O Crédito Tributário da Falência


Porwilliammoura- Postado em 07 março 2012

Autores: 
PESSI, Rosângela

Autora: ROSÂNGELA PESSI

ACADÊMICA DE DIREITO – CENTRO UNIVERSITÁRIO – UNIVATES (RS).

 O CRÉDITO TRIBUTÁRIO NA FALÊNCIA

1 INTRODUÇÃO

     Quando um empresário decide investir seu capital abrindo uma empresa, deverá ter em mente que esta não será uma empreitada nada fácil. Como atividade de risco, é necessário tomar algumas cautelas para evitar prejuízos e outras consequências mais drásticas, como a falência de seu empreendimento.

     O ponto de partida, será o planejamento. Para tanto, em especial o tributário, pois grande parte do faturamento das empresas é destinada ao pagamento de impostos; em vista disso, tal condição é primordial para o sucesso dos negócios, e especialmente quando se trata do Brasil, que ocupa a 14ª posição no ranking geral dos países com o maior percentual de carga tributária. Estudos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) revelam que a carga tributária brasileira cresceu significativamente em 2010, atingindo 35,04% do PIB. Da mesma forma, houve um crescimento de cinco pontos percentuais nos últimos dez anos, passando de 30,03% no ano de 2000 para 35,04% em 2010.

     Aliado a isso, é possível citar a complexidade da legislação tributária e principalmente a dificuldade de compreendê-la. As empresas devem cumprir inúmeras normas, porém não há em contrapartida um esclarecimento, nem tampouco um entendimento claro e preciso de tais obrigações.

     Assim, tal empreendimento, se não tiver um controle de custos adequado, somado às dificuldades supra mencionadas, começa a acumular dívidas (com o fisco, bancos, particulares, entre outros), pois não possui mais condições de honrar as suas obrigações no vencimento. Dessa forma, o resultado não poderia ser outro senão a falência.

     Portanto, o presente estudo visa a promover uma análise do tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro aos créditos fiscais, no âmbito do processo falimentar.

     Ao avançar no campo do direito, neste universo de leis e regras que se modificam praticamente a todo momento, quando há possibilidade de uma norma revogar a outra, prudente esclarecer quando se dá aplicação de uma ou de outra e buscar solucionar aparentes conflitos entre elas.

     Sob este aspecto, em especial, no que tange à Lei de Recuperação de Empresas e Falência em vigor desde 2005 e considerando que os credores não são tratados de maneira igual, devem ser observadas regras de classificação desses créditos, com o propósito de definir a ordem de pagamento, que deverá ser observada pelo administrador judicial.

   O crédito tributário (objeto deste estudo) precisa ser avaliado de acordo com a reforma do Código Tributário Nacional, promovida pela Lei Complementar nº 118/2008, sendo que este trabalho irá contribuir de modo a promover algumas considerações e reflexos quanto à questão da classificação dos créditos tributários na falência, também relativo aos juros e multas.

2 Referencial Teórico

    Diariamente, todos necessitam fazer uso de bens e de serviços, muitos deles indispensáveis à sobrevivência. Esses bens ou serviços, produzidos e colocados à disposição, são resultado da ação de empresários, que identificaram uma chance de lucrar, de modo a atender essa demanda de pessoas. Contudo, como toda empreitada humana, uma atividade empresária implica possibilidade de erro, fracasso ou mesmo insucesso, sem considerar o risco, inerente à atividade empresarial.

    Com isso, poderão vir a insolvência e a incapacidade de adimplir as obrigações, servindo, dessa forma, o patrimônio do devedor como meio para saldar as suas dívidas. Partindo-se desse pressuposto, para as empresas, empresários e sociedades empresárias, foram constituídos normas e procedimentos específicos para a solução dessa insolvência, instituídos pela Lei 11.101/2005 (Lei de Falências).

   Segundo essa lei, é no juízo do processo falimentar que se dá o concurso de todos os credores do falido, em que se realiza a arrecadação dos bens, verificam-se os créditos, pedidos de restituições e todos os interesses e negócios que envolvem a massa falida.

