O Princípio da Humanidade: O repúdio a um passado vergonhoso


Porbarbara_montibeller- Postado em 20 junho 2012

Autores: 
RANGEL, Tauã Lima Verdan.

Resumo: Valendo-se das consequências advindas de um passado ainda recente e que acarretou as mais vergonhosas e abjetas chagas para toda a coletividade, o presente artigo adota como pilar fundamental a necessidade de discorrer acerca do denominado princípio da humanidade, destacando, mormente, sua maciça importância para o Direito Penal. De igual modo, trazer à baila a forte influência deste corolário para o cenário vigente, evidenciando toda a gama de idéias provenientes de suas bases e que regem a aplicação da pena como um sinônimo de re-introdução a sociedade e não como tortura ou qualquer outro meio cruel para se punir aquele que violou as normas penais.  Para tanto, é crucial trazer à baila todo o conjunto de fatos históricos, como é o caso do Holocausto, para compreender sua real necessidade.

Palavras-chaves: Princípio da Humanidade, Holocausto, Tortura, Ser Humano, Direito Penal, e Constituição Federal.

Sumário:I – Considerações Introdutórias; II – Substrato Histórico;III – Conferência de Genebra e o Princípio da Humanidade; IV – O Princípio da Humanidade e Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948; V – O Princípio da Humanidade e a Carta de Outubro; VI – Comento Final.

I – Considerações Introdutórias:

            O Direito sempre se destacou como uma ciência fortemente dotada por aspectos de mutabilidade e adequação as carências mais proeminentes da sociedade. Assim, é explícito que analisar a Ciência Jurídica como um conjunto de elementos pétreos e inalteráveis, estagnado ante as constantes e inevitáveis mudanças, é equivocado.  Logo, revela-se como de imperiosa necessidade de adotar como estande o brocardo jurídico “Ubi societas, ibi jus” que traz em sua essência a clarividente relação de interdependência existente entre a sociedade e o Direito. Para tanto, primordial se faz à avaliação de fatos históricos que influenciaram de modo substancial o aprimoramento das normas e, por extensão, o fortalecimento dos princípios como flâmulas a serem respeitadas e seguidas pelos operadores da Ciência Jurídica.


II – Substrato Histórico:

            É latente que um dos fatos mais importantes no desenvolvimento das bases e fundamentos que alicerçam o Princípio da Humanidade advém das grandes guerras do século XX, principalmente, a 2ª. Guerra Mundial. Foi entre os anos de 1939 e 1945 que as idéias de Hitler em busca de uma raça pura se desenvolveram, fortaleceram e geraram as mais vergonhosas consequências.  O sangue de milhões de inocentes, em um Holocausto estúpido e infundado, banhou a Europa e revelou o ser humano em seu lado mais primitivo e ao mesmo tempo mais maléfico, o homem como algoz do próprio homem.

Os direitos humanos foram extremamente suprimidos pelo fanatismo nazista e a dignidade da pessoa humana foi reduzido a um mero e utópico conceito, sem qualquer atuação, tendo como limite imposto, a vontade de um governante insano.            Em meio às práticas subumanas, ganham destaque os experimentos biológicos, isto é, as pesquisas científicas com a utilização de seres humanos, cobaias para os cientistas nazistas.

Desta feita, cumpre salientar que a razão motivadora para que a medicina se dedicasse ao campo eugênico foi à busca da sociedade perfeita, pois, segundo os nazistas, a inferioridade dos não arianos, não decorria de qualquer desigualdade social existentes, mas sim dos laços sanguíneos existentes, da etnia a que pertenciam. Logo, esse era a causa que motivava a inferioridade racial e que acarretava os problemas sociais. Portanto, o extermínio seria apenas uma seleção natural que traria benefício à sociedade.

