O conceito de Direito


Porrafael- Postado em 07 dezembro 2011

Autores: 
MARTINS, Daniele Comin

O conceito de Direito

Faz-se um levantamento sobre o conceito de direito a partir da Teoria do Direito, da Sociologia do Direito e da Filosofia do Direito.

Sumário: INTRODUÇÃO 1. ACEPÇÕES DA PALAVRA DIREITO 2. O CONCEITO DE DIREITO EM HANS KELSEN 3. HERBERT. HART E SUA CONCEITUAÇÃO DE DIREITO 4. O DIREITO PARA NORBERTO BOBBIO 5. O QUE É DIREITO PARA ROBERTO LYRA FILHO 6. APONTAMENTOS DA TEORIA CRÍTICA NA INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA DO DIREITO – CONSIDERAÇÕES FINAIS – BIBLIOGRAFIA.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo fazer um breve levantamento sobre o conceito de direito a partir da da Teoria do Direito, da Sociologia do Direito e da Filosofia do Direito.

A proposta é de um diálogo entre estas disciplinas a fim de se atingir o objetivo maior, que é o de se entender a problemática um torno das definições e conceituações do direito. Sabemos que não existe um único conceito ou uma única idéia de direito e, desse modo, propomos uma análise capaz de compreender o motivo pelo qual isto ocorre, bem como suas implicações.

Inicialmente apresentamos as mais comuns acepções da palavra direito, a fim de alertar o leitor para o imenso leque de possibilidades de interpretação do termo.

Posteriormente é que entramos no debate mais árduo, realizando uma breve incursão no pensamento de três expoentes do positivismo jurídico: Kelsen, Hart e Bobbio, buscando entender como eles trabalharam o tema e conceituaram o direito.

Numa terceira etapa de reflexão apresentamos a proposta de Roberto Lyra Filho, cuja formulação perpassa a Sociologia e a Filosofia do Direito, buscando compreender o fenômeno jurídico como um processo dialético, superando todos os modelos apresentados até então.

Por fim, apresentamos alguns apontamentos que a Teoria Crítica realizou em torno do tema, ponderações reflexivas e de profunda crítica de um movimento que se propõe não apenas a analisar o fenômeno jurídico, mas também de influenciá-lo a partir de uma práxis emancipadora.

Esta é a proposta, que, sem dúvida alguma não esgotará um tema tão vasto e complexo, mas que dará algumas noções sobre a problemática que circunda algo que parece elementar, mas que esconde uma profundidade e complexidade que poucos temas possuem.


1. Acepções da palavra direito

No estudo da palavra “direito” vemos que sua origem está num vocábulo do latim: directum ou rectum, que significa “reto” ou “aquilo que é conforme uma régua”.

Esta concepção, ainda, se somou à noção positivista, vez que em suas diversas acepções, conforme veremos, consolidou-se o “pressuposto de uma regra a determinar o que é ‘certo’ e uma autoridade ou chefe a impô-la”1.

A palavra direito encontra, pois, uma pluralidade de significações que refletem diferentes realidades, mas que, embora não se limitando ao significado vinculado a sua origem latina, carrega sempre consigo este pressuposto de ser uma regra a determinar o que é certo.

Assim, o vocábulo direito pode significar2:

a) norma: quando, por exemplo, se diz que “o direito proíbe uma conduta”:

Este é o sentido mais comum que se dá à palavra direito, sendo que inúmeras definições correntes referem-se à acepção do direito como lei, ou como um conjunto de normas, como as referências positivistas mais comuns3.

Ë com este significado que Vicente RÁO conceitua o direito como um sistema de normas:

É o direito um sistema de disciplina social fundado na natureza humana que, estabelecendo nas relações entre os homens uma proporção de reciprocidade nos poderes e deveres que lhes atribui, regula as condições existenciais dos indivíduos e dos grupos sociais e, em conseqüência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público4.

