue é necessária). Analisando esta questão, três juristas americanos raciocinaram:

A própria base da doutrina [do consentimento informado] é o direito de todos de recusar tratamento médico ou mesmo a cura de tal envolver o que para ele são conseqüências ou riscos intoleráveis, não importa quão distorcido ou pervertido seu senso de valores possa parecer aos olhos da classe médica, ou mesmo da comunidade, contanto que qualquer distorção não chegue a ser o que a lei interpreta como incapacidade. A liberdade individual aqui é somente garantida se é dado às pessoas o direito de fazer escolhas que geralmente seriam consideradas como tolas. Assim, a Testemunha de Jeová ou o Cientista Cristão deveria ter o direito legal de recusar – em bases religiosas, o que pode parecer um erro para a maioria de nós – a transfusão de sangue, que é necessária para salvar a vida. [30]

Assim sendo, torna-se claro que o paciente tem direito de recusar um tratamento médico mesmo em tais circunstâncias, pois se assim não fosse, o princípio do "Consentimento Informado" perderia a sua razão de ser, ou seja, deixaria de existir. Vale aqui o mesmo raciocínio que fizemos para o princípio da Autonomia. O interessante é que não é só o caso das Testemunhas de Jeová que chama à atenção para a aplicação do referido princípio. Raciocine por exemplo no caso do enfermo que recusa submeter-se a quimioterapia (a qual na visão do médico seria a única opção de tentar reverter o seu quadro clínico ou pelo menos estender seu tempo de vida), sem dúvida, forçá-lo ao tratamento causaria mais sofrimento do que benefícios.

A Corte de Apelação de Ontário (Canadá), decidiu:

Os princípios de autodeterminação e de autonomia individuais nos obrigam a concluir que a paciente pode rejeitar transfusões de sangue, mesmo que disso lhe possam advir conseqüências prejudiciais, e mesmo que tal decisão seja considerada, em geral, como tola. A decisão dela, neste caso, teria validez, mesmo depois de ela ficar inconsciente, e a conduta do médico não seria autorizada. Na minha opinião, transfundir uma Testemunha de Jeová, em face de suas instruções específicas em sentido contrário, seria violar o direito dela de controlar seu próprio corpo, e mostraria desrespeito pelos valores religiosos segundo os quais ela decidiu viver. [31]

Do mesmo modo, o TJRS acordou que a negativa de receber transfusão de sangue é direito do paciente, dotado de capacidade volitiva e intelectiva plena, merecendo respeito, ante as disposições constitucionais referidas. [32]

5.2) Princípios Bioéticos da "Beneficência" e da "Justiça"

O princípio da Beneficência é aquele que inspira o médico a direcionar sua atividade e intervenção sempre em benefício do seu paciente. Está expresso no Juramento de Hipócrates (médico grego): Usarei o tratamento para ajudar os doentes, de acordo com minha habilidade e julgamento e nunca o utilizarei para prejudicá-los.

No entanto, surge uma questão interessante: ao analisarmos o juramento hipocrático parece que este disponibiliza ao médico o direito de utilizar-se dos meios que ele acha ser o mais benéfico independente da concepção do paciente, pois diz que usarei o tratamento... de acordo com minha habilidade e julgamento. Assim sendo, será que há um conflito entre o Princípio da Beneficência e o Princípio da Autonomia (bem como do Consentimento Informado)?

Inicialmente, não podemos esquecer que a visão tradicional hipocrática sobre a "Beneficência" deve ser encarada num contexto histórico diferente do nosso. De fato, vivemos numa era em que cada vez mais os direitos do paciente e do cidadão (e aqui se inclui à autonomia) vêm ganhando mais destaque na bioética e na ciência jurídica. Ao contrário do que ocorria na Idade Média, o médico não é mais encarado como uma autoridade (de caráter quase que mítica) inquestionável e autoritária. Aliás, tal posição era até mesmo constrangedora não só para o paciente que ficava a mercê de critérios e preferências alheias, mas até mesmo para o médico, pois toda a responsabilidade recaia sobre seus ombros!