            Um fato curioso, os médicos usavam até mesmo ambulâncias da Cruz vermelha, para demonstrar que as execuções se resumiam a um favor humanitário. Dentre os doentes incuráveis, sessenta (60) mil epiléticos, quatro (04) mil cegos, dezesseis (16) mil surdos, vinte (20) mil deficientes físicos, dez (10) mil alcoólatras, duzentos (200) mil deficientes mentais, oitenta (80) mil esquizofrênicos e vinte mil (20) mil maníacos depressivos foram executados.

   As experiências, lideradas principalmente pelo Dr. Josef Mengele, o “Anjo da Morte”, eram, essencialmente, de cunho genético. Esse médico atuou em Auschwitz, campo de concentração em que os judeus sadios eram contaminados, propositalmente, com o bacilo do tifo, na tentativa de criar vacinas (antídotos). Com o intuito de avaliar a resistência do corpo humano, médicos acionavam câmaras de alta e baixa temperatura, compostas por dezenas de prisioneiros. Essas práticas de hipotermia foram responsáveis por vitimar centenas de pessoas. Todos esses atos científicos compreendiam a política biológica defendida pelos nazis, que em nome da busca da raça perfeita, fizeram seres humanos como meras cobaias.   

III – Conferência de Genebra e o Princípio da Humanidade:

A Cruz Vermelha foi responsável por desenvolver diversas conferências que buscaram amparar o tratamento humanitário as vítimas de guerra, dentre estas se destaca a Conferência de Genebra, realizada no ano de 1929, que versa a respeito do tratamento dos prisioneiros de guerra. Em sua parte inicial, o artigo 4°. dispõe que todo o indivíduo que for considerado como prisioneiro de conflito bélico tem seu direito à honra, bem como ao respeito pela sua pessoa resguardados, ou seja, independente de serem considerados como prisioneiros de guerra, a honra e o respeito a dignidade sobrepujam tal condição e devem ser protegidos. Em face do esmiuçado, é pungente destacar que as diversas vítimas do programa genocida promovido por Adolf Hitler tiveram os preceitos básicos ultrajados e ofendidos, seja pela sucessão de medidas utilizadas, a exemplo de experiências médicas feitas pelos médicos do Regime Nazista, seja pelas condições a que foram condicionados.

Frente a isso, é salutar discorrer acerca das diversas experiências implementadas pelo Dr. Josef Mengele, o “Anjo da Morte”, que atuou no campo de Auschwitz. Entre elas, pode exemplificar a utilização de injeções de tintas de cor azul nos olhos de crianças ou ainda amputações de cunho diverso e cirurgias caracterizadas pela brutalidade acentuada. Incluí-se ainda a tentativa de, pelo menos uma vez, criar siameses de forma artificial, mediante a união de veias de irmãos gêmeos (Wikipédia, 2009). Esses fatos atentaram contra todos os ditames estabelecidos pela Cruz Vermelha e, por extensão, pôs em xeque o direito humanitário a ser garantido em tempos de guerras.

De igual modo, é latente a necessidade de incluir também a parte final do referido dispositivo que assegura as mulheres o tratamento que observe todas as suas relações sexuais, isto é, garante que não teriam seus corpos ofendidos, seja pelos soldados que as prenderem, seja por qualquer outra pessoa. Entretanto, cabe mencionar as denominadas experiências promovidas pelo Dr. Carl Clauberg que injetou uma sucessão de substâncias químicas no útero de milhares de mulheres de origem judia e cigana. Segundo é narrado, as vítimas passavam por um processo de esterilização oriundo das injeções que produziam uma dor extrema, sendo comum a inflamação dos ovários, espasmos estomacais e hemorragias internas.

Além disso, o Dr. Carl Clauberg posicionava homens e mulheres repetidamente durante vários minutos entre duas máquinas de radiografia apontadas aos seus órgãos sexuais. Contudo, a maioria das vítimas morria imediatamente e aqueles que conseguiam sobreviver, erma levados para câmaras de gás devido aos graves ferimentos causados pela radiação, serem considerados como um impedimento para o regresso ao trabalho forçado (Tortura.wordspress, 2009).