Mas esta concepção é imprecisa, pois é incapaz de dar conta de toda a complexidade do fenômeno jurídico, reduzindo-o à mera legalidade.

b) faculdade: quando, numa expressão, se diz que “o cidadão tem o direito de propor uma ação”:

Este é o mesmo sentido dado por IHERING quando propõe que direito “é o interesse protegido pela lei”5. Esta acepção é, pois, uma idéia de direito subjetivo, já que reflete um poder, uma faculdade reconhecida ao sujeito.

c) justiça: na hipótese, exemplificadamente, de que, “a educação é um direito de todos”:

Na acepção de direito enquanto justo há duas possibilidades de interpretação: direito pode ser entendido como “devido por justiça”6, como o significado da palavra direito na Declaração Universal dos Direitos do Homem e, ainda, pode ser entendido como “conforme a justiça”.

d) ciência: quando nos referimos, por exemplo, ao fato de que “cabe ao direito penal estudar a criminalidade”;

Ë muito comum, também, empregar-se a palavra direito com o sentido de “ciência do direito”, como a definição de Celso: “direito é a arte do bom e do justo”.

Importante ressaltar-se que a idéia de direito enquanto “ciência” não é, por um lado, pacífica, face às críticas e ponderações de outras ciências, como as da Sociologia e que, por outro, ainda que considerado ciência, deve-se atentar, então, ao modelo de ciência do direito no sentido dado por KELSEN, não sendo tudo que se faz no mundo jurídico necessariamente ciência.

fato social: quando consideramos que “o direito é um fenômeno da sociedade”.

Este é o sentido dado, principalmente, pelos sociólogos e que entende o direito como um setor da vida social.

Nesta acepção não se atenta exclusivamente ao direito como um fenômeno estatal, ou seja, ao direito enquanto norma, direito instituído, mas como um fenômeno de poder que pode se dar em várias esferas, não somente na esfera do que já está instituído, mas também na esfera do instituinte. Veremos, mais adiante, como a sociologia jurídica, especialmente nos trabalhos de Roberto LYRA FILHO, trabalha com esta idéia.

* * *

O breve levantamento demonstrou-nos que a idéia e o conceito de direito não são unívocos, ao contrário, sabemos que “o que é direito” não está nem um pouco claro.

Vamos, assim, buscar dentre alguns importantes juristas que discutiram a Teoria do Direito, a Sociologia do Direito e a Filosofia do Direito um conceito capaz de nos responder a esta questão tão controvertida mas de grande importância para a compreensão do fenômeno jurídico.


2. O CONCEITO DE DIREITO EM HANS KELSEN

Hans KELSEN é o maior expoente do pensamento positivista7 no direito, tendo elaborado um grande projeto de construção de uma linguagem rigorosa para o direito e postulado uma ciência do direito alicerçada em proposições normativas capazes de descrever sistematicamente o objeto direito.

Sua obra provocou, no seu tempo, uma verdadeira revolução epistemológica, sendo considerado por alguns como puramente neokantiano e por outros como sendo um representante do positivismo lógico8.

Para desenvolver sua Teoria Pura do Direito, principal obra que trata da purificação da ciência do direito, separando-o do direito natural, da metafísica, da moral, da ideologia e da política, KELSEN se baseia no Princípio da Pureza Metodológica, que torna-se sinônimo de rigor científico, estrita definição do objeto e neutralidade política. Este é o pilar de todo o seu pensamento:

Ë mister, antes de mais nada, afastar tudo que seja meta ou extra-jurídico, mantendo qualquer consideração não-normativa em terreno alienígena. Incluso nesta restrição está, e principalmente, os juízos de valor relacionados ao conteúdo da norma jurídica. A Teoria Pura do Direito é a construção gigantesca elaborada para estudo da forma e relação entre formas das normas jurídicas, afastado o interesse por seu conteúdo eventual e qualquer discurso acerca do valor deste mesmo conteúdo9.

Com estas premissas epistemológicas, KELSEN define o direito como “uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano”10 e norma como “o sentido de um ato através do qual uma conduta humana é prescrita, permitida ou, especificamente, facultada”11.

Desse modo, podemos dizer que KELSEN encara o direito como sendo um fato, e não como um valor. Podemos dizer, ainda, que o Direito é, para ele, nada além que uma “ordem de conduta humana”12, definindo “ordem” como sendo um

sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é – como veremos – uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem13.