De fato, agora o médico pode compartilhar com seu paciente (se este o desejar) a responsabilidade e a análise do melhor tratamento não só do ponto de vista físico, mas levando em consideração o "homem inteiro", ou seja, sua estrutura axiológica. E no caso em análise, há boas técnicas e tratamentos isentos de sangue que vem sendo desenvolvidos graças a essa atitude compreensiva e altruísta de vários profissionais da medicina.

Os professores Muñoz e Almeida delineiam com clareza e lógica a relação que há entre beneficência e autonomia:

Respeitar a autonomia das pessoas competentes pressupõe beneficência: quando as pessoas são competentes para escolher, ainda que a escolha não seja a que faríamos, respeitar suas escolhas é um ato beneficente. Isto permite que seus desejos sejam respeitados em circunstâncias que os afetem diretamente. [33] (Negrito Acrescentado).

Assim sendo, longe de haver um conflito, na realidade o Princípio da Beneficência reforça o respeito à "Autonomia".

O professor Affonso Renato Meira, em um artigo para "O Estado de São Paulo", raciocinou:

Dentro de sociedades autocratas, com o domínio de uma camada sobre outras, o médico, com seu etnocentrismo profissional e com seu desejo de fazer o bem, determinava o que devia e o que não devia ser feito quando se tratava de saúde... Com as tendências renovadoras da segunda metade do século 20 mostrando o caminho da democracia às sociedades autocratas e, realmente, com o aparecimento do pensamento bioético, o entendimento do papel do médico e dos demais profissionais de saúde se viu modificado... É necessário saber o que é bom, qual o bem que o paciente considera para si. Se... não aceita a transfusão de sangue, esta não poderia ser realizada. Do seu ponto de vista, este seria o maior bem para o paciente". [34]

Diante do exposto, numa visão moderna do Princípio da Beneficência, notamos que o médico deve "fazer o bem" sob a óptica do paciente, o qual é o destinatário da intervenção médica.

O professor Marco Segre chama à atenção de que o termo "saúde", para a Organização Mundial de Saúde, não se refere apenas à ausência de doença, mas também o bem estar do indivíduo no aspecto mental e social, incluindo a não violação de seus valores éticos – culturais. [35]

O Código de Ética Médica, no seu artigo 46, diz ser vedado ao médico efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente, ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida. Na realidade, a parte final deste artigo é um resquício da visão hipocrática da Beneficência e entra em choque com os princípios bioéticos da Autonomia e do Consentimento Informado.

Assim, ao abordar a parte final do artigo 46 do Código de Ética Médica, o professor Marcos Segre, deixou claro:

... Não deve ser interpretada como recomendação ao médico para que intervenha sobre o paciente, contrariamente a sua vontade, conforme muitos querem crer... Poderá o médico intervir por sua própria vontade, quando ele não veja outro meio de salvaguardar a vida de seu paciente, não se podendo, entretanto ver nessa ‘exceção’ uma recomendação ou obrigação a ser seguida. (Negrito Acrescentado). [36]

No mesmo sentido, o Jornal do Cremesp diz que a interpretação deste artigo é, entretanto, no sentido de poder o médico agir nessas ocasiões, contrariamente a vontade do paciente, e não de dever (obrigatoriedade). [37] (Negrito Acrescentado).

É importante ressaltar que o Código de Ética Médica não pode se sobrepor às liberdades públicas e clássicas garantidas aos cidadãos na Constituição.

Portanto, diante desta evolução principiológica, concluímos que médicos e pacientes devem num espírito de cooperação buscar soluções e alternativas que "façam o bem", ou seja, não viole a consciência da pessoa humana sob quaisquer circunstâncias. Do que adiantaria lograr um resultado físico mediante o aniquilamento dos valores mais íntimos do indivíduo? Não seria mais razoável buscar meios que curam a enfermidade física do paciente sem ferir-lhe psicologicamente?