    Diante do exposto, necessário se faz descrever, primeiramente, noções gerais acerca do histórico da falência, a partir de uma evolução até a lei atual (Lei 11.101/1995), bem como analisar a questão da função social da empresa e os pressupostos para a decretação da falência.  Posteriormente, far-se-á a análise de aspectos relevantes sobre os tributos e a cobrança judicial destes, especialmente quanto à Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/1980). Ao final, o objetivo primordial da presente análise consistirá em examinar qual o tratamento é dado pelo ordenamento jurídico brasileiro em relação a esses créditos tributários dentro do processo falimentar.

2.1 A falência: evolução histórica, função social e pressupostos

    A palavra falência deriva do latim fallere. Falir significa faltar, enganar, ou ainda falha, defeito ou omissão. Nesse contexto, para que haja um entendimento maior sobre o tema em análise, faz-se necessário identificar alguns passos dessa trajetória e procedimentos.

     Em primeiro lugar, há de considerar-se que as empresas são verdadeiros agentes da vida econômica das pessoas, sendo que a Lei de Falência (11.101/2005) tem um papel social a desempenhar, o que será abordado no decorrer deste capítulo.

2.1.1 Evolução histórica sobre o direito falimentar

   Como forma de atender às suas necessidades físicas e psicológicas, desde os primórdios, o homem já promovia a troca de seus excedentes de produção (conhecida como economia do escambo), no qual tudo o que era produzido ou conquistado além do consumido servia de objeto de troca com outros grupos (CAMPOS FILHO, 2006).

    A disciplina de direito comercial, consagrada pela Lei das Doze Tábuas em Roma (Lex decemviralis), permitia que a própria pessoa do devedor constituísse a garantia, no caso de uma dívida, possibilitando, inclusive, a escravidão. Tão logo ocorresse o reembolso, o credor se comprometia a libertá-lo. Em não ocorrendo o pagamento devido, esse devedor era colocado sob ferros e apresentado a três mercados sucessivos. Caso ninguém se apresentasse para saldar a dívida, esse devedor poderia ser morto, vendido ou então conservado por tempo indeterminado na prisão.  Tal sistema manteve-se até o ano 428 a.C. (GUIMARÃES, 2007).

     Ao desaparecer o empenho real do corpo, o meio agora do credor garantir o seu crédito era tomar posse dos bens para vendê-los publicamente, fazendo-se necessária uma sentença prévia. A verdadeira intenção dessa detenção era uma espécie de penhor (pignus proctorium), que se manteve até 737, quando a Lex Julia introduziu a cessio bonorum. Sob esta ótica, o devedor entregava seus bens aos credores e, na ausência de convenção, estes eram vendidos e o preço distribuído pro rata, na proporção dos créditos, respeitando garantias ou hipotecas. Segundo Bento de Faria apud Guimarães (2007), esta pode ser considerada uma das formas rudimentares do processo de falência.

    Da mesma forma, Mendonça apud Guimarães (2007) assinala que o concursus creditorum possuía causas determinadas, tais como: a possibilidade do devedor entregar a seus credores a totalidade de seus bens; os bens não serem suficientes para pagar a importância dos créditos; se o devedor fugisse ou se fosse provável a insuficiência dos bens perante as dívidas. Com a abertura do concurso, requerida pelos credores, que tinha como regra primordial a igualdade (par conditio creditorum), formava-se a massa, administrada por um curator bonorum, nomeado pelos credores e confirmado pelo juiz.

    Assim, estabelecia-se a classificação dos credores em diversas categorias, tais como: massa reivindicante, credores separatistas, credores da massa e credores quirografários. São esses os traços da falência hodierna, na Idade Média. A cidade de Veneza (na Itália) é referida como sendo a mais antiga em termos de legislação falencial (GUIMARÃES, 2007).

     Nesse diapasão, o direito italiano, conforme leciona Carvalho de Mendonça apud Campos Filho (2006) foi o laboratório da falência moderna, onde já havia a designação de síndicos, seqüestro dos bens e livros do devedor, o balanço, a verificação do ativo e do passivo, a privação do falido da administração de seus bens, entre outros, contudo não havendo até este momento distinção entre comerciantes e não-comerciantes.