Entende, assim, que o Direito enquanto ordem coativa se distingue das outras ordens sociais no momento em que deve-se aplicar uma coação, isto é, quando mesmo contra a vontade da pessoa atingida que pratica uma conduta socialmente indesejada.

Estes atos de coação são estatuídos pela ordem jurídica como sanção e o ato reprimido por ela é designado como uma conduta proibida, antijurídica, um ato ilícito ou delituoso. Para aplicação desta sanção, a ordem jurídica determina as condições sob as quais a coação física será aplicada e quem a aplicará. Nesse sentido, o autor entende que a comunidade jurídica tem o monopólio da coação.

Quando a ordem jurídica determina os pressupostos sob os quais a coação deve acontecer, protege os indivíduos que lhe estão submetidos e quando esta proteção alcança um determinado mínimo (como com a instituição do monopólio coercitivo da comunidade), fala-se de segurança coletiva14.

Desse modo, podemos dizer que Kelsen coloca no centro da definição do direito a coação, ou seja, a “coatividade é a característica essencial da própria definição, ou conceituação, do jurídico”15. Portanto, direito, para ele, é um sistema coativo de normas que vão regular a conduta humana.


3. HERBERT HART E SUA CONCEITUAÇÃO DE DIREITO

Herbert HART é um forte representante do positivismo jurídico anglo-saxônico, que realizou uma grande contribuição à hermenêutica jurídica contemporânea, vez que sua obra tem uma ampla discussão sobre a importância do reconhecimento para a legitimidade do direito.

Em sua obra “O conceito de direito”16, HART, critica o conceito austiniano de direito, buscando demonstrar “a centralidade do conceito de regra para a elucidação do conceito de direito, bem como a sua irredutibilidade às noções de hábito de obediência e ordem coercitiva”17.

Assim, em HART, o direito ou sistema jurídico é conceituado como um modelo complexo de união de regras primárias e secundárias. As regras primárias ou de obrigação são aquelas que impõem deveres, obrigações ou abstenções a certos atos18.

Já as regras secundárias são as que estabelecem poderes, podendo ser de três tipos: regras de reconhecimento, regras de alteração e regras de julgamento19. As regras de reconhecimento dão validade às regras primárias, validade esta que depende da aceitação por parte da comunidade.

São estas regras secundárias que, para HART, explicitam a dinâmica das normas e que permitem a justificação e existência de um sistema jurídico.

O direito, pois, é visto pelo autor como uma instituição social e, sendo assim, como “um fenômeno cultural constituído pela linguagem. Por isso, é que Hart, desde a linguística, pretende privilegiar o uso da linguagem normativa como o segredo para que se compreenda a normatividade do direito”20.

Assim, a necessidade de aceitação das regras de reconhecimento, alteração e julgamento como padrões públicos e comuns de comportamento oficial pelos funcionários e a obediência às regras de comportamento são condições de existência do sistema jurídico e demonstram a existência de uma normatividade social.

Dessa forma, sendo, para HART, o sistema jurídico um fenômeno constituído pela linguagem, sistema este aberto e auto-referencial, existe nele uma zona de textura aberta.

Em algum momento, segundo o autor, o conteúdo normado não será suficientemente explícito, pois há limites naturais da linguagem, de modo que o intérprete terá que buscar uma complementação de significados para preenchimento de lacunas. Neste momento os tribunais exercerão uma função criadora do direito.

Disso tudo, para nossa temática, é importante ratificar-se a visão de HART sobre o direito que, ainda que definido como um sistema complexo de união de regras primárias e secundárias, é uma instituição social, um fenômeno cultural constituído pela linguagem, o que demonstra uma postura positivista mas com objetivos hermenêuticos, que apresenta um viés de análise diferenciado da proposta kelseniana.


4. O DIREITO PARA NORBERTO BOBBIO

Norberto BOBBIO é o expoente do positivismo jurídico italiano, nascido da orientação filosófica do empirismo lógico e da filosofia analítica, sob a influência da teoria de Kelsen21.

Assim, “a fonte do pensamento teórico-jurídico de Bobbio encontra-se no positivismo jurídico italiano de matriz kelseniana e neoempirista, e que é uma forma de pensar o direito, na qual as normas jurídicas são o vértice do assunto”22.

