O garantismo jurídico e a refuta ao modelo tripartido do Estado


Porwilliammoura- Postado em 12 junho 2012

Autores: 
SILVA, Flávio Alexandre da

O garantismo jurídico e a refuta ao modelo tripartido do Estado

Movimento de sensível impacto na cultura jurídica, o Garantismo repercute de forma latente no ideário de nossos tempos. Oprimido por uma dogmática e hermética Teoria do Estado, e sobretudo, carente de idealistas independentes, o conjunto de princípios apregoados pelo movimento foi, a certa medida, desestimulado.

Ícones da cultura jurídica demonstraram afeição pelo ideograma vislumbrado através do garantismo, cada qual a seu modo, o que, naturalmente, somou-se a idéia primitiva, aperfeiçoando-a, esculpindo-a, moldando uma estrutura capaz de adequar-se as tênues nuances de uma sociedade multiforme, dinâmica, complexa e “globalizada”, seja sob o prisma econômico, cultural, axiológico ou étnico.

Não obstante a simpatia dos juristas, como se disse, o movimento não prosperou, o que, fundamentalmente, resulta do modelo a que se adstringe o Estado Moderno, mais precisamente, a idéia de tripartição dos poderes ou, como é mais apropriado, de funções.

Ainda que seja inadequado falar em uma teoria clássica do Estado, já que, na verdade, só há uma genuína teoria geral do estado (no que concerne ao Estado Moderno, evidentemente, já quem relação a gênese do Estado, muitas são as teorias), adotaremos esta denominação, por mera questão de brevidade, quando referirmo-nos a teoria que trata da tripartição de poderes/funções.

Dúvidas não há quanto a unicidade do Poder do Estado, que, por questões operacionais, tratou de fragmentar suas funções, delegando competências, e com isso estabelecendo esferas de atuação, pretensamente, independentes a harmônicas entre si. A grosso modo, à um segmento do Estado incumbe absorver e concretizar em normas (sentido lato) a vontade da sociedade, construindo, assim, um padrão cultural e social  de conduta, à esta função dá-se o nome de legislativo. Se há um poder de cria as normas, há outro que as aplica, in casu, fazendo o que tecnicamente se chama subsunção, que nada mais é que a adequação de um fato concreto a uma norma abstrata, em outras palavras, sempre que ocorre no mundo fenomênico um fato previsto em norma, ocorre a tal subsunção que, em princípio, é simultânea a ocorrência do fato, e esta atividade compete ao judiciário. Por fim, e não menos importante, uma das funções do estado é a de governar e, sobre tudo, fazer cumprir as Leis, especialmente em se tratando de Estados Democráticos de Direito, os quais, em tese, são a grande maioria em nossos dias (repito, em tese), esta é a denominada função do executivo.

O sintetizado modelo descrito tem como fundamento, a priori, um ideal estadista tido como transcendental, segundo o qual, somente o poder é capaz de frear o poder. Ao longo da história, muitas nações utilizaram este prisma, sob leituras peculiares, mantendo, contudo, sua essência. Assim, nos norte-americanos, por exemplo, falam em um teoria de freios e contrapesos, que nada mais é que a própria teoria clássica com uma “maquiagem” capitalista.

Em linhas gerais, o fato é que, o modelo tripartido parte do pressuposto de que o Estado pode (na verdade, para tal ideal, deve) segmentar suas funções sem perder a unidade do poder, o que propicia um sistema equilibrado, onde a equivalência de forças obsta a proliferação do despotismo, absolutismo ou qualquer outra manifestação radicalista, ofensiva a democracia e a República.

Outrossim, a realidade é outra. O modelo tripartido gerou um Estado burocrático, onde as esferas (poderes/funções) segmentadas atuam de acordo com princípios contrastantes, fazendo com que a harmonia, tão aclamada, resulte exclusivamente de atos de submissão e até mesmo subversão.

Com fulcro neste cenário é que surgiu o garantismo que, como o próprio nome está a indicar, volta-se, essencialmente, à garantir os direitos básicos e fundamentais do indivíduo,fazendo com que se apresentem no plano da eficácia fática, e não como mera ficção jurídica.

Em um visão um pouco mais aprofundada, a doutrina garantista guarda estreitas relações principiológicas com a segurança jurídica, na medida em que, para ambos, a alicerce sine qüa non da civilidade é o nível de segurança das relações sociais, que se traduz no grau de submissão da sociedade as normas e o grau de eficiência no Estado na aplicação da lei aos infratores, no primeiro caso, tem-se a ótica profilática (preventiva), já no segundo, vê-se o papel repressivo, punitivo, coibitivo, e é neste particular que se depreende a refuta do garantismo em relação ao modelo tripartido.

Com efeito, o ponto crucial do garantismo jurídico é a idéia de legitimidade da norma e do próprio Estado, em outras palavras, a ênfase do aplicador da norma recaí não sobre o tecnicismo legal, mas sim sobre o nível de confluência dos interesses tutelados em relação àqueles vislumbrados pela sociedade.

Porquanto, uma norma não é legitima pelo simples fato de ter sido editada sob a égide da estrita legalidade do processo legiferante, tal como apregoa o modelo tripartido, onde descabe ao judiciário apreciar a legitimidade da norma. Segundo o garantismo, uma norma é legítima quando efetivamente confluir com os interesses da sociedade, e mais que isso, esta é uma análise que cabe sim ao aplicador da lei, na verdade, é uma incumbência sua, como ponte entre o abstrato normativo e a concretude fenomênica.

Destarte que este raciocínio rompe com a sistemática da tripartição de poderes, já que nela, a função de dar feição aos interesses sociais elevando-os à normas jurídicas é função privativa do poder legislativo, e é neste processo que se aprecia a legitimidade, e não no momento da aplicação da norma, que é mero ato de subsunção.

Por certo, o garantismo não legítima o judiciário a legislar, mas expande sensivelmente suas perspectivas de intervenção em relação a eficácia das normas, na medida em que fomenta um juízo de adequação da norma positiva a verdadeira norma jurídica, vislumbrada pela sociedade, por esta razão, não há que se sustentar a o caráter privativo do legislativo no que concerne ao juízo de legitimidade, que passa a ser uma atividade solidária entre aquele poder/função e o judiciário.

Não obstante, imperioso destacar que, da mesma forma que não se admite a legitimação legislativa do judiciário, não há que se olvidar um conflito competências, significa dizer, não é que o judiciário possa estabelecer a norma, sob o prisma legal, sua função é submeter a norma legal ao crivo jurídico, que por sua vez resulta de um substrato cultural, étnico, político e social, e, após isso, determinar o sentido da norma, ou, como preferem os saudosos, o espírito da lei.

Em suma, a pretensão garantista é fazer da defesa dos direitos do indivíduo uma atribuição do poder do Estado, e não de uma ou outra de suas funções. Direitos não se limitam a prescrições legais, cuja aplicação seja um mero pronunciamento de legalidade, os Direitos são bens, são patrimônio real das pessoas, e por isso devem ser reconhecidamente legitimados, efetivados e concretizados, esta é a proposta do garantismo, um Estado (e não uma “parte” dele) que garanta a seus associados seus Direitos, tal e qual se espera a partir do Contrato Social, mesmo porque, com o monopólio da jurisdição, a autotutela é uma exceção, extremamente limitada.