    Partiu de Luiz XIV, em 1673, a primeira tentativa de codificação do Direito Comercial moderno, porém, somente através do Código Napoleônico, em 1807 que a falência foi disciplinada exclusivamente aos comerciantes, a qual serviu de base às elaborações das leis em outros países, dentre eles o Brasil em 1850 (GUIMARÃES, 2007).

    Segundo Oliveira (2005), o direito falimentar brasileiro desenvolveu-se em cinco etapas sendo a primeira delas à época do descobrimento do Brasil. A primeira ordenação foi a Afonsina, mais tarde revista por D. Manoel, passando a ser chamada de Ordenações Manoelinas, a qual submetia o devedor a rigor excessivo. Caso o devedor quisesse evitar sua prisão, poderia fazer cessão de seus bens.

     Posteriormente, ainda segundo o mesmo doutrinador, em 1603 surgiram as ordenações Filipinas, que abrangiam a Espanha e Portugal, ficando delineado o direito falimentar. Nessa fase, o devedor condenado por sentença transitada em julgado, era executado e tinha seus bens penhorados. Caso não fossem localizados bens, o devedor era recolhido a cárcere privado, e optando por fazer a cessão era então liberado.

     Nessa época, foram expedidos inúmeros alvarás, sobressaindo-se o editado pelo Marquês do Pombal em 13/11/1756, considerado com o ponto de partido da instituição falimentar do direito pátrio, eis que este punia o crime falimentar e regulava a falência culposa e inocente (OLIVEIRA, 2005).

2.1.2 Noções gerais sobre o direito falimentar

     Conforme Coelho (2009b), a partir do início do século XXI, não se admite mais a escravidão do devedor inadimplente. No estado capitalista contemporâneo, caso não houver o pagamento de uma obrigação, o credor pode buscar o auxílio do Poder Judiciário (apresentado o seu título) e promover a execução dos bens pertencentes ao devedor, tantos quantos forem necessários para suprir esse débito. O problema ocorre quando o patrimônio do devedor não é suficiente para fazer frente às suas dívidas.

     Nesse caso, quando ele deve mais do que possui, o mesmo doutrinador enfatiza que a regra da individualidade da execução torna-se injusta, pois esta não dá aos credores de uma mesma categoria de crédito as mesmas chances. O credor que se antecipar provavelmente receberá a totalidade o seu crédito, enquanto os demais provavelmente nada receberão.

     Como forma de evitar essa injustiça, proporcionando a todos os credores as mesas chances de satisfação de seus créditos, o direito afasta a regra da individualidade da execução e prevê a obrigatoriedade da execução concursal, anteriormente denominada de execução "coletiva", a qual o autor entende por par conditio creditorum, que é o princípio básico do direito falimentar.

     Requião apud Oliveira (2005, p. 322), conceitua a falência:

[...] como um procedimento legal que enseja o constrangimento do devedor comerciante, de maneira sistemática e ordenada, que, não podendo pagar todos os credores, submete seu patrimônio a liquidação, de molde a que uns credores não recebam seu crédito em detrimento do crédito dos demais.

      Fazzio Júnior (2008) destaca que a decretação da falência do devedor unipessoal ou sociedade empresária caracteriza-se através de um estado de crise econômico-financeira, que fundamente a presunção de insolvência patrimonial.

     Coelho (2009a, p. 310) ainda acrescenta: "[...] sempre que o devedor é legalmente empresário a execução concursal de seu patrimônio faz-se pela falência".

    Segundo Oliveira (2005), a falência constitui-se de um procedimento de execução coletiva, onde os bens do falido depois de arrecadados são vendidos para satisfação de seus débitos, em razão do descumprimento de uma obrigação, tornando o devedor insolvente e originando a impontualidade.

    Sobretudo, Mamede (2008) destaca que a falência é um procedimento por meio do qual declara-se a insolvência empresarial, de maneira que liquida-se o patrimônio ativo e este serve para saldar o patrimônio passivo do falido, atendendo os princípios da celeridade e da economia processual. Assim, o processo deve ser célere, evitando-se ampliar os prejuízos com prolongadas controvérsias e, ao mesmo tempo, observando o princípio da economia processual, escancarado no artigo 75, parágrafo único, da Lei 11.101/1995, de maneira que não se perca tempo com formalismos inúteis, sem, é claro, deixar de respeitar os formalismos úteis e necessários aos trâmites legais.

