O caso Vincent Humbert


Pormarina.cordeiro- Postado em 02 abril 2012

Autores: 
FERREIRA JÚNIOR, Celso Rodrigues

Uma mãe francesa, após anos cuidando de seu filho, que havia ficado tetraplégico, mudo e cego após um acidente automobilístico, provocou-lhe a morte, podendo vir a ser condenada por tal conduta.

Capítulo I

Introdução

Recentemente o mundo foi surpreendido pela notícia de uma mãe francesa que, após anos cuidando de seu filho, que havia ficado tetraplégico, mudo e cego após um acidente automobilístico, praticou a eutanásia, provocando-lhe, por conseqüência, a morte.

Marie Humbert, mãe de Vincent Humbert, será julgada pelo Poder Judiciário da França, cuja legislação proíbe a prática da eutanásia, podendo vir a ser condenada por tal conduta.

O caso em apreço, que a partir de agora chamaremos de Caso Vincent Humbert, além de reacender o debate em torno da eutanásia, coloca em choque, de acordo com a nossa opinião, os direitos fundamentais à vida e à dignidade, desafiando o jurista na busca da solução mais justa.

É certo, de acordo com nosso convencimento, que o direito positivo, da forma concebida pela escola kelseniana, não será capaz de oferecer uma solução adequada à questão, impondo-se a utilização do processo de ponderação.

O presente trabalho busca analisar, ainda que de forma sucinta, as implicações do Caso Vincent Humbert no modo em que concebemos o direito.

Para tal, após uma rápida apresentação do caso, teceremos algumas considerações acerca da escola positivista no Capítulo III, passando, posteriormente, à análise de como a ponderação de interesses responderia ao caso em apreço, no Capítulo IV.


Capítulo II

O Caso Vincent Humbert

Vítima de um acidente automobilístico em 24.09.2000, Vincent Humbert, à época contando 19 anos de idade, ficou tetraplégico, mudo e cego, conseguindo movimentar apenas um de seus polegares, através do qual se comunicava com a mãe.

Seu caso tornou-se célebre, reacendendo o debate em torno da eutanásia na França quando, em dezembro de 2002, o jovem Vincent escreveu uma carta ao então presidente francês, Jacques Chirac, na qual, pleiteando o direito de morrer, pedia pela descriminalização da eutanásia.

No último dia 25.09.2003, o jovem havia lançado o livro intitulado "Eu lhe Peço o Direito de Morrer", escrito com o auxílio de um jornalista, no qual afirmava: "Eu nunca verei este livro porque eu morri em 24 de setembro de 2000 (...). Desde aquele dia, eu não vivo. Me fazem viver. Sou mantido vivo. Para quem, para que, eu não sei. Tudo o que eu sei é que sou um morto-vivo, que nunca desejei esta falsa morte". [1]

A mãe de Vincent, Marie Humbert, em entrevista dias antes da prática da eutanásia, afirmara que a morte do jovem estaria programada, tendo sido planejada durante alguns meses, e que a ida da família para a Suíça, país que autoriza o procedimento, teria sido cogitada, mas rejeitada por Vincent, que se recusava a sair de seu país para ver reconhecido seu direito de morrer.

Diante do desejo de seu filho de se ver livre do sofrimento provocado por sua condição, Marie Humbert, no mesmo dia do lançamento do livro de Vincent, teria misturado aos alimentos ministrados a Vincent através de uma sonda uma mistura de barbitúricos, que teriam provocado o coma e morte do jovem um dia depois, em 26.09.2003. [2]

Após passar algumas horas presa, a mãe de Vincent foi posta em liberdade, encontrando-se sob cuidados psiquiátricos enquanto aguarda uma posição do Ministério Público francês.

O Poder Judiciário francês teve, recentemente, a oportunidade de se manifestar sobre a eutanásia no julgamento de Christine Malevre, enfermeira que, entre os anos de 1997 e 1998, provocou a morte de 06 pacientes terminais.

Em primeira instância, Christine havia sido condenada a uma pena de 10 anos de prisão; pena esta que foi agravada para 12 anos pelo Tribunal do Crime de Paris. [3]

Embora a prática da eutanásia seja ilegal na França, a opinião pública, no Caso Vincent Humbert, tem se posicionado favoravelmente a atitude de Maria Humbert, acreditando ter a mesma agido corretamente ao provocar a morte de seu filho.