O "Princípio da Justiça" consiste em promover, dento do possível, um igualitário acesso dos cidadãos aos bens da vida.

Desta forma, justiça envolve respeitar as diferenças existentes na comunidade, e ao invés de discriminá-las ou segregá-las, deve-se buscar meios de compreendê-las e satisfazê-las. Este dever envolve as Testemunhas de Jeová, a classe médica e o Estado.

As Testemunhas de Jeová fazem a sua parte por buscar alternativas e trazê-las à atenção da classe médica.

A classe médica faz a sua parte por interessar-se por estas alternativas, estudando-as e ampliando o seu horizonte no exercício da medicina. Aliás, o Código de Ética Médica, no seu art.5º, diz que o médico deve aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do seu paciente.

O Estado, por sua vez, faz a sua parte por ao invés de impor uma terapia ao cidadão, possibilitar o acesso às alternativas zelando pela saúde pública.

Diante do exposto, concluímos que propiciar um sistema de saúde justo significa possibilitar a satisfação das necessidades dos cidadãos respeitando suas diferenças (as quais envolvem suas crenças e ideologias).

6) – Menores de Idade

A "Convenção das Nações Unidas Sobre os Direitos da Criança", adotada pela Assembléia Geral no dia 20 de novembro de 1989, no seu artigo 12, estabelece:

Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança. [38]

De fato, a "teoria do menor amadurecido" (amplamente utilizada no sistema anglo-americano), cada vez mais ganhará importância para a resolução do caso em estudo. O Dr. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, faz uma interessante observação:

Deve-se... levar em conta, em caso concreto, se o jovem já está em condições de emitir vontade consciente, caso em que deverá ser ouvido. E a fortiori se for apenas relativamente incapaz. Essa vontade consciente deverá ser respeitada. Isso porque os conceitos de maioridade e de menoridade hoje se acham turvos, dado o absurdo de o direito pátrio reconhecer como maior para fins políticos o jovem de dezesseis anos, para fins penais o de dezoito, e somente aos vinte e um para outros fins. [39]

Com o advento do Código Civil/02, a maioridade foi antecipada para os dezoito anos. Assim, isto só vem a reforçar o que Ferreira Filho questionou. Do mesmo modo, a faculdade de direito da Universidade de Cambridge (Inglaterra), no artigo "Detentores Múltiplos das Chaves – Tutela e Consentimento Para Tratamento Médico", analisando um caso em concreto, diz que "se a criança dotada de suficiente maturidade há de ter o direito de consentir com o desejado processo de tratamento, é difícil compreender por que se deveria negar a ele ou ela o direito de recusar alguma medicação indesejada". [40]

Muito esclarecedor um julgado da Suprema Corte de Maine que reconheceu o direito de um jovem de 17 anos em recusar a manutenção artificial de sua vida quando entrasse em estado vegetativo:

É um fato estabelecido que em todas as facetas da vida, o ‘menor adquire a capacidade de consentir em diferentes classes de invasões e de conduta nas diversas etapas de seu desenvolvimento. Existe capacidade quando o menor compartilha a habilidade da pessoa mediana para entender e avaliar os riscos e benefícios’... Reconhecemos isto na lei de nosso próprio Estado ao estabelecer diferentes idades nas quais pessoas alcançam a capacidade para consentir na adoção, conduzir um veículo motorizado, comprar cigarros, deixar a escola, votar, casar-se e adquirir bebidas alcoólicas e tomá-las. [41]

O Tribunal de Recursos de New Brunswick (Canadá), reconheceu o direito de um jovem de 15 anos recusar transfusão de sangue:

Em declarações juramentadas anexadas à petição, tanto a Drª Scully como o Dr. Dolan dispuseram que [J.] estava cônscio de seu quadro clínico... ambos acharam que [J.] era suficientemente amadurecido para entender as conseqüências de sua recusa de receber transfusões...

