O novo estupro de vulnerável como crime hediondo: uma análise comparada de seu histórico sócio-jurídico e da problemática de sua aplicabilidade


Porbarbara_montibeller- Postado em 02 maio 2012

Autores: 
CARVALHO, Aidi Lucena;
REGO NETO, Bertoldo Klinger
SANTOS, Filipe Franco

Sumário: Introdução; 1 Da presunção de violência ao estupro de vulnerável; 2 A consolidação do estupro de vulnerável como crime hediondo; Conclusão; REFERÊNCIAS.

 

 RESUMO

 

O presente trabalho pretende fazer um estudo comparado sobre o antigo estupro mediante violência presumida (artigos 213, 214, 224), bem como as divergências doutrinárias e jurisprudenciais no seu enquadramento no rol dos crimes hediondos, e o surgimento do novo estupro de vulnerável, desenvolvendo uma análise sobre suas implicações na atual interpretação penal e também nas possíveis consequências socio-jurídicas de sua aplicação.

 

PALAVRAS-CHAVE

Violência presumida. Crime hediondo. Estupro de vulnerável.

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

O advento da lei 12.015/2009, que alterou substancialmente o titulo VI do Código Penal brasileiro, denominando-o agora de “Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual”, trouxe para o bojo do nosso ordenamento jurídico (precisamente no capitulo II – “Dos Crimes Sexuais Contra Vulnerável”) novos tipos penais que merecem um estudo acerca da mensuração de suas responsabilidades penais e, consequentemente, sobre a problemática das suas aplicações jurídicas.

A nova lei supracitada inclui os delitos de estupro (simples e qualificado) e o novíssimo tipo penal “estupro de vulnerável” no rol dos crimes hediondos, trazendo os gravames destes. Desta forma, apesar de ser uma modificação recente, já trouxe à baila interessantes discussões sobre o caráter objetivo do tipo encontrado no artigo 217-A, tendo em vista que este dispositivo tem como elementar a idade ou enfermidade da vítima, excluindo qualquer elemento normativo de sua redação. Assim sendo, o legislador resolveu pôr fim à divergência doutrinária decorrente da presunção de violência contida no revogado artigo 224 (uns defendiam a sua relativização e outras o seu caráter absoluto), enrijecendo faticamente o tipo em estudo. Porém, alguns doutrinadores entendem que o novo artigo não exauriu as contendas que envolvem tal crime, havendo sim, uma mudança do foco da discussão. Tal posicionamento é corroborado por GUILHERME NUCCI na medida em que este afirma que “o nascimento do tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência. Agora, subsumida na figura da vulnerabilidade [...]” [1].

 Mais do que transcrever as conjecturas doutrinárias, propor-se-á um entendimento das circunstancias sócio-jurídicas no momento da edição deste dispositivo, tal como uma reflexão a respeito da sua aplicabilidade e consequências nas relações fáticas. Também serão salientados os possíveis riscos que tal engessamento interpretativo pode gerar no âmbito jurídico (no que tange à responsabilidade penal e à segurança jurídica), assim como na configuração deste delito como crime hediondo, um a vez que havia entendimentos contrários acerca da hediondez dos pretéritos delitos.

 

 

1 DA PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA AO ESTUPRO DE VULNERÁVEL

 

 

O legislador de 1940, ao editar o capítulo referente aos crimes contra o costume, buscou oferecer uma proteção incisiva para aqueles indivíduos mais vulneráveis, desta forma, concretizou tal proteção no artigo 224 do então Código Penal, instituindo uma presunção de violência na prática sexual realizada por qualquer desses sujeitos. Desta forma, com o decorrer dos anos, tal proteção foi flexibilizada por argumentos pautados na evolução física e psicológica de crianças menores de 14 anos, afirmando que aquela presunção de violência elencada no dispositivo deveria ser relativizada dependendo do caso concreto.

 Assim sendo, a celeuma doutrinária e jurisprudencial que tratava da relativização ou não da presunção de violência, também desencadeava aplicações e interpretações divergentes no enquadramento desses ilícitos penais como crimes hediondos. Neste mister, iremos  agora estudar de que maneira essa presunção de violência era interpretada por essas correntes antagônicas nos casos de estupro ou atentado violento ao pudor contra aqueles sujeitos elencados no referido dispositivo.

Com efeito, deveremos primeiramente considerar a parcela doutrinária que defendia a presunção de violência relativa (iuris tantum), neste sentido, sustentavam esta posição utilizando o próprio texto normativo, uma vez que se fosse presunção absoluta o legislador teria expressamente determinado. Destarte, escreveu o respeitável professor MIRABETE, acerca da relativização da alínea “a” do artigo 224:

 “Alinham-se a favor da tese de que a presunção é relativa os seguintes fundamentos: as outras duas alíneas (b e c) tratam de presunções relativas, e não seria de se excluir a alínea a; a prevalecer à opinião oposta, a menor seria mais protegida até que o insano mental, que não tem nenhuma possibilidade de consciência; não há na lei menção expressa sobre a natureza da presunção, dando Hungria seu testamento de que foi eliminada do anteprojeto a expressão ‘não se admitindo prova em contrario’, que caracterizaria a presunção absoluta” [2].