2.1.3 Pressupostos do processo falimentar

    A partir do conceito de falência, torna-se possível analisar que esta possui três pressupostos imprescindíveis: 1) qualidade de empresário (artigos 966 e 982 do Código Civil Brasileiro); 2) insolvência; 3) declaração judicial (sentença) (OLIVEIRA, 2005).

    A previsão da Lei de Falência e Recuperação (Lei 11.101/1995) alcança, conforme Mamede (2008), todos aqueles previstos no artigo 966 do Código Civil (CC/2002), o qual considera empresário todo aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

    Quando o estado patrimonial de um empresário estiver demonstrando que seu ativo é inferior ao passivo, denomina-se insolvência. Para que o devedor empresário possa ser submetido à execução através da falência, Coelho (2009b) discorda de Oliveira (2005), afirmando que é indiferente a prova da inferioridade do ativo em relação ao passivo, não se fazendo necessário demonstrar o estado patrimonial de insolvência do devedor para se instaurar a execução falimentar.

    Esse doutrinador afirma que para fins que instauração da execução por falência, é necessário um dos fatos previstos em lei: impontualidade (artigo 94, inciso I da Lei 11.101/1995); execução frustrada (artigo 94, inciso II da Lei 11.101/1995) ou a prática de ato de falência (artigo 94, inciso III da Lei 11.101/1995). Para ele, mesmo com o ativo superior ao passivo, se ocorrer uma das situações acima referidas, o empresário poderá ter sua falência decretada. Destaca novamente que a insolvência é presumida, eis que os comportamentos elencados no artigo 94 da referida Lei de Falências são praticados por quem se encontra em insolvência.

    A falência deve ser declarada por sentença judicial, preferencialmente na jurisdição do local onde o devedor tem o seu principal estabelecimento empresarial. Dentre as obrigações do falido, sob pena por descumprimento, a lei impõe a necessidade de apresentar a declaração da sua falência, depositar os livros contábeis e o balanço financeiro e patrimonial, a conta dos lucros e das perdas, e o quadro de despesas com o intuito de mostrar a situação econômica atual do devedor e as causas que o levaram à falência (OLIVEIRA, 2005).

2.2 Abordagem geral sobre os tributos e a Lei de Execuções Fiscais

     Constantemente ocorrem apelos e reclamações oriundas de empresários que precisam carregar, na forma de tributos ou encargos, suas obrigações para que possam dar continuidade aos seus negócios. São inúmeras as situações que um empreendedor precisa enfrentar quando decide abrir uma empresa. Estudos do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) dão conta que as empresas brasileiras gastam cerca de R$ 20 bilhões só para cumprirem com as 97 obrigações acessórias que envolvem o pagamento de um tributo (dentre elas: guias, formulários, livros, etc.)

     O Brasil tem muitas leis e usa uma linguagem rebuscada demais, que deixa dúvidas quanto a sua forma de interpretação. O resultado não poderia ser outro, senão um verdadeiro emaranhado jurídico que, ao invés de promover o funcionamento das instituições, provoca o verdadeiro caos. Esse excesso de ordenações jurídicas é um atraso para o Brasil, e tal situação acaba por tirar a eficiência geral da economia.

    Como a questão tributária pode ser considerada uma verdadeira "teia", pois atinge toda a cadeia econômica, desde a produção à venda, afeta todos os brasileiros. Nesse contexto, e tendo a ideia de que o Direito Tributário possui relação direta com o Direito Comercial, uma vez que a atividade comercial é a base da incidência fiscal no país, o capítulo a seguir terá o propósito de identificar aspectos relevantes sobre os tributos, bem como a cobrança judicial destes, especialmente no que tange à Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/1980).

2.2.1 Os tributos e sua classificação

     Tributo, segundo Amaro (2009), é uma prestação pecuniária arrecadada pelo Estado, com o propósito de atender aos gastos públicos, onde no Estado de Direito a dívida de tributo está alicerçada como uma relação jurídica, onde a sua imposição se dá através da lei, na qual os indivíduos (contribuintes) contribuem para o custeio das atividades do Estado.

