O instituto da desapropriação em face da competência constitucional dos municípios para execução da política de desenvolvimento urbano


PorJeison- Postado em 18 dezembro 2012

Autores: 
NEVES, Karla Gama Ferreira.

 

O presente artigo pretende analisar, de forma sucinta, o instituto da desapropriação, enquanto instrumento de política urbana, em face da competência urbanística municipal definida pelo Pacto Federativo de 1988, bem como a pertinência do art. 2º, § 2º do Decreto-lei 3.365/41, Lei Geral da Desapropriação, no tocante à desapropriação para fins de reforma urbana.

 

Como sabido o adensamento populacional em áreas urbanas ocorreu de forma desordenada, ensejando, em contrapartida, a eclosão de problemas estruturais como a precariedade das vias de acesso, do saneamento e dos meios de transporte, a degradação do patrimônio histórico e paisagístico, a inexistência de áreas de lazer, a ocupação irregular do solo, entre outros.

 

Na tentativa de disciplinar o planejamento urbano, o uso e ocupação do solo e a ordenação urbanística da atividade edilícia, desenvolveu-se o Direito Urbanístico, cujo objeto é expor, interpretar e sistematizar as normas e princípios reguladores da atividade urbanística. E, nesse mister, foram desenvolvidos diversos instrumentos de atuação e intervenção do Poder Público na organização e na atividade urbana.

 

Dentre esses instrumentos, formas de adequação do direito de propriedade às bases do planejamento local, este artigo discorre sobre a desapropriação, que de uma maneira geral, pode ser entendida como o instrumento que se traduz na transferência compulsória de um bem do patrimônio particular para o patrimônio público municipal ou para outro particular, mediante uma reposição financeira.

 

A desapropriação urbanística, em seu dúplice aspecto, está constitucionalmente prevista no art. 182 da Carta Magna de 1988, que trata da desapropriação para urbanificação no § 3º, e da desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana no § 4º, do mesmo dispositivo. (HARADA, Kiyoshi. Desapropriação Doutrina e Prática. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2002.p47)

 

Em matéria de Direito Urbanístico, a desapropriação tem a importante tarefa de conformar a propriedade privada ao planejamento urbanístico, de modo a fazer com que imóvel particular faça parte de um projeto maior, adequado a interesses meta-individuais, no sentido de auxiliar na expansão da urbanificação, visando, sempre, o bem-estar e o interesse coletivo.

 

Assim é que a desapropriação urbanística torna-se instrumento imprescindível do administrador municipal para executar a política de desenvolvimento urbana, uma vez que a ordenação física e social da cidade se dá por meio dos planos de urbanização e reurbanização que se implantam mediante imposições extrafiscais, servidões administrativas, limitações de uso e principalmente pelas desapropriações.

 

A Constituição da República, diante da necessidade de ordenação das cidades, conferiu às Leis Orgânicas dos Municípios a competência sobre organização política, jurídica e administrativa do território municipal, com vistas ao cumprimento da função social da cidade. Essa competência abrange a definição da política urbana e sua implantação, pela via de um Plano Diretor, instrumento básico de política urbana, obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes (art. 182, § 1º, CF/88)

 

O Plano Diretor é decisivo para determinar as áreas urbanas consideradas subutilizadas ou não utilizadas e, portanto, sujeitas à aplicação dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, sendo que sua existência é obrigatória para a aplicação das penalidades previstas em caso de inobservância da função social da propriedade, quais sejam: o parcelamento ou edificação compulsórios (art.182, §4º, I), IPTU progressivo (art. 182, §4º, II) e a desapropriação para fins de reforma urbana. (art.182, § 4º, III)

 

Evidencia-se que as diretrizes gerais da política urbana têm de atender as especificidades e realidade local, sendo traçadas de modo a conjugar a Lei Orgânica Municipal e o plano diretor, cujo conteúdo deverá traduzir um planejamento amplo, atendendo os anseios da população local.