Pesquisas de opinião pública revelam que, após o ocorrido, mais de 80 % dos franceses entendem necessária uma mudança na lei contra a eutanásia voluntária. [4]

Merecem destaque, ainda, as declarações do médico Frederic Chaussoy, diretor do setor de terapia intensiva do hospital em que Vincent encontrava-se internado, no sentido de que a equipe médica não teria, diante das condições clínicas, evolução e desejos expressos do paciente, feito todos os esforços no sentido de salvar a vida do jovem [5], ressaltando que a decisão de desligar o respirador artificial que mantinha o paciente vivo teria sido a mais coerente com o desejo de respeitar a sua vontade. [6]


Capítulo III

A Abordagem Positivista

Conforme mencionado anteriormente, a legislação francesa proíbe a prática da eutanásia [7], o que nos conduz à necessidade de analisar a questão sob a ótica do paradigma da escola positivista, cujo maior representante foi Hans Kelsen.

H. Kelsen buscou, através de sua teoria, elevar o direito ao grau de ciência, buscando estabelecê-lo, entretanto, de forma pura, isto é, alheio a qualquer influência social, política ou, principalmente, moral, aproximando o direito, assim, das chamadas ciências duras. [8]

Importa ressaltar que, ao contrário do que se possa conceber, a doutrina positivista não prega o completo distanciamento entre o direito e a moral. Na verdade, o próprio H. Kelsen afirma que, a exemplo do direito, também a moral se consubstancia em um conjunto de normas de caráter social, destinando-se, portanto, à regulação da conduta humana. [9]

Ocorre que, conforme ressaltado, a idéia de uma teoria pura do direito, na concepção kelseniana, implica um ordenamento jurídico que se abstenha de sofrer qualquer interferência de fatores externos a lei, e indiferente, portanto, a quaisquer considerações acerca da moralidade ou imoralidade, da justiça ou injustiça de uma determinada disposição legal. [10]

Nesse sentido manifesta-se H. Kelsen:

Se bem que a ciência jurídica tenha por objeto normas jurídicas e, portanto, os valores jurídicos através delas constituídos, as suas proposições são, no entanto – tal como as leis naturais da ciência da natureza – uma descrição de seu objeto alheia aos valores (wertfreie). Quer dizer: esta descrição realiza-se sem qualquer referência a um valor metajurídico e sem qualquer aprovação ou desaprovação emocional. Quem, do ponto de vista da ciência jurídica, afirma, na sua descrição de uma ordem jurídica positiva, que, sob um pressuposto nessa ordem jurídica determinado, deve ser posto um ato de coação pela mesma ordem jurídica fixado, exprime isto mesmo, ainda que tenha por injustiça e desaprove a imputação do ato coercivo ou seu pressuposto. [11]

Dessa forma, embora seja possível vislumbrar uma relação entre direito e moral [12], a elevação do direito ao status de ciência jurídica dependeria da dissociação de ambas, e, talvez mais importante que esta dissociação, da distinção entre direito e justiça. [13]

Na medida em que a escola positivista admite a existência de uma ordem jurídica fundada em conceitos distantes da moral, ou seja, na medida em que é possível, na doutrina positivista, a concepção de um ordenamento jurídico que se afaste do justo, a eutanásia praticada por Marie Humbert em seu filho, Vincent, e as conseqüências advindas do fato, se aproximariam, portanto, do campo da moral, aqui concebida com a noção de justiça, implicando, dessa forma, a necessidade de definir qual dos bens tutelados, a vida ou a dignidade da pessoa humana, seria de maior importância, isto é, a necessidade de ponderação. [14]

Ocorre que, para a doutrina positivista, a idéia de ponderação de valores não se baseia em critérios racionais, científicos, sendo:

(...) pura e simplesmente impossível decidir de modo racional-científico entre os dois juízos de valor em que se fundamentam essas concepções contraditórias. Em última análise, é nosso sentimento, nossa vontade e não nossa razão, é o elemento emocional e não o racional de nossa atividade consciente que soluciona o conflito. [15]

Sendo assim, a resposta à necessidade de ponderação decorreria do arbítrio, de critérios subjetivos válidos "somente para o sujeito que julga" [16]razão pela qual estará sujeita a variações de acordo com as convicções da pessoa responsável por seu julgamento, tendo esta resposta, portanto, "sempre um caráter de juízo de valor subjetivo e, portanto, relativo"[17]

Uma vez que a concepção de justiça moral [18] não se apresenta como um critério cientificamente suficiente para a solução de tais questões [19], as mesmas poderão ser elucidadas, numa ótica positivista, afastando-se da noção de justo ou injusto e aproximando-se da noção de lícito e ilícito, na medida em que determinada conduta seja reprovada ou não pela norma posta, impondo-se a tais práticas as conseqüências previstas nessa mesma norma.