     O conceito de tributo é assunto de extrema importância, e inclusive a Constituição Federal (CF/1988) deixou esta tarefa para a lei complementar: Artigo 146: "Cabe à lei complementar: III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos"; e o Código Tributário (CTN), cumpre esta função exigida pela CF/1988, pois em seu artigo 3º estabelece: "[...] Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instruída em lei cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada" (SCHOUERI, 2011, p. 130).

    Segundo Jardim (2007), a expressão "prestação pecuniária" corresponde a uma obrigação de dar, numa conduta dotada de conteúdo econômico. De efeito, a "compulsoriedade", que consiste no nascimento da obrigação tributária independente da vontade dos sujeitos ativo e passivo do vínculo jurídico, não decorre de um acordo de vontades. Nesse aspecto, a compulsoriedade tributária difere das demais relações jurídicas, uma vez que sua incidência se dá no plano do nascimento da obrigação, pois no patamar da existência todos os liames do direito são compulsórios.

     Sobre o aspecto legal, Schoueri (2011) afirma a presença do princípio da legalidade, no sentido de que todos os elementos necessários para o nascimento dessa obrigação tributária devem estar previstos em lei. O referido autor, ainda, acrescenta que em caso de esquecimento por parte do legislador, não haverá tributo. Do mesmo modo, para este autor, a expressão "que não constitua sanção de ato ilícito" deixa claro que as multas e igualmente "receitas derivadas" não se confundem com o tributo, que não é uma pena, imposta a alguém que descumpriu um mandamento legal.

      Ainda, no que tange à expressão "cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada" diz respeito à Administração pública não poder dispensar, por sua vontade, alguém do pagamento do tributo, uma vez que o CTN não abre espaço para qualquer decisão da Administração quanto à sua conveniência. O mesmo autor adiciona que o administrado tem o direito de conhecer o modo como será feita a cobrança do tributo e os recursos que são colocados à sua disposição.

2.2.2 Relação jurídico-tributária

     O direito tributário em si é um direito obrigacional, pois conduz relações patrimoniais de débito, que ocorre entre mais de um sujeito, sendo que um deles é o ente público (DIFINI, 2008).

     Sabbag (2009) torna possível a compreensão da relação jurídico-tributária através de uma linha do tempo, quando estão claros os momentos fulcrais da relação tributacional, que obedecem a uma ordem cronológica. A hipótese de incidência tributária representa o momento abstrato, previsto em lei, capaz de produzir a relação jurídico-tributária. 

     Conforme o autor, o fato gerador é a materialização da hipótese de incidência, e representa o momento concreto de sua realização. Caracteriza-se pela concretização daquilo que anteriormente chamava-se de abstrato, compondo desta forma, o conceito de "fato". Dessa forma, com a realização da hipótese de incidência, haverá o fato gerador.

     Toda a obrigação tributária nasce a partir de um fato previamente descrito, cuja ocorrência, baseada na lei, é capaz de gerar àquela obrigação. O Código Tributário Nacional classifica a obrigação tributária em duas espécies: principal e acessória, onde o fato gerador da obrigação tributária principal é a situação definida em lei, como necessária e suficiente para sua ocorrência (artigo 114 do Código Tributário Nacional). Já o fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal (artigo 115 do Código Tributário Nacional) (AMARO, 2009).

     Difini (2008) afirma que o Código Tributário Nacional (CTN) confundiu na verdade, competência com capacidade tributária, pois em seu artigo 119 consta: "sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento". Para o autor, competência tributária é a aptidão para instituir tributos. Isso só as pessoas jurídicas de direito público têm (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Já a capacidade para ser sujeito ativo, não só as pessoas jurídicas de direito público têm, mas também as autarquias. Dessa forma, o sujeito ativo é o titular do pólo credor da obrigação tributária.

     Sujeito passivo é a pessoa que tem o dever de prestar ao credor ou sujeito ativo o objeto da obrigação. Conforme o artigo 121 do Código Tributário Nacional, sujeito passivo da obrigação principal "é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo ou penalidade tributária". Sujeito passivo da obrigação acessória, o artigo 122 preceitua: "é a pessoa obrigada às prestações que constituam o seu objeto" (AMARO, 2009).