Esta forma específica de positivismo, desenvolvida nos trabalhos de BOBBIO, buscou tratar da estrutura normativa do direito e construir uma teoria formal capaz de desenvolver, esclarecer e corrigir o positivismo jurídico nas falhas que o mesmo tinha apresentado até então.

Já a filosofia jurídica do autor, de posição cientificista, teve uma grande preocupação com a Teoria Geral do Direito e, em decorrência disso, buscou analisar a regra enquanto tal e, num segundo aspecto, preocupou-se com a dogmática jurídica, ou seja, com a análise do conteúdo das regras.

Sua perspectiva analítica interna se preocupou muito mais com o problema da validade do direito do que propriamente com a sua conceituação. Esta vinculou-se à análise do discurso, da linguagem, já que o direito:

pode ser entendido como um conjunto de discursos, de comunicações linguísticas; discursos dos legisladores (as leis e os códigos), discursos dos juízes (as sentenças), discursos das pessoas privadas (os testamentos e os contratos realizados). Acrescente-se, ainda, que os advogados também produzem discursos, assim como os professores de direito, etc.23

Tendo-se em vista estas premissas, no que se refere a uma conceituação do direito, “a teoria da ciência de Bobbio possuiu como pressuposto principal a tomada de consciência de que o direito é uma linguagem e que a linguagem é um problema filosófico”24.

Podemos dizer que, assim, que na perspectiva de BOBBIO, o direito é um “conjunto de regras de comportamento expressas em proposições normativas”25.

Mas esta perspectiva linguística em BOBBIO é bastante diferente daquela apresentada por Kelsen, parte do mundo da lógica formal, em que o direito é visto não como um fato em si, mas como um valor.

Por fim, podemos concluir que para BOBBIO o direito é uma entidade complexa, não sendo exclusivamente racional ou lógica, mas também um fato, uma realidade empírica e, desta forma, contextualizada historicamente. Assim, o direito é visto pelo autor “como uma linguagem não só lógica ou axiomática, mas como uma linguagem natural multi-problemática, envolvida com complexas circunstâncias históricas”26.


5. O QUE É DIREITO PARA ROBERTO LYRA FILHO

Roberto Lyra Filho é um importante jurista brasileiro que apresenta uma abordagem na análise do direito diferenciada de todas aquelas realizadas até então, vez que propõe uma perspectiva dialética, privilegiando as análises filosóficas e sociológicas sem reduzir seu pensamento a idéias deterministas, anti-humanistas, marxistas mecanicistas ou idealistas.

Em sua Teoria Dialética do Direito, tratada principalmente em sua obra “O que é direito”27, LYRA FILHO apresenta uma proposta que concebe o direito como processo dialeticamente inserido no processo social: “direito é processo, dentro de processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada”28-

Para desenvolver seu conceito dialético de direito, LYRA FILHO, inicialmente realiza uma análise crítica dos modelos sociológicos positivistas e jusnaturalistas de fundamentação do direito, para, posteriormente, realizar uma operação dialética de continuação e superação de tais modelos.

A fundamentação sociológica positivista, que é uma sociologia da “estabilidade, harmonia e consenso” e que servirá como “raiz social do positivismo jurídico”29 propõe um modelo em que um determinado grupo social as relações sociais são regidas por normas, exigíveis sob ameaça de sanção (modelo centrífugo). Estas normas se fixam nas instituições presumivelmente legitimas (o Estado é a maior delas), que mantém os instrumentos de controle social. O direito está aí, e com ele há o “engessamento” das relações e mudanças sociais, já que o controle da lei e a ordem são divinizados. Nesta fundamentação omite-se as relações econômicas antagônicas de classe, os oprimidos e os opressores e seus direitos30.

O segundo modelo, de sociologia da “mudança, conflito e coação” (centrípeto), é “uma espécie de negativo fotográfico do modelo anterior”31: um espaço social ocupado por uma série de grupos em conflito torna precária e discutível a legitimidade do grupo dominante de normas, conseqüentemente, há um constante ataque de anomia. Desse modo, a ordem estabelecida é desmascarada como nua coação.