Dentro desta perspectiva, havendo previsão expressa na legislação francesa no sentido de que é proibida a prática da eutanásia, e sendo certo que ao direito positivo é vedado tecer considerações de ordem moral, que, no caso em tela, se traduziriam em ponderações acerca da relatividade de tal norma diante de um princípio maior, a dignidade da pessoa humana, a norma posta conduziria à condenação de Marie Humbert pela morte de Vincent.


Capítulo IV

Da Necessidade de Ponderação

Conforme verificado, o positivismo jurídico, na concepção kelseniana, alheio a qualquer valoração de ordem moral, não mais se justifica, revelando a sua insuficiência para a solução de casos difíceis, como o Caso Vincent Humbert. [20]

Com efeito, a análise do caso em apreço sem qualquer consideração de ordem moral, isto é, sem qualquer preocupação com a justiça do caso concreto, conduzirá, a nosso sentir de forma incorrigível, à proclamação de uma injustiça, razão pela qual o positivismo jurídico, na presente questão, não se justifica.

O Caso Vincent Humbert se apresenta como um desafio ao jurista, pondo em choque a regra posta, que condena a prática da eutanásia em nome do direito à vida, e um princípio fundamental para o sistema jurídico, o da dignidade da pessoa humana, de forma que o Poder Judiciário francês, ao decidir a questão que se põe, não estará decidindo apenas se Marie Humbert deve ser culpada pela morte de seu filho, mas, também, se a norma jurídica emanada do Poder Legislativo deve ser cumprida independentemente de qualquer valoração, não importando as conseqüências que acarrete, inclusive com a perpetração de graves injustiças, ou se deve o jurista, na aplicação da norma, buscar a decisão que melhor reflita o direito naquela situação, ainda que para isso seja preciso apontar em direção diversa da apontada pela lei.

No caso em tela não nos resta dúvida de que a questão só poderá ser bem solucionada pela utilização do processo de ponderação, através do qual se efetivará o sopesamento do direito à vida, que aqui é representado pela norma jurídica segundo a qual a eutanásia é proibida e punida, e o princípio da dignidade humana, que no caso em tela está ligado à condição de vida em que se encontrava o jovem Vincent no momento de sua morte.

O processo de ponderação depende de uma diferenciação prévia entre os conceitos de regra e de princípio.

Segundo R. Dworkin: "as regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso nada contribui para a decisão". [21]

Dessa forma, se uma determinada norma jurídica pune o ato de estacionar um veículo em local proibido, p. ex., só existem duas possibilidades envolvendo a sua aplicação: ou alguém estacionou um veículo em um local previamente estabelecido como proibido, e, nesse caso, será punido através da aplicação da norma competente; ou essa pessoa não estacionou seu veículo em local proibido, não podendo, nesta hipótese, ser punido pela aplicação de tal regra, uma vez que a mesma não se justifica.

Já os princípios, segundo o mesmo R. Dworkin, "não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas" [22], podendo, prossegue o filósofo:

(...) haver outros princípios ou outras políticas que argumentem em outra direção (...). Se assim for, nosso princípio pode não prevalecer, mas isso não significa que não se trate de um princípio de nosso sistema jurídico, pois em outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo. Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como [se fosse] uma razão que inclina numa ou noutra direção. [23]

Um princípio pode, portanto, ter sua aplicação restringida por outro princípio, sem que isso acarrete, entretanto, a sua exclusão do ordenamento jurídico. Um bom exemplo dessa dinâmica se encontra na ponderação entre o direito da liberdade de expressão e informação e o direito à privacidade: com efeito, existem hipóteses em que a violação ao direito de privacidade em nome da livre informação não se justifica, razão pela qual, nesses casos, aquele prevalecerá em relação a este. Entretanto, em outras situações, pode ocorrer uma inversão de fatores, vislumbrando-se que a proteção do direito à privacidade em detrimento ao da livre informação não encontra fundamento, hipótese em que se privilegiará este, afastando-se a incidência daquele.

A partir desta primeira diferenciação, R. Dworkin nos apresenta uma segunda diferença envolvendo princípios e regras:

(...) Os princípios apresentam uma dimensão que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é. [24]

A afirmação acima exposta deixa clara a diferença fundamental entre princípios e regras: a possibilidade de ponderação. [25]

Certo é que, conforme já mencionado anteriormente, o processo de ponderação recebe críticas por parte dos adeptos do positivismo, na medida em que os mesmos consideram a ponderação um critério desprovido de métodos racionais e científicos, sujeitando-se, dessa forma, ao arbítrio, a critérios subjetivos válidos exclusivamente para aquele julgador sob cuja responsabilidade ficou a decisão de determinada questão.