     O contribuinte é quem pratica o ato, quem realiza o fato gerador da obrigação tributária principal. Entretanto, o mesmo doutrinador enfatiza que esta noção não é precisa, ao passo que o fato gerador não corresponde muitas vezes a um ato contribuinte, mas a uma situação em que este se encontra, ou com o qual se relaciona. Se esta relação entre o fato gerador e o sujeito passivo não estiver presente, mas tiver algum vínculo, tem-se a figura do responsável.

     A cobrança consiste na atividade de recebimento de determinado crédito. Quando se trata de entidades públicas, esta pode ser via judicial ou extrajudicial. A primeira forma de cobrança ocorre mediante aviso ao contribuinte (direta) ou por meio de exigência de prévia quitação fiscal para consumar-se certo ato jurídico (indireta). A segunda é feita em juízo, através de um título executivo, constituído por uma certidão de dívida ativa, devidamente inscrita, baseia-se no célere procedimento de que trata a Lei 6.830/1980, que será objeto de estudo no capítulo seguinte (PACHECO, 2009).

2.2.3 A cobrança do crédito tributário via judicial (Lei de Execuções Fiscais 6.830/1980)

     Ao tratar da expressão "execução judicial" faz-se necessário promover algumas considerações iniciais acerca do assunto. Conforme Pacheco (2009), a execução de que trata a Lei nº 6.830/1980 é totalmente distinta da execução administrativa, amigável, pois pertence ao direito processual, no capítulo da execução, e possui a mesma conotação de execução forçada usada pelo Código de Processo Civil (CPC) no seu artigo 566. Dessa forma, quando ocorre o ajuizamento de um pedido de cobrança do crédito do Poder Público ou de suas autarquias, devidamente inscrito, com base na respectiva certidão, segue-se a Lei nº 6.830/1980 e, subsidiariamente, o CPC.

     De acordo com Theodoro Júnior (2009), a nova lei de cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública tem por objetivo agilizar a execução fiscal, com procedimentos diversos da execução forçada comum de quantia certa, constante do Código de Processo Civil. Contudo, esse estudioso vislumbra dois grandes defeitos na referida lei, ele a classifica como incompleta, na medida em que, se interpretada à margem do Código de Processo Civil, poderá trazer inúmeros conflitos e dificuldades hermenêuticas; aliado a isso, os exagerados privilégios em prol da Fazenda Pública, que em sua opinião, esquecem do princípio constitucional da isonomia, em que todos deverão ter igualdade perante a lei.

     No caso da Execução Fiscal, somente a Dívida Ativa regularmente inscrita goza de presunção de liquidez e certeza (artigo 3º); portanto, a Fazenda Pública antes de ingressar em juízo necessita promover o acertamento de seu crédito, mediante o procedimento de inscrição, quando este passará a ter a liquidez e a certeza necessários para torná-lo válido e capaz de a partir dele extrair-se a competente Certidão de Dívida Ativa, que é o título executivo fiscal necessário para que a Fazenda Pública possa promover a execução em juízo (THEODORO JÚNIOR, 2009).

     Os créditos fiscais podem ser inscritos em dívida ativa nos termos da Lei 6.830/1980, e podem ser quaisquer créditos, tributários ou não tributários, sendo que para fins de aparelhamento da execução fiscal é irrelevante a natureza do crédito do Estado, uma vez que se pode promover a execução contra o contribuinte que não pagou o imposto, e contra o motorista responsável por acidente de trânsito que danificou o veículo do Estado (crédito fiscal não tributário) (COELHO, 2009a).

2.3 O crédito tributário na falência

     Apesar da classificação dos credores na falência constar no dispositivo da Lei 11.101/1995, em seu artigo 83, existem certos privilégios e garantias mais extensos do que desfrutam os créditos particulares, concedidos ao Poder Público para a satisfação de seu crédito tributário. O objetivo deste capítulo será examinar o tratamento dado pelo ordenamento jurídico brasileiro em relação aos créditos tributários na falência.