 

Tomando com escopo este posicionamento doutrinário, uma parte da jurisprudência também convergiu em aplicar tal dispositivo de acordo com a análise iuris tantum, efetivando uma ponderação na interpretação sobre a violência presumida. Sendo assim, não se caracterizava crime em alguns casos. Podemos citar tal exemplo quando a menor de 14 anos aparentava ser mais velha, devido seu precoce desenvolvimento físico. Neste sentido, podemos citar o julgado do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, na Apelação Criminal nº 008920004580:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO - VIOLÊNCIA FICTA OU PRESUMIDA. Vítima que possui compleição robusta, aparentando ser mulher formada. Restou provado que o apelado foi por várias vezes procurado pela vítima, para com ele manter relações sexuais. O apelante é pessoa humilde que laborou em erro quanto a idade da moça que o procurava insistentemente para com ele manter congresso carnal. E da jurisprudência não configurar estupro, por violência presumida, quando a vitima, apesar da tenra idade, além de tomar a iniciativa para o ato sexual, apresentava ser mulher formada. Apelo improvido, a unanimidade. (grifo nosso).

 

Por outro lado, tínhamos os doutrinadores que entendiam que a presunção contida no artigo em questão possuía natureza absoluta (iuris et de iure), acreditando que se tratava de uma norma essencialmente objetiva, sem um elemento normativo que possibilitaria a interpretação discricionária do juízo. Em relação a esse ponto de vista, GRECO corroborava-o dizendo que aqueles que adotavam uma posição contrária

não conseguiam entender, [...], que a lei penal havia determinado de forma objetiva e absoluta, que uma criança ou mesmo um adolescente menor de 14 (quatorze) anos, por mais que tivesse uma vida desregrada sexualmente, não era suficientemente desenvolvida para decidir sobre seus atos sexuais.[3]

 

É certo que o legislador atual se inclinou com tal posicionamento, colocando um fim na presunção de violência. Com isso, objetivou uma maior responsabilidade penal editando o artigo 217-A (estupro de vulnerável) que traz na sua conduta o núcleo “ter”, afastando de uma vez por toda qualquer relativização. O fundamento utilizado por tal escolha consiste na necessidade de efetivar uma política criminal de proteção da dignidade sexual de indivíduos que ainda não possuem uma maturidade física e/ou psicologia frente às usurpações morais tão frequentes na sociedade hodierna: como na excessiva exploração sexual no âmbito doméstico, escolar, religioso e também na internet.

Desta forma, buscando romper com a antiga divergência sobre o caráter absoluto ou relativo da presunção da violência, o novo tipo não presume nada, a partir de agora “basta, portanto, que o agente tenha, efetivamente, conjunção carnal, que poderá até mesmo ser consentida pela vítima, ou que com ela pratique outro ato libidinoso.” [4]

Porém, não podemos esquecer que tamanha rigidez penal possivelmente pode ferir alguns princípios, como o da razoabilidade e da intervenção mínima. E como dito anteriormente, encerrou-se a discussão sobre a presunção, mas fica aberta a questão da vulnerabilidade. Nesse mister, NUCCI preleciona esta problemática por meio de uma indagação: “pode-se considerar o menor, com 13 ano, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada?”[5]. Desta forma, apesar da recente alteração ter buscado a supressão das divergências sobre este tema, é notável que permanece no âmbito doutrinário os posicionamentos ambíguos sobre esta temática.

A partir deste arcabouço teórico jurídico, iremos adentrar na perspectiva dos crimes hediondos sob a égide hermenêutica dos tipos penais abordados no corpo deste trabalho. Focalizando primordialmente a aplicabilidade e interpretação doutrinaria e jurisprudencial destes tipos (o revogado e atual) com a lei 8.072/1990(Lei dos Crimes Hediondos).

 

 

2 A CONSOLIDAÇÃO DO ESTUPRO DE VULNERÁVEL COMO CRIME HEDIONDO

 

 

 Antes de entramos no mérito central da discussão, far-se-á necessário uma abordagem sobre os crimes hediondos. A sua natureza jurídica esta diretamente vinculada a Constituição Federal de 1988, precisamente no seu artigo 5º XLIII, ditando que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia [...] os crimes definidos como hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitiram”. Desta maneira, em 25 de julho de 1990 foi editada a lei que regulamenta tal dispositivo constitucional, entretanto, esta norma tem caráter essencialmente dinâmico, e constantemente sofre alterações com fim de incluir no seu rol de incidências novas condutas que anteriormente não eram tratadas com tamanha reprovabilidade.