Tal crítica não nos parece procedente, na medida em que, sendo o Direito argumentativo [26], as opiniões e convicções pessoais do julgador serão inseridas em um complexo debate, que envolverá, inclusive, convicções opostas às suas, a fim de que se alcance a decisão que melhor reflita a hipótese submetida ao julgador.

Como afirma R. Dworkin:

(...) o julgamento político que ele deve fazer é em si mesmo complexo e, às vezes, vai opor uma parte de sua moral política a outra: sua decisão vai refletir não apenas suas opiniões sobre a justiça e a eqüidade, mas suas convicções de ordem superior sobre a possibilidade de acordo entre esses ideais quando competem entre si. [27]

Verifica-se assim que o processo de ponderação, ao contrário do que se possa acreditar, não se caracteriza como um procedimento meramente discricionário, uma vez que, consideradas e sopesadas todas as nuances que envolvem aquela determinada questão, o julgador optará pela solução que melhor atenda às necessidades daquele caso concreto, encontrando o seu campo de decisão limitado por critérios de proporcionalidade e razoabilidade. [28]

A ponderação de princípios se rege, portanto, pela lógica do razoável. [29]

A questão que o Caso Vincent Humbert nos coloca é: como solucionar o conflito entre uma regra e um princípio, na medida em que as regras, ao contrário dos princípios, não se submetem ao processo de ponderação?

Tal situação não conduziria, a nosso ver, ao impedimento da utilização do referido processo, uma vez que, conforme afirmamos anteriormente, em nossa concepção, a regra da legislação francesa que pune a prática da eutanásia reflete, na verdade, uma manifestação do direito à vida. Dessa forma, estaríamos diante de um conflito entre o direito fundamental à vida e o direito fundamental ao tratamento digno, que, segundo a teoria dos princípios, é considerado como uma colisão de princípios. [30]

Ainda que a teoria dos princípios não oferecesse a solução acima indicada, o momento pós-positivista vivido pelo Direito conduz ao reconhecimento da supremacia dos princípios em relação às regras, na medida em que estes, como bem observa Paulo Bonavides, foram "convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais". [31]

Prossegue o renomado mestre:

São momentos culminantes de uma reviravolta na região da doutrina, de que resultam para a compreensão dos princípios jurídicos importantes mudanças e variações acerca do entendimento de sua natureza: admitidos definitivamente por normas, são normas-valores com positividade maior nas Constituições do que nos Códigos; e por isso mesmo providos, nos sistemas jurídicos, do mais alto peso, por constituírem a norma de eficácia suprema. Essa norma não pode deixar de ser o princípio. [32]

Sendo assim, na medida em que os princípios se revestem desse caráter fundamental, servindo de base e orientação na formação das regras, entendemos que a ponderação não poderia ser obstada pelo simples fato da colisão existente não se dar entre princípios, mas entre princípio e regra; até mesmo porque a colisão entre princípio e regra, na medida em que esta reflete aquele, é, ainda que indiretamente, colisão de princípios.

O Caso Vincent Humbert, como já afirmamos repetidas vezes, envolve a colisão do direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana.

O ordenamento jurídico francês, ao punir a prática da eutanásia, busca a preservação do direito à vida, tido por todos como o maior bem juridicamente protegido.

Mas até que ponto esta disposição se justifica?

Vincent Humbert era um jovem que, após o acidente sofrido, havia ficado tetraplégico, mudo e cego, vivendo, contra a sua própria vontade, uma vida desprovida de critérios mínimos de qualidade, o que o levou a pedir publicamente pela sua morte, que, segundo ele mesmo, teria ocorrido, de fato, na data do acidente que o vitimou.

A interrupção de uma vida que havia se tornado um fardo para o próprio Vincent, incapaz de se locomover, incapaz de enxergar, incapaz de se expressar, a não ser através de um de seus dedos da mão, seria realmente um ato reprovável?

Se é correto que, conforme mencionado na já citada lição do mestre José Afonso da Silva, o valor dado à vida não nos permite privar o ser humano de um único momento de sua existência, parece-nos igualmente correto que o homem dá mais valor à dignidade do que a própria vida [33], razão pela qual se nos afigura completamente admissível a prática da eutanásia quando a manutenção da vida implicar em vilipêndio à dignidade da pessoa humana.

É que, assim como o professor Daniel Sarmento, a cuja lição aqui aderimos, concebemos a dignidade da pessoa humana como um princípio imponderável, razão pela qual o entendemos oponível até mesmo ao direito à vida.