No Canadá, o Direito Comum reconhece a doutrina do menor amadurecido, a saber, de um que é capaz de entender a natureza e as conseqüências do tratamento proposto. Assim sendo, o menor, se amadurecido, tem deveras a capacidade jurídica de dar consentimento para seu próprio tratamento médico. [42]

Em um outro caso, envolvendo um jovem de 15 anos, o ministro Wells, da Suprema Corte de Terra Nova (Canadá), declarou:

Estou convicto de que ele crê de todo o coração que receber transfusão seria errado e que se for forçado a receber sangue na circunstância a que nos referimos seria uma invasão de seu corpo, uma invasão de sua privacidade e uma invasão de todo o seu ser, a ponto de causar um severo impacto sobre a sua força e habilidade de enfrentar essa terrível provação que ele tem de passar, qualquer que seja o desfecho. [43]

Em um outro caso no Canadá foi respeitada a vontade de uma jovem consciente de 12 anos [44]. A Drª Mary Francês Scully, falando de um paciente seu de 15 anos que recusara uma transfusão, chamou à atenção um detalhe importante que muitas vezes é esquecido por alguns médicos e juristas:

Ao tratar doenças graves, tais como a leucemia mielóide aguda, meu enfoque consiste no que é mencionado nos círculos médicos como um enfoque holístico. Estudos médicos indicam claramente que uma combinação de fatores são importantes para se combater uma doença grave... Os estudos indicam deveras que, sem esta confiança, apoio e atitude mental positiva, os protocolos de tratamento tendem a ser muito menos eficazes...

É minha opinião... que não respeitar a sua vontade seria pôr em sério risco as chances dele de recuperação. De fato, administrar uma transfusão de hemácias para repor as células destruídas pela quimioterapia contra a vontade [do paciente] causaria, na minha opinião, mais dano do que bem.(Grifo nosso). [45]

De fato, enquanto a imposição de tratamentos médicos pode surtir um efeito negativo, por outro lado, ao passo que forem aplicados tratamentos alternativos que respeitem a consciência e as crenças do indivíduo, isto com certeza influirá de forma positiva na recuperação do paciente.

Por fim, não podemos esquecer que o E.C.A. nos artigos 15 c.c 16, II e III, diz que a criança tem direito à liberdade de opinião, expressão, crença e culto religioso. Assim sendo, não há dúvida de que em matéria de tratamento médico, deve-se, sempre que possível, ouvir o menor na medida de sua maturidade.


7. Conclusão

O crescente uso de alternativas médicas às transfusões de sangue vem demonstrando que atender ao caso das Testemunhas de Jeová não é algo fora da realidade. De fato, a compreensão por parte da equipe médica, ao invés do combate, é o caminho para a solução. Ao passo que esses procedimentos se tornarem o padrão, esse tipo de questão deixará de ocorrer por completo.

Antes de impor uma transfusão ao paciente, os médicos e os tribunais devem serenamente analisar se vale à pena passar por cima de sua consciência (a qual desfruta de proteção constitucional), o que aniquilaria sua Autonomia como paciente e ser humano (Princípios bioéticos da Autonomia e do Consentimento Informado). Deve-se levar em consideração os riscos das transfusões e o impacto emocional advindo do desrespeito à intimidade e a dignidade do cidadão.

Do mesmo modo, vimos que respeitar a opinião e a decisão do paciente (ainda que sua visão seja diferente da do médico) é um ato beneficente (Princípio bioético da Beneficência). Todo profissional tem que trabalhar com a realidade de que nem sempre seus clientes concordarão com o seu modo de pensar. Este é um fato natural da vida. Por isso, é de fundamental importância que o médico tenha uma mente democrática, não levando para o lado pessoal, e ser versátil em aprimorar seus conhecimentos.

Assim sendo, esperamos que essas considerações sejam úteis para desfazer alguns preconceitos e tornar a relação médico-paciente mais cooperativa, tendo como alicerce a liberdade e a dignidade da pessoa humana.