2.3.1 Ordem de pagamento na falência

     Com a decretação da falência, declara-se a insolvência empresária e constitui-se a massa falida, que é a própria expressão da universalidade de direito (universitas iuris), constituindo-se um juízo universal, sob a forma de uma execução coletiva. Dessa forma, suspendem-se as execuções individuais de cada credor, impedindo que ocorram prejuízos aos demais, visando a garantir que todos os credores, titulares de crédito de mesma natureza, sejam tratados em igualdade de condições (par conditio creditorum).  Justifica-se então, a formação do concurso de credores (concursus creditorum), elemento essencial da falência (MAMEDE, 2008).

     Entretanto, de acordo com o entendimento do mesmo doutrinador, a par creditorum evoluiu no sentido de reconhecer diferenças entre os credores, em função dos respectivos créditos. O concurso de credores tem a função de garantir que todos os credores, titulares de créditos de mesma natureza, sejam tratados em igualdade de condições, mas reconhece que na ausência de patrimônio suficiente, prefere alguns créditos em desproveito de outros. Nesse aspecto, revela o autor que o legislador considerou o interesse público na satisfação dos créditos submetidos a falência, determinando por comando legislativo soberano, que o juízo universal efetuará o pagamento dos credores por classes, ou seja, somente quando satisfeita completamente uma classe, passará ao pagamento da seguinte.

     Segundo Coelho (2009a), baseado na idéia de que os credores do falido não são tratados igualmente, faz-se necessário definir uma ordem de pagamento, a ser observada pelo administrador judicial, de acordo com a natureza do crédito. Conforme essa natureza do crédito, tem-se a ordem de pagamento nas seguintes categorias: a) credores trabalhistas, compreendendo todos os pagamentos devidos  pelo  empresário a seus  empregados  e  indenização  por acidente de trabalho; b) credores  com  garantia  real  até  o limite do valor do bem onerado; c) dívida ativa de natureza tributária ou não tributária (artigos 186, parágrafo 2º do CTN e 4º parágrafo 4º da Lei 6.830/1980); d) credores com  privilégio  especial; e) com privilégio geral; f) quirografários; g) titulares de direito a multa contratual ou penas pecuniárias por infração à lei administrativa ou penal; h) credores subordinados.

     O autor lembra que o administrador judicial, ao realizar os pagamentos, após atender as dívidas da massa e cumprir as restituições em dinheiro, deverá observar as preferências dessa ordem, contudo, reconhece a possibilidade de certos credores serem atendidos antes dos que o precedem. Menciona que há exceções ao princípio da universalidade do juízo falimentar e cita como exemplo a execução fiscal, sendo que se esta for mais célere que a falência, e o bem penhorado naquela é vendido, pode ocorrer que o Fisco receba antes dos credores trabalhistas ou titulares de direito real de garantia.

2.3.2 A classificação e privilégios do crédito tributário

     Se um tributo não for pago no vencimento, não resta à administração pública outra alternativa, senão inscrever o crédito em dívida ativa (artigo 201 do CTN). Os créditos contra a falida de natureza tributária sempre estarão inscritos em dívida ativa e compõem a segunda classe dos credores, ou seja, dos créditos públicos titularizados pelo Estado ou ente ao qual a lei concede garantias e prerrogativas, tanto aos créditos fiscais como aos parafiscais (COELHO, 2009a).

     Atendendo ao princípio da supremacia do interesse público, a lei confere especiais garantias e privilégios aos créditos tributários, confiando posição de superioridade do crédito tributário em relação aos demais, especialmente na falência (DIFINI, 2008).

     Sabbag (2009), por outro lado, afirma que apesar do crédito tributário ter privilégios significativos, este não é absoluto. De acordo com o autor, o legislador ordinário (referindo-se ao Código Tributário) disciplinou regras sobre os privilégios do crédito tributário, propondo soluções práticas aos casos em que há uma cobrança múltipla de créditos tributários, especialmente na falência. A regra impõe uma hierarquia e ordem de preferência, bem como classes e datas de vencimentos a serem observadas.

     Cumpre registrar também que, após a edição da Lei Complementar 118/2005, os privilégios da Fazenda Pública foram bastante reduzidos. Eis o artigo 186 do Código Tributário Nacional, com as devidas alterações:

Art. 186 - O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho.