Com efeito, assim se manifesta o festejado mestre:

Nesta ponderação, porém, a liberdade do operador do direito tem como norte e como limite a constelação de valores subjacentes à ordem constitucional, dentre os quais cintila com maior destaque o da dignidade da pessoa humana. Nenhuma ponderação poderá importar em desprestígio à dignidade do homem, já que a garantia e promoção desta dignidade representa o objetivo magno colimado pela Constituição e pelo Direito, ou, nas palavras de Teresa Negreiros, a própria ‘razão de ser’ do sistema jurídico-constitucional. [34]

Concluindo mais adiante:

Assim, reiteramos o nosso entendimento de que nenhuma ponderação pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o fim último desta ordem. [35]

Durante três anos, a regra do ordenamento jurídico francês que proíbe a eutanásia condenou o jovem Vincent Humbert a uma vida indigna.

Ao praticar a eutanásia em seu filho, Marie Humbert teve por objetivo maior a preservação da dignidade de Vincent.

Sua condenação representaria, a nosso sentir, uma dupla injustiça.


Capítulo V

Conclusão

O Caso Vincent Humbert, ao colocar em colisão os direitos fundamentais à vida e à dignidade revela-se claramente como um caso difícil, não sendo possível estabelecer a priori uma resposta preferencial entre duas ou mais interpretações da legislação francesa.

Conforme verificado, a concepção positivista pregada pela escola kelseniana, alheia a qualquer consideração valorativa do fenômeno jurídico, não é suficiente para a solução do Caso Vincent Humbert, que exige um posicionamento não meramente jurídico, incapaz de ser resolvido, portanto, pela mera subsunção legal.

Dentro dessa perspectiva, a ponderação de princípios se revela, a nosso ver, a melhor alternativa ao impasse criado pelo Caso Vincent Humbert.

Através da ponderação de princípios será possível verificar que o direito à vida, protegido pela disposição legal do ordenamento jurídico francês que proíbe a prática da eutanásia, não pode ser dissociado da noção de dignidade da pessoa humana, ausente da vida de Vincent desde a ocorrência do acidente que o vitimou.

A manutenção da vida, portanto, em determinadas situações, não será a melhor solução a se pregar, como ocorre, a nosso sentir, no caso em tela, uma vez que a existência de Vincent Humbert não mais se revistia de critérios mínimos de dignidade, razão pela qual, na colisão de princípios aqui verificada, impõe-se a admissão do sacrifício do direito à vida em prol da dignidade, esta sim, imponderável.


Bibliografia

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NOTAS

1 MORRE jovem tetraplégico francês com a ajuda da própria mãe. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u63492.shtml>. Acesso em 26.09.2003.

2 MORRE jovem que comoveu a França com pedido de eutanásia. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/useg/saude/artigo/print/0,,1358981,00.html>. Acesso em 03.11.2003.

3 CONDENADA por eutanásia. Disponível em: <http://www.jornaldocommercio.com.br/edicoes/031017/ direito/direito6.htm>. Consultado em 03.11.2003.

4 FRANCESA ajuda filho tetraplégico e cego a morrer. Disponível em: <http:// www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2003/09/printable/030926_eutanas.... Acesso em 03.11.2003.

5 MORRE jovem que comoveu a França...

6 FRANÇA: médico responsabiliza-se por morte de jovem tetraplégico. Disponível em: <http://globonews.globo.com/GN2_article_print_padrao/1,20568,825413,00.html?>. Consultado em 03.11.2003.

7 No ordenamento jurídico brasileiro a eutanásia também não encontra respaldo legal, sendo válida, embora longa, a transcrição da lição de José Afonso da Silva: "Este termo tem vários sentidos: ‘morte bela’, ‘morte suave, tranqüila’, sem dor, sem padecimento. Hoje, contudo, de eutanásia se fala quando se quer referir à morte que alguém provoca em outra pessoa já em estado agônico ou pré-agônico, com o fim de liberá-la de gravíssimo sofrimento, em conseqüência de doença tida como incurável, ou muito penosa, ou tormentosa. Chama-se, por esse motivo, homicídio piedoso. É, assim mesmo, uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, pelo que implicitamente está vedada pelo direito à vida consagrado na Constituição, que não significa que o indivíduo possa dispor da vida, mesmo em situação dramática. Por isso, nem o consentimento lúcido do doente exclui o sentido delituoso da eutanásia no nosso Direito. É que – como lembra Aníbal Bruno – a ‘vida é um bem jurídico que não importa proteger só do ponto de vista individual; tem importância para a comunidade. O desinteresse do indivíduo pela própria vida não exclui esta da tutela penal. O Estado continua a protegê-la como valor social e este interesse superior torna inválido o consentimento do particular para que dela o privem. Nem sequer quando ocorrem as circunstâncias que incluíram o fato na categoria da eutanásia, ou homicídio piedoso’.