Neste segundo modelo o direito perde a nitidez positivista do primeiro, “ganhando um difuso colorido jusnaturalista, dada a insistente reivindicação de direitos opostos, de grupos contrários à law and order (a lei e a ordem) do establishment (o sistema dominante)”32.

Nenhum dos dois modelos corresponde à realidade porque incapazes de dar conta da totalidade e dialética que a mesma contém. São apenas visões parciais, incompletas, ou distorcidas, do todo.

A análise do direito a partir de uma visão dialética é capaz de apontá-lo como “fenômeno dinâmico, como totalidade inserida na totalidade social, caracterizada pelas suas próprias contradições e mediações”33.

Partindo das análises sociológicas positivista e jusnaturalista, LYRA FILHO elabora uma proposta dialética social do direito, superando tais enfoques.

Entende o autor que o processo histórico ao qual pertence o direito não é somente interno, mas também internacional. Sobre esta base interdependente das infra-estrutura internacional e nacional “é que se armam os aspectos derivados e superestruturais – de um lado estabelecendo coesão, e, de outro, a dispersão.

As relações sociais, dentro do modelo infra-estrutural, a que o autor chama de centrípeto, consolida-se uma classe ou grupo dominante, que se legitima e padroniza numa organização social, a qual “se garante com instrumentos de controle social”34, o que inviabiliza, neste ramo, qualquer mudança social.

Em outro “ramo” da relações sociais, a que o autor chama de centrífugo, “a cristalização de normas das classes e grupos espoliados e oprimidos produzem as instituições próprias, cuja presença na estrutura é fator de maior ou menor desorganização social, envolvendo a atividade anômica (a contestação de normas do ramo dominante”35). Esta atividade de contestação poderá ser reformista ou revolucionária.

Em todos estes vértices mencionados existe o aspecto jurídico, que surge, em sua essência, na dialética social, ou seja, há direito não só interna, mas internacionalmente; não somente na superestrutura, mas na infraestrutura; não apenas sendo produzido pela classe dominante, mas também pelos dominados etc.

Desse modo, o autor responde à pergunta “o que é direito” sem se limitar à visão legalista, positivista, remetendo a questão à práxis, “porque o Direito não é uma coisa ‘fixa’, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente”36.

Assim, para o autor, “o direito não ‘é’; ele ‘vem a ser’”37; direito é “aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão novas conquistas”38. LYRA FILHO resume que o direito:

se apresenta como a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda. Por isso, é importante não confundi-lo com as normas em que venha a ser vazado, com nenhuma das séries contraditórias de normas que aparecem na dialética social. Estas últimas pretendem concretizar o Direito, realizar a Justiça, mas nelas pode a oposição entre a Justiça de classes e grupos dominadores, cuja ilegitimidade então desvirtua o ‘direito’ que invocam.

Ou, ainda, direito: é processo e modelo de liberdade conscientizada ou conscientização libertadora, na e para a práxis transformativa do mundo; e não ordem social (que procure encerrá-lo ou detê-lo), nem norma (que bem ou mal o pretenda veicular), nem princípio abstrato (que o desvincule das lutas sociais e concretas), nem apenas lutas luta social e concreta (que desconhece os limites jurídicos de uma práxis transformativa do mundo e reivindicadora de direitos sonegados: não se conquistam direitos pelo esmagamento de direitos) (...).39


6. APONTAMENTOS DA TEORIA CRÍTICA NA INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA DO DIREITO

Vimos até aqui diferentes conceitos de direito, não só em divergentes enfoques dentro do positivismo, a partir da ótica da Teoria do Direito, mas também com a vertente mais diferenciada da sociologia jurídica, que busca uma análise do direito enquanto fenômeno dialético.

Neste momento, queremos, sucintamente, apontar a visão da Teoria Crítica do Direito na investigação do que é o direito, ou seja, qual a sua preocupação ontológica com o fenômeno jurídico.

Luiz Fernando COELHO, em sua obra Introdução à crítica do direito40, diz que “o problema ontológico da juridicidade é falso problema que a filosofia do direito criou, em seu papel ideológico de reforçar a imagem do direito como algo que ‘existe’ e que portanto deve ser aceito com naturalidade”41.