Bibliografia

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"Como pode o Sangue salvar a sua vida?", Cesário Lange, SP, Associação Torre de Vigia, 1990.

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"Situação ético – Jurídica da Testemunha de Jeová e do médico e/ou instituição hospitalar que lhe presta atenções de saúde, face à recusa do paciente – religioso na aceitação de transfusões de sangue", Marco Segre, São Paulo, SP, 4 de julho de 1991.

"Transfusões de Sangue forçadas em Testemunhas de Jeová", Associação Torre de Vigia, 9 de Setembro de 1992.

Vídeo "Estratégias Alternativas à Transfusão: Simples, Seguras e Eficazes", Cesário Lange, SP, Associação Torre de Vigia.


Notas

1 "Porque respeitar a escolha de tratamento médico sem sangue", Dr.Philip Brumley, José Cláudio Del Claro e Miguel Grimaldi Cabral de Andrade, Julho de 1999, Cesário Lange, SP, pg.07.

2 Idem. pg.06

3 Ibidem.

4 Idem, pg.09.

5 "Como pode o Sangue salvar a sua vida?", pg.10, 1990, Cesário Lange, SP, Associação Torre de Vigia.

6 Vídeo "Estratégias Alternativas à Transfusão: Simples, Seguras e Eficazes", Cesário Lange, SP, Associação Torre de Vigia.

7 "Porque respeitar a escolha de tratamento médico sem sangue", Dr.Philip Brumley, José Cláudio Del Claro e Miguel Grimaldi Cabral de Andrade, Julho de 1999, pg.10.

8 Vídeo "Estratégias Alternativas à Transfusão: Simples, Seguras e Eficazes", Associação Torre de Vigia, Cesário Lange, SP.

9 Trata-se do Building a Blood System for the 21 st Century.

10 "Cirurgia minimamente invasiva" são aquelas realizadas com instrumentos especializados, feitos para serem inseridos no paciente através de pequenas incisões ou pelas aberturas naturais do corpo. Isto evita a necessidade de grandes incisões, minimizando o sangramento e o trauma da cirurgia para o corpo. Instrumentos do tipo telescópico, miniaturizados, permitem que os cirurgiões observem seus passos num monitor de TV (o que melhora a visualização do campo operatório permitindo maior grau de precisão e exatidão), em vez de ficarem olhando diretamente para a parte do corpo tratada.

Em geral, por se eliminarem as grandes incisões e extensivas dissecações, reduz a perda de sangue, a dor, o tempo de recuperação e as cicatrizes cirúrgicas, abreviando a hospitalização e diminuindo custos.

Várias operações, até mesmo complexas cirurgias cardíacas, estão sendo realizadas com tecnologia minimamente invasiva.

11 É interessante que os gastos com as várias etapas da bolsa de sangue (coleta, armazenamento e principalmente os testes), tornam-na dispendiosa. Há pesquisas que mostram que uma bolsa de sangue nos E.U.A podem gerar gastos para a saúde pública de até $1.000,00 (mil dólares). Os tratamentos alternativos podem gerar uma maior economia além de evitar os riscos já mencionados da transfusão de sangue.

12 Questões constitucionais e legais referentes a tratamento médico sem transfusão de sangue, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, p. 20, Parecer Jurídico, São Paulo, SP, 24 de outubro de 1994.

13 Direito de recusa de pacientes, de seus familiares, ou dependentes, às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas, p.13, Celso Ribeiro Bastos, Parecer Jurídico, São Paulo, SP, 23 de novembro de 2000.

14 Idem, p. 14.

15 Constituição Federal de 1988.

16 A GESTAPO era a polícia secreta do regime nazista (1933-1945).

17 A STASI era a polícia política do regime soviético e atuou com muita força na Alemanha Oriental durante a ocupação comunista (1945-1989).