Dá-se o caso, ainda, que a eutanásia geralmente tem aplicação sem o consentimento do doente, que nem sempre está em condições de outorgá-lo validamente. Há muita discussão em torno do tema, que sempre se aguça, emocionalmente, quando algum caso de doloroso padecimento atrai a compaixão pública. No entanto, as palavras de Remo Pannain sobre a razão da punibilidade da eutanásia são de ponderar devidamente, quando ele diz que, além dos motivos religiosos, opõem-se à impunidade da eutanásia: (a) motivos científicos e de conveniência, tais como a possibilidade de um erro de diagnóstico, da descoberta de um remédio, bem como da eventualidade de pretexto e de abusos; (b) motivos morais (e mesmo jurídicos), pois que, dado o valor atribuído à vida humana pela consciência comum e pelo ordenamento jurídico, não se pode privar a criatura humana nem de um só átimo de existência; (c) de resto, a prevalência do motivo de piedade sobre a natural aversão à supressão de um semelhante revela, em quem pratica a eutanásia, uma personalidade sanguinária ou, pelo menos, propensa ao delito. A eutanásia não mereceu maior atenção na Constituinte". José Afonsa da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. pp. 198/199.

8 Já no prefácio à primeira edição de sua clássica obra, Teoria Pura do Direito, H. Kelsen ressaltava que não correspondia ao fim de sua teoria a elucidação das "tendências endereçadas à formação do Direito, mas as sua tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão". Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. p. XI.

Tal preocupação levou H. Kelsen a conceber um sistema de validade para as normas jurídicas, que passou a ser conhecido como "Pirâmide Normativa de Kelsen", segundo o qual uma norma jurídica inferior encontra seu fundamento de validade em uma norma jurídica superior, que disciplina a sua criação.

De acordo com esse sistema, existiria ainda, uma norma fundamental, "que é a fonte de validade de todas as normas que pertencem a certa ordem jurídica". Hans Kelsen. O que é Justiça? p. 213.

Essa norma, segundo H. Kelsen, seria uma norma pressuposta, hipotética, fora, portanto, do âmbito do direito positivo. Hans Kelsen. O que é..., p. 215.

Em nossa opinião, a apresentação da norma fundamental como algo que não se encontra no âmbito do direito positivo constitui uma falha na teoria kelseniana, na medida em que sua teoria toma como norma básica de todo o direito positivo, que busca, de acordo com suas próprias palavras, objetividade e exatidão, uma norma que não é direito, que é hipotética. Dessa forma, o direito positivo não seria capaz de justificar a sua própria existência com base nos critérios por ele propostos.

Parece-nos mais interessante a solução apresentada pelo professor Herbert Hart, que, ao tratar da norma fundamental, que em sua obra é denominada "Regra de Reconhecimento", afirma que "a sua existência é uma questão de fato". Herbert Hart. O Conceito de Direito. p. 121.

9 Hans Kelsen. Teoria..., p. 67.

10 Esta nos parece mais uma concepção positivista que não se justifica. Com efeito, o próprio H. Kelsen, ao dedicar um capítulo de sua Teoria Pura do Direito à interpretação, admite que a sentença que decide uma determinada questão é, na verdade, uma possibilidade dentre uma série de possibilidades existentes em uma moldura formada pelo Direito a aplicar. Hans Kelsen.Teoria..., pp. 390/391.

Sendo assim, se o juiz, ao decidir uma determinada questão, busca uma das várias decisões possíveis, não há como negar que o direito seja valorativo, sendo, portanto, impossível conceber uma teoria jurídica alheia a qualquer valoração de ordem moral.

A isso se some o fato de que a ausência de uma análise crítica, valorativa, do direito por parte do jurista conduziria à estagnação, dando azo à ocorrência de abusos. Nesse ponto, é válida a citação de Plauto Faraco de Azevedo: "O positivismo normativo entende que ‘o dado positivamente consiste nas proposições jurídicas do direito vigente’, a cuja consideração limita seu interesse. Situa-se aí a Teoria Pura do Direito de Kelsen, que se limita ‘ao conhecimento e interpretação do direito positivo’, independentemente de sua valorização, considerada não científica. ‘Com essa concepção seguramente podem justificar-se as medidas arbitrárias de um ditador, experimentando o conceito de justiça... uma completa relativização..., chegando-se à esterilidade da Filosofia do Direito e tornando-se impossível sequer colocar a questão do direito ‘correto’’". Plauto Faraco de Azevedo. Aplicação do Direito e Contexto Social, pp. 31/32.