Isso porque entende que o problema verdadeiro a ser abordado, e que as teorias até então não o fizeram, é o de buscar-se entender o direito a partir de uma “ontologia real”, quer dizer, a partir da sociedade concreta.

E nesta sociedade, para o autor, o direito “não é um ser, mas um conjunto ideologizado de princípios daquela realidade social, uma realidade construída pelo homem no processo histórico e em permanente transformação”42 e, acrescenta, que o problema de sua ontologia é falso porque a busca de seu entendimento como um direito-em-si apenas situa-se no plano da legitimação da práxis.

Assim, o olhar da Teoria Crítica do Direito é o de questionamento do ser jurídico, buscando um outro ponto de partida para analisar a ontologia do direito, qual seja, a busca do entendimento do direito “como prática social específica, na qual se manifestam os grupos sociais em suas interações históricas”43.

Citando ENTELMAN, COELHO apresenta o modo como a Teoria Crítica encara o fenômeno jurídico, como “prática social específica na qual estão expressados historicamente os conflitos, os acordos e as tensões dos grupos sociais que atuam em uma formação social determinada”44.

Assim, vemos que a postura da Teoria Crítica é não somente de questionamento e crítica do direito, negando-se a entender o direito como conjunto de normas, instituição burguesa. A Teoria Crítica adota também um entendimento e uma proposta para o direito a partir da prática social, proposta esta de verdadeira intervenção na realidade.

A partir disto é que ela, enquanto teoria, busca reclamar um novo estatuto epistêmico para o direito, de modo a compreendê-lo, explicá-lo e conceituá-lo em sua flutuação histórica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que é “direito”, ou um conceito único e definitivo de direito é algo difícil de se conseguir alcançar, nada pacífico nem entre as várias ciências e a filosofia, quando se propõem a analisar o problema, nem entre as inúmeras vertentes que cada uma delas possui.

Assim, vimos que mesmo entre expoentes do positivismo, KELSEN, HART e BOBBIO, não existe uma única idéia sobre o conceito de direito. Embora todos perpassem a esfera da normatividade e da coatividade como elementos fundamentais da definição, cada um, a seu modo, analisa o fenômeno de maneira diferenciada.

Por outro lado, o enfoque filosófico, sociológico e dialético de LYRA FILHO apresenta uma outra visão do fenômeno jurídico, mais completa, por encarar o fenômeno em sua totalidade e por entende-lo como processo em constante movimento.

Já a proposta da Teoria Crítica do Direito quanto à questão ontológica do direito é de uma análise que o entende como tendo sido até então encarado como um fenômeno de manifestação ideológica, devendo passar a ser encarado como fenômeno histórico e social, o qual, a partir da práxis, poderá ser redefinido. Ë neste sentido que Clemerson Cléve fala:

Da necessidade de um saber que conheça o direito como ele é, como vem se apresentando em sua história e concreção, para modificá-lo, não teórica, mas historicamente. As reconstruções ontológicas, neste caso, acompanharão as mutações históricas, e não o inverso45.

Entendemos que as várias definições que existem de direito são construídas a partir de posições éticas e políticas, que normalmente estão escondidas por trás de sua formulação.

Deve-se, quando da análise do conteúdo de uma conceituação, questionar-se sobre o local epistemológico de onde quem a elaborou fala, negando-se qualquer pretensa neutralidade científica, hoje já desmitificada, que possa ser envocada.

Concluímos que para se ter um conceito de direito é importante não simplesmente aderir a determinada concepção apresentada por um ou outro clássico, mas captar a especificidade do direito contemporâneo, conhecendo-o em suas várias manifestações e, a partir disso, articulá-lo com as várias lutas que são travadas na sociedade, de modo a percebê-lo como objeto que se localiza espacial e temporalmente, compreendendo, assim, “sua flutuação histórica e a possibilidade de sofrer transformações”46.