Neste sentido, podemos entender que “hediondo é o crime alarmante, pavoroso, depravado, horrendo, arrepiante, que causa indignação moral etc., isto é, crime que objetivamente mais ofende aos bens juridicamente tutelados” [6]. Logo, as consequências punitivas da pratica de delitos que se enquadram nesta moldura, consistem numa maior severidade penal e processual. Dentre essas sanções imposta pela LCH temos o impedimento da liberdade provisória, a imposição de se iniciar a pena em regime fechado e dentre outras.

A lei 12.015/2009 deu caráter hediondez ao estupro de vulnerável, porém, antes do advento de tal dispositivo, e diretamente correlacionado com a discussão da presunção de violência, eram levantados entendimentos contrários acerca da configuração ou não do estupro e atentado violento ao pudor (complementado pelo o artigo 224) como crime hediondo. O mérito se concentrava em quais circunstancias esses delitos possuíam tal “status”, ou seja, se a presunção de violência tinha o poder de tal taxação ou apenas na modalidade da violência real.

Foi justamente nesse campo da hermenêutica e consequentemente da aplicabilidade do artigo 9° LCH que recaíram as já mencionadas controvérsias. De um lado os que acreditavam que para a qualificação prevista no artigo 224 deveria haver uma violência real, e que só haveria crime hediondo nesta hipótese, uma vez que não poderia se usar da presunção para qualificar. Em contrapartida, o outro lado que defendia a incidência de qualquer hipótese para classificar como tal conduta repulsiva.

Retomando as considerações feitas sobre os elementos constitutivos do novo estupro de vulnerável, cessasse a divergência do artigo 9º quanto ao seu enquadramento no rol dos crimes hediondo, tendo em vista, a objetividade penal do tipo. Porém, de forma eloqüente, PLÍNIO GENTIL cita-nos a polêmica quanto à intertemporalidade que causou a nova lei, iniciando sua fala fazendo referência aos adeptos da presunção relativa da violência:

Para quem seguia essa corrente, a nova lei, punindo o estupro de vulnerável com pena mínima de oito anos de reclusão, é mais gravosa, devendo a lei anterior ultra-agir em relação a fatos praticados na sua vigência. Para os que, ao contrário, admitiam o aumento determinado pelo artigo 9° da lei 8.072/90 aos casos de violência presumida (resultando em pena mínima de nove anos), a alteração é benéfica, devendo o artigo 217-A, que prevê uma pena mínima de oito anos de reclusão, retroagir alcançando os crimes cometidos antes mesmo de sua entrada em vigor. Segundo esta última corrente, tratando-se de condenado com trânsito em julgado, caberá pedido ao juízo das execuções (art. 66, I, da LEP) para aplicar a lei nova mais benéfica.[7]

 

Além dessa problemática suscitada pelo referido autor, podemos levantar a questão indagada anteriormente pro Nucci no que concerne ao erro do tipo em circunstancia em que tal vulnerabilidade pode ser oculta pela aparência da própria vitima, tal dilema comprova que temos ainda muito a debater sobre esse novo instituto.

 

 

CONCLUSÃO

 

 

Finalizando todo o pensamento problematizado acima, frisamos que os efeitos da rigidez do tipo penal trazido à baila merece uma maior atenção quanto à responsabilidade penal, à segurança jurídica, e fundamentalmente à sua aplicação e interpretação pela justiça, tendo em vista que a nossa atual sociedade é marcada pelo dinamismo informacional, pela liberdade do dialogo e consequentemente uma maior familiarização da relação sexual.

Desta forma, apesar de ser notável a grande violência que sofrem crianças e adolescentes no nosso país, esta não deve ser combatida por meio de políticas criminais descriteriosas e generalizadoras, podendo punir de forma desrazoável pessoas que não necessariamente estejam ferindo a dignidade de outrem, algo que estaria incompatível com o nosso Estado democrático de direito.

 

 

REFERÊNCIAS

 

DE FREITAS, Jayme Walmer. Crimes hediondos: uma visão global e atual a partir da lei 11.464/07. Disponível em: http://br.monografias.com/trabalhos905/crimes-hediondos/crimes-hediondos...

GENTIL, Plínio A. B. O novo estupro e a lei dos crimes hediondos: problemas de sobra. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI106489,41046-O+novo+estupro+e+a+l...

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. vol. III. 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 18 ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei nº  12.015, de 7 de agosto de 2009.

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à Lei nº  12.015, de 7 de agosto de 2009, p. 37.

[2] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 18 ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2001, p. 448.

[3] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. vol. III. 7. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010, p. 512

[4] Ibid. p. 513

[5] NUCCI. Op. Cit. p.37.

[6] DE FREITAS, Jayme Walmer. Crimes hediondos: uma visão global e atual a partir da lei 11.464/07. Disponível em: Acesso em: 23 de mai. 2010.

[7] GENTIL, Plínio A. B. O novo estupro e a lei dos crimes hediondos: problemas de sobra. Disponível em: Acesso em: 24 de mai. 2010.