Exemplos dessa possível conseqüência nos são trazidos por Celso Lafer, que cita a Alemanha nazista, a União Soviética stalinista e os regimes totalitários da América Latina, demonstrando, dessa forma, a falência da concepção de Direito trazida pela escola kelseniana. Celso Lafer. A Reconstrução dos Direitos Humanos. pp. 75/76.

11 Hans Kelsen. Teoria..., p. 89.

12 Tal relação, repita-se, é admitida pelo próprio H. Kelsen.

13 Uma passagem da Teoria Pura do Direito deixa clara, a nosso ver, tal distinção. Ao tratar do direito como parte da moral, H. Kelsen admite que "(...) o Direito pode ser moral – no sentido acabado de se referir, isto é, justo – mas não tem necessariamente de o ser: que uma ordem social que não é moral, ou seja, justa, pode, no entanto, ser Direito (...)". Hans Kelsen. Teoria..., pp. 71/72.

Outro problema fundamental verificado pela teoria kelseniana, e que implica a necessidade do afastamento da moral, aqui concebida como justiça, da teoria pura do direito consistiria no seu relativismo, uma vez que, inexistindo uma moral absoluta, que se consubstanciaria em uma moral universalmente válida, a idéia de um direito moralmente justo só seria concebível na medida em que se fundasse a ordem jurídica em um substrato comum a todos os sistemas morais existentes, o que, segundo H. Kelsen, é de todo impossível, já que, em decorrência da distinção do que "(...) os homens efetivamente consideram como bom ou mau, justo e injusto, em diferentes épocas e nos diferentes lugares, não se pode determinar qualquer elemento comum aos conteúdos das diferentes ordens morais". Hans Kelsen. Teoria..., pp. 72/73.

A relatividade do conceito de justiça volta a ser enfrentada por H. Kelsen em outra de suas obras, quando o filósofo argumenta que: "o fato de certos valores serem aceitos por todos dentro de uma determinada sociedade é perfeitamente compatível com o caráter subjetivo e relativo dos juízos que mantêm esses valores. A unanimidade sobre um juízo de valor existente entre muitos indivíduos não é absolutamente prova de que esse juízo seja correto, isto é, objetivamente válido", aduzindo, logo a seguir, que "o critério de justiça, assim como o de verdade, não é de modo algum a freqüência com que surgem os juízos de realidade ou de valor. Na história da civilização humana, juízos de valor de aceitação geral foram freqüentemente suplantados por outros, opostos àqueles em maior ou menor escala, porém de aceitação igualmente geral". Hans Kelsen. O que é..., p. 08.

14 A idéia de ponderação não é ignorada pela escola positivista. Com efeito, o próprio H. Kelsen a apresenta ao tratar da hipótese do suicídio como forma de se alcançar a liberdade. No entanto, tal concepção é apresentada apenas com o intuito de demonstrar a sua acientificidade. Hans Kelsen. O que é..., p. 05.

15 Idem.

16 Idem.

17 Ibidem, p. 07.

18 Falamos aqui em justiça moral nos referindo à concepção de justo da qual a escola positivista tenta desvincular o direito, já que a concepção positivista de justiça, a nosso ver, se aproxima da idéia de legislação.

19 É válida, nesse sentido, a transcrição do seguinte trecho: "Se existe algo que a história do conhecimento humano nos pode ensinar é como têm sido vãos os esforços para encontrar, por meios racionais, uma norma absolutamente válida de comportamento justo, ou seja, uma norma que exclua a possibilidade de também considerar o comportamento contrário como justo". Hans Kelsen. O que é..., p. 23.

20 A noção do que venha a ser um caso difícil nos é apresentada por Ronald Dworkin, para quem "os casos difíceis se apresentam, para qualquer juiz, quando sua análise preliminar não fizer prevalecer uma entre duas ou mais interpretações de uma lei ou de um julgado". Ronald Dworkin. O Império do Direito, p. 306.

21 Ronald Dworkin. Levando os Direitos a Sério. p. 39.

Nesse sentido também se manifesta Robert Alexy, para quem "(...) regras são normas que são aplicáveis ou não-aplicáveis. Se uma regra está em vigor, é determinante que se faça exatamente o que ela exige: nem mais e nem menos". Robert Alexy. Colisão e Ponderação como Problema Fundamental da Dogmática dos Direitos Fundamentais. Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, em 10.12.1998.