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Notas

  1. COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1991, p. 176.
  2. Cf. os ensinamentos de MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: Livraria Martins, 1972, p. 29-59.
  3. André Franco Montoro, op. cit., indica, ainda, que na acepção de norma ou lei, direito pode indicar realidades diferentes quando se refere ao direito positivo e ao direito natural ou ao direito estatal e ao direito não-estatal. Cf. p. 34-37.
  4. RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 31.
  5. Apud MONTORO, André Franco. Op. cit., p. 38.
  6. Ë neste sentido que alguns clássicos como Aristóteles, Platão ou Santo Tomás de Aquino se utilizaram da palavra direito.
  7. Ou neo-positivista, já que foge ao positivismo legalista e propõe uma ciência do direito como uma meta-linguagem, como quer ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: Unisinos, 1998, p. 91.
  8. Cf. VENERIO, Carlos Magno Spricio. A concepção de democracia de Hans Kelsen: relativismo axiológico, positivismo jurídico e reforma institucional. Florianópolis: dissertação de Mestrado, UFSC, 1999, p. 67.
  9. YOKOHAMA, Alessandro Otávio. A eficácia como condição de validade da norma jurídica em Kelsen. Florianópolis: dissertação de mestrado, UFSC, 1999, p. 34.
  10. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 5.
  11. KELSEN, Hans. Idem, p. 6.
  12. KELSEN, Hans. Idem, p. 33.
  13. KELSEN, Hans. Idem, p. 33.
  14. Esta segurança coletiva, que tem como fim a paz, atinge o grau máximo “quando a ordem jurídica, para tal fim, estabelece tribunais dotados de competência obrigatória e órgãos executivos centrais tendo à sua disposição meios de coerção de tal ordem que a resistência normalmente não tem qualquer perspectiva de resultar” (KELSEN, Hans. Op. cit. p. 41).
  15. YOKOHAMA, Alessandro Otávio. Op. cit., p. 22.
  16. HART, Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkinan, 1994.
  17. BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo. Uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 107.
  18. As regras primárias têm os seguintes defeitos: incerteza, estaticidade e ineficácia.
  19. Que resolvem os defeitos de incerteza, estaticidade e ineficácia das regras primárias.
  20. ROCHA, Leonel Severo. Op. cit., p. 95.
  21. Cf. Oliveira Júnior, José Alcebíades de. Bobbio e a filosofia dos juristas. Porto Alegre: Fabris Editor, 1994, p. 33.
  22. OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 77.
  23. OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 115.
  24. OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 79.
  25. OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 115.
  26. OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 116. Importante acrescentar-se, ainda, que sendo o direito um discurso (e, como tal, um fato), as normas não são nada além do que comunicações linguísticas prescritivas, ou seja, enunciados para modificar a conduta humana. Assim, a jurisprudência de BOBBIO (dogmática jurídica) é apenas uma análise do discurso do legislativo. (Cf. GUASTINI, apud OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 116-117). Pode-se dizer, ainda, que a teoria do direito de BOBBIO, ao contrário do positivismo legalista, propõe uma ciência ciência do direito como uma meta-linguagem.
  27. LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1999.
  28. LYRA FILHO, Roberto. Op. cit., p. 86.
  29. LYRA FILHO, Roberto. Op. cit., p. 57.
  30. Cf. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 56-58.
  31. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 59.
  32. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 62.
  33. LIMA, Sérgio Roberto. Para uma teoria dialética do direito. Um estudo da obra do prof. Roberto Lyra Filho. Florianópolis: dissertação de mestrado, UFSC, 1995, p. 110.
  34. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 69.
  35. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 70.
  36. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 82.
  37. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 82.
  38. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 86.
  39. LYRA FILHO, Roberto. Pesquisa em que direito? Brasília: Edições Nair, 1984, p. 16-17.
  40. COELHO, Luiz Fernando. Introdução à crítica do direito. Curitiba: Livros HDV, 1983.
  41. COELHO, Luiz Fernando. Idem, p. 17.
  42. COELHO, Luiz Fernando. Idem, p. 17.
  43. COELHO, Luiz Fernando. Idem, p. 17.
  44. Apud COELHO, Luiz Fernando, 1991, p. 124.
  45. CLEVE, Clemerson Merlin. O direito e os direitos. Elementos para uma crítica do direito contemporâneo. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 134.
  46. CLEVE, Clemerson Merlin. Idem, p. 134.