Parágrafo único. Na falência:

I - o crédito tributário não prefere aos créditos extraconcursais ou às importâncias passíveis de restituição, nos termos da lei falimentar, nem aos créditos com garantia real, no limite do valor do bem gravado;

II - a lei poderá estabelecer limites e condições para a preferência dos créditos decorrentes da legislação do trabalho; e

III - a multa tributária prefere apenas aos créditos subordinados.

      Ocorre que antes daquela Lei Complementar, o referido artigo conferia ao crédito tributário posição claramente privilegiada. Com o advento dessa Lei Complementar além de igualar os créditos decorrentes do acidente de trabalho à mesma categoria dos trabalhistas, disciplinou o tema da falência, admitindo, nesse caso, que alguns créditos sejam satisfeitos antes mesmo dos tributários. Assim, os créditos extraconcursais preferem ao tributário (SCHOUERI, 2011).

     Amaro (2009) ressalta também que o crédito tributário dotado de privilégios, mas com exceções, não se sujeita a "concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento" (artigo 187 do CTN, com redação dada pela Lei Complementar nº 118/2005).

     Do mesmo modo, Schoueri (2011, p. 719) leciona que o crédito tributário não se inclui na massa dos credores, em caso de falência, não cabendo ao Fisco pedir a falência do devedor, "[...] seu crédito não é habilitado, ele goza de preferência". A execução fiscal corre independentemente do processo de falência, e também a propositura da falência não interrompe a execução fiscal, cabendo ao juízo da falência decidir sobre a preferência do crédito objeto da execução fiscal, nos termos do Código Tributário Nacional.

     Na visão de Amaro (2009), essa preferência é de uma pessoa sobre as outras: da União, em face dos demais entes políticos; e do Estado, do Distrito Federal ou do Território, em relação aos Municípios. A regra de concurso (depois de satisfeita a União, caso esta seja credora), se dará entre Estados, Distrito Federal e Territórios, no qual se houver mais de um credor, ocorrerá um rateio na proporção dos respectivos créditos. Posteriormente, satisfeitos esses eventuais créditos concorrerão os diferentes Municípios, igualmente na proporção dos seus créditos. Tal situação vem sendo questionada pela doutrina no que tange a constitucionalidade desse dispositivo, enfatizando que fere o princípio da isonomia entre as pessoas políticas, ao criar preferências de umas sobre outras, contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade do preceito.

     Schoueri (2011) acredita que não há nada da Constituição Federal que assegure a preferência do crédito de uma Pessoa Jurídica de Direito Público sobre outra, o mais adequado, em sua opinião, é assegurar a todas as Fazendas Públicas igualdade, repartindo-se o produto da execução entre elas, proporcionalmente ao crédito de cada uma.

     Para Sabbag (2009), é cristalina a violação ao princípio da isonomia, e não admite que se possa tolerar a quebra da isonomia federativa. Contudo, reporta-se à Súmula 563 do STF, cujo entendimento reside no fato de que, ao privilegiar a União, deu-se uma preferência em favor de todos os brasileiros, indistintamente, ao invés de se beneficiar apenas os nacionais de certos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.

3. Conclusão

     Percebe-se que o administrador judicial não pode fazer nenhum pagamento para o credor da falida sem observar as hierarquias e preferências entre as classes e subclasses. Contudo, se algum credor acaba recebendo em desacordo com essa hierarquia a inversão não se repercute na falência e não importa responsabilidade do administrador judicial. Por outro lado, este não deve pagar na classe dos créditos fiscais, o valor correspondente a penas pecuniárias ou multas tributárias, esse crédito tem natureza de subquirografário, e só poderá ser atendido após a satisfação dos quirografários e em concurso com o devido pelo empresário individual ou sociedade empresária com falência decretada, em razão de cláusula penal.

    Do mesmo modo, destaca-se que no caso de falência há uma exceção, já que haverá preferência para os credores com garantia real, contudo, afastada essa hipótese, nem mesmo a garantia real subsiste à pretensão do Fisco, uma vez que o artigo 184 do CTN preceitua que tampouco valem para proteção do credor as cláusulas de inalienabilidade ou impenhorabilidade, restando somente proteção dos bens absolutamente impenhoráveis (Lei 8.009/1990 c/c artigo 649 do Código de Processo Civil).

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