22 Ronald Dworkin. Levando..., p. 40.

23 Ibidem, pp. 41/42.

R. Alexy, ao tratar dos princípios, afirma: "Segundo a definição básica da teoria dos princípios, princípios são normas que permitem que algo seja realizado, da maneira mais completa possível, tanto no que diz respeito à possibilidade jurídica quanto à possibilidade fática. Princípios são, nesses termos, mandatos de otimização (optimierungsgebote). Assim, eles podem ser satisfeitos em diferentes graus. A medida adequada de satisfação depende não apenas das possibilidades fáticas, mas também de possibilidades jurídicas. Essas possibilidades são determinadas por regras e sobretudo por princípios". Robert Alexy. Colisão e Ponderação..., p. 11.

24 Ronald Dworkin. Levando..., pp. 42/43.

25 R. Alexy, ao tratar da ponderação, faz uma afirmativa que traduz bem esta diferenciação: "Princípios e ponderações são dois lados do mesmo fenômeno". Robert Alexy. Colisão e Ponderação..., p. 11.

Com efeito, ao contrário dos princípios, que se submetem à ponderação, as regras são aplicadas através da subsunção, resolvendo-se eventuais conflitos através de aspectos relacionados ao tempo (a norma posterior revoga a anterior naquilo que lhe for contrária) ou à especialidade (a norma especial afasta a incidência da norma geral).

26 Ronald Dworkin. O Império..., p. 17.

27 Ibidem, p. 306.

28 A alusão que R. Dworkin faz à figura de uma rosca descreve com perfeição a idéia aqui exposta: "(...) tal como o espaço vazio no centro de uma rosca, o poder discricionário não existe a não ser como um espaço vazio, circundado por uma faixa de restrições". Ronald Dworkin. Levando..., p. 51.

29 A lógica do razoável encontra importante defensor em Chaïm Perelman, que assim se manifesta: "Deveremos inclinar-nos ao uso dos lógicos ou ater-nos ao dos juristas que sabem muito bem do que se trata quando falam de lógica jurídica? Não creio que se deva identificar a lógica com a lógica formal, pois isto leva impreterivelmente a tentativas de reduzir os raciocínios habituais dos juristas, tais como os raciocínios a pari, a contrario ou a fortiori, a estruturas formais, ao passo que se trata de algo inteiramente diverso. Para E. H. Lévi, o ‘raciocínio jurídico tem uma lógica específica. Sua estrutura se adapta a dar um sentido à ambigüidade e a constantemente verificar se a sociedade chegou a discernir novas diferenças ou similitudes’. Trata-se essencialmente de argumentações pelo exemplo e por analogia.

Para K. Engisch, que evita a palavra ‘lógica’ no título de seu livro, ‘a lógica jurídica é uma lógica material, que nos deve fazer refletir sobre o que cabe fazer – nos limites do possível – quando se quer chegar a juízos jurídicos verdadeiros ou, ao menos, ‘corretos’’. Eu aceitaria esta definição, se se substituíssem os qualificativos ‘verdadeiros’ ou ‘corretos’ por ‘eqüitativos’, ‘razoáveis’ ou ‘justos’. Aliás, foi dentro desse espírito que se consagrou à lógica jurídica o 5º colóquio dos Institutos de Estudos Judiciários, no qual pouco se falou da lógica formal". Chaïm Perelman. Lógica Jurídica: Nova Retórica. pp. 06/07.

A lógica do razoável também é objeto de estudo por parte de C. Lafer, para quem os conceitos de "razoável" e "racional" são conceitos distintos, na medida em que o racional é tido como algo vinculado "aos critérios bem conhecidos pela tradição filosófica de verdade, coerência e eficiência", ao passo que o razoável, "ainda que não se oponha ao racional, está mais próximo do bom senso da razão prática e do sentido de medida daquilo que é aceitável num determinado meio social e num dado momento", sendo certo que, nas palavras de C. Lafer, "(...) a lógica do razoável levou o saber jurídico: a apreciar a adequação dos meios teóricos aos fins práticos a que se destinavam; a aferir a utilidade das teorias às circunstâncias em que operam; a traçar um limite ao que era desarrazoado sublinhando, de um lado, o absurdo a que levam certas posições se tomadas radicalmente, e equilibrando, de outro, pelo entrechoque de opiniões o impacto das distintas posições dos jusfilósofos". Celso Lafer. A Reconstrução..., pp. 74/75.

30 Nesse sentido: Robert Alexy. Colisão e ponderação..., p. 11.

31 Paulo Bonavides. Curso de Direito Constitucional. p. 237.

32 Ibidem, p. 248.

33 Nesse sentido vale relembrar que o próprio H. Kelsen tece considerações acerca da justificação do suicídio como forma de se alcançar a liberdade. Hans Kelsen. O que é..., p. 05.

34 Daniel Sarmento. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. p. 75.

35 Ibidem, p. 76.