18 Questões constitucionais e legais referentes a tratamento médico sem transfusão de sangue, p. 06, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Parecer Jurídico, São Paulo, SP, 24 de outubro de 1994.

19 Idem, p. 06-07.

20 Direito de recusa de pacientes, de seus familiares, ou dependentes, às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas, p.19, Celso Ribeiro Bastos, Parecer Jurídico, São Paulo, SP, 23 de novembro de 2000.

21 Direito Constitucional,p.62, Alexandre de Moraes, 10° edição, Ed. Atlas, São Paulo, SP, 2001.

22 "O direito de dizer não", "O Estado de São Paulo", 11 de Outubro de 1994.

23 Parecer "Situação ético – Jurídica da Testemunha de Jeová e do médico e/ou instituição hospitalar que lhe presta atenções de saúde, face à recusa do paciente – religioso na aceitação de transfusões de sangue", São Paulo, SP, 4 de julho de 1991.

24 "Do consentimento Conscientizado à Escolha do Paciente: Um Novo Interesse Protegido", Shultz, 95 Yale L.J. 219, 292 (1985) em "Transfusões de Sangue forçadas em Testemunhas de Jeová", Associação Torre de Vigia, 9 de Setembro de 1992.

25 "Bioética e ética profissional: esclarecendo a questão", Conselho Federal de Medicina, Setembro de 1998.

26 Olmstead v. United States, 277 U.S. 438 (1928), em "Transfusão de sangue forçada em Testemunhas de Jeová", pg 03.

27 Professora Adjunta de Hematologia, aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, hematologista voluntária do Serviço de Quimioterapia e Ambulatório de Hematologia do Hospital Universitário da UFSC e membro do Serviço de Tratamento Médico sem Transfusão de Sangue do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro – CREMERJ.

28 Professora de Oncologia da Universidade de Nova Iguaçu – RJ, Conselheira do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro – CREMERJ e coordenadora do Grupo de Tratamento Médico sem Transfusão de Sangue do CREMERJ.

29 "A Ética Médica e o Respeito às Crenças Religiosas", Revista de Bioética do Conselho Federal de Medicina, Vol.6, nº 1, 1998., pg89-93.

30 F.Harper, F. James Jr. & O. Gray, "The Law of Torts", pg.562 (1986). Citado em "Transfusão de sangue forçada em Testemunhas de Jeová", Associação Torre de Vigia, Cesário Lange, SP.

31 (Ontário Court of Appeal), "Malette v. Schulman 72 O. R. 2d 417, 1989".

32 (TJRS), "Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre v. Goulart", Processo nº 01193306956, Porto Alegre, RS, 23 de Agosto de 1994.

33 Muñoz, D.R. e Almeida, M. Noções de Responsabilidade em Bioética. In Segre & Cohen, Bioética, Editora da Universidade de São Paulo, 1995, p.95.

34 "O direito de dizer não", Affonso Renato Meira, "O Estado de São Paulo", 11 de outubro de 1994.

35 Parecer "Situação Ético – Jurídica da Testemunha de Jeová e do médico e/ou Instituição Hospitalar que lhe presta atenções de saúde, face à recusa do paciente religioso na aceitação de transfusão de sangue", 4 de julho de 1991, São Paulo, SP.

36 Idem.

37 Ibidem.

38Porque respeitar a escolha de tratamento médico, Dr. Philip Brumley, Dr. José Garibaldi e Dr. Miguel Grimaldi Cabral de Andrade, p.25, Julho de 1999, Cesário Lange, SP.

39 Questões constitucionais e legais referentes a tratamento médico sem transfusão de sangue, p.29, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Parecer Jurídico, São Paulo, SP, 24 de outubro de 1994.

40 Cuidados com a família..., p 31, Cesário Lange, SP, Associação Torre de Vigia.

41 Por que respeitar a escolha de tratamento médico sem sangue..., p. 21.

42 Cuidados com a família...p. 31.

43 Idem, p. 35.

44Ibidem...p. 34.

45 Idem, p. 34.