 

Resta clara a atenção e o cuidado do legislador em encarregar os entes locais da ordenação do espaço urbano na área sob sua administração, sendo esta uma competência privativa, que objetiva a concretização das funções sociais da cidade e da própria função social da propriedade urbana.

 

Ocorre que o Decreto-Lei 3.365 de 21 de Junho de 1941(Lei Geral da Desapropriação), estabelece em seu art. 2º, § 2º uma hierarquização entre os entes federativos, estabelecendo que os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, não havendo desapropriação ascendente. Nesse sentido o Supremo Tribunal Federal já decidiu nas seguintes ações: RE 172.816, MS 11.075, RE 111.079.

 

O referido parágrafo assim dispõe:

 

Art. 2º Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.

 

    

 

(...)

 

§ 2º Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa.

 

Oportuno é contextualizar a norma ao cenário histórico em que foi editada. O mencionado decreto-lei, denominado como a Lei Geral das Desapropriações, foi produzido quando ainda vigia a Constituição da República de 1937, caracterizada pela concentração dos poderes no Executivo. Importante lembrar que esta Carta Constitucional foi promulgada em 10 de novembro de 1937, período em que o país se encontrava no sistema interventorial do Estado Novo.

 

A Carta de 1937 feriu fortemente a autonomia municipal, cassando até mesmo a eletividade dos prefeitos, que passariam a ser nomeados pelo Governador do Estado, não prevendo qualquer colaboração de órgão local de representação local.

 

Resta, pois, patente que Decreto-Lei em análise seguiu as orientações vigentes a época, estabelecendo uma hierarquização entre os entes da Federação. No entanto, a tese deve ser analisada, atualmente, sob o foco do novo pacto federativo, inaugurado pela Constituição de 1988.

 

A Constituição de 1988 estabeleceu quea União, os Estados e os Municípios, componentes da Federação (Art. 1º da CF/88), possuem autonomia político-administrativa e competências diferenciadas. Com efeito, a estrutura política do país repudia a idéia de hierarquização entre os entes federativos.

 

Assim não basta uma singela interpretação literal do Decreto-lei nº. 3.365/41. Toda a matéria nele contida deve ser interpretada segundo critérios principiológicos informadores da nova ordem jurídica. Indiscutível é que a política de desenvolvimento e ordenamento urbano pertence à competência do Município, conforme disposto no próprio caput do art. 182 da CF/88.

 

A Constituição de 1988 afirmou o papel fundamental dos municípios na formulação de diretrizes de planejamento urbano e na condução do processo de gestão das cidades.

 

Reafirmando a competência urbanística municipal, foi promulgada a Lei Federal 10.257, denominada de “Estatuto da Cidade”, que regulamenta o capítulo II - Da Política Urbana - da Constituição da República.

 

A nova lei, com certeza, presta-se a dar suporte jurídico ainda mais consistente e inequívoco à ação dos governos municipais no enfrentamento das graves questões urbanas, sociais e ambientais que vêm diretamente afetando a vida da enorme parcela de brasileiros.

 

Assim, diante das discussões tecidas e após constatar que a desapropriação é um instrumento de suma importância para definição de políticas urbanas, bem como após analisar a competência urbanística municipal, em especial no caso do Art. 182 da Constituição da República, é possível concluir pela inaplicabilidade do art. 2º § 2º do Decreto lei 3.365/41 nas desapropriações urbanísticas.

 

Não se pode deixar de mencionar que a legislação vigente não põe fim às discussões suscitadas por este artigo, sendo que nem mesmo o Estatuto da Cidade trouxe soluções claras para as questões relativas aos possíveis confrontos entre os entes federados nas desapropriações urbanísticas, sendo, portanto, de suma importância o método de interpretação histórico-evolutivo, para alcançar a conclusão ora apresentada.

 

Referências 

 

HARADA, Kiyoshi. Desapropriação Doutrina e Prática. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2002.

 

FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana noBrasil. 1 ed.Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

 

Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.41206&seo=1>