Outra médica nazista célebre pelas atrocidades cometidas, foi a Drª. Herta Oberheuser que se valia de injeções de óleo e evipan para assassinar suas vítimas, preferencialmente, crianças. Conforme é descrito, posteriormente, a médica retirava os órgãos vitais para análise. “O intervalo entre a injecção e a morte variava entre 3 e 5 minutos estando à pessoa perfeitamente consciente até ao último momento” (Tortura.wordspress, 2009).

É considerada como o indivíduo que fez as experiências mais repulsivas e cruéis já tentadas pelo ser humano, uma vez que o objetivo primordial era tão-só infringir dor em suas “cobaias”, pois, entre os objetos que utilizava estava a inserção de pregos enferrujados, lascas de vidro e madeira, desse modo, simulando as condições de batalha de um soldado alemão (Tortura.wordspress, 2009).

Por fim, cumpre ainda incluir nessa exposição respaldo garantido pelo artigo 4º dessa convenção e que afirma: ”Art. 4º. –(…) As diferenças de tratamento entre os presos são permitidas apenas se essas diferenças são baseadas na hierarquia militar, o estado de saúde física ou mental, as capacidades profissionais, ou sexo das pessoas que deles beneficiam”.

IV – O Princípio da Humanidade e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:

Ostentado como um dos mais maciços e substanciais nortes a serem defendidos e exaltados no século XX, o princípio da humanidade é considerado como a consolidação dos ideários comuns dos Estados no pós-2ª. Guerra Mundial. Tal concepção encontra pleno descanso quando se analisa sua pedra inaugural, qual seja a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada no ano de 1948, trouxe o substrato primordial que edifica o dogma em apreço.

 O documento supra buscou, em um primeiro momento, repudiar todas as mazelas produzidas no “Holocausto”. Isto é, o vergonhoso momento em que a ambição enlouquecida de Hitler em estruturar uma raça pura, submeteu os demais povos - precipuamente, os judeus, os deficientes físicos e mentais, os homossexuais e ciganos -, às situações mais abjetas e condenáveis já perpetradas por um ser humano, em toda a história da sociedade.  Desse modo, ainda no preâmbulo da Declaração é possível observar uma clara e maciça valorização a todas as premissas de dignidade e humanidade tão violados e ultrajados pelo conflito bélico de 1939-1945:

(...) Preâmbulo: Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum, (MJ, 2009).

Em seu artigo V, foi exaltado de maneira nítida e clara o princípio da humanidade, para tanto, a Assembléia Geral abarcou na redação dessa Declaração o preceito que: “Artigo V -Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Isto é, os Estados ao serem signatários de tal documento, assumem a responsabilidade de assegurar a vedação de qualquer tratamento ou mesmo castigo que submeta o seu humano a uma situação degradante ou desumana. No artigo subsequente, artigo VI, é ostentado pelo Documento de 1948 que: Artigo VI -  Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei”, ou seja, ao prever tal premissa, proibi-se um tratamento preconceituoso ou mesmo xenofóbico, pautado tão somente nas distinções e particularidades de cada povo ou nação.

V – O Princípio da Humanidade e a Carta de Outubro:

O artigo 11 da Declaração Americana de Direitos Humanos de 1969 – chamado também Pacto San José da Costa Rica – estatuiu em suas bases o repúdio ao tratamento baseado na tortura e aos meios cruéis, resguardando a honra e o reconhecimento da dignidade de cada indivíduo. Assim, urge trazer à baila a redação de tal dispositivo:

(...)Artigo 11 – Proteção da honra e da dignidade: 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. (FENAJ/2009)

  Fortemente influenciada por tais premissas, a Carta Magna esculpiu de maneira perspicaz no terceiro inciso do artigo 5°. que: “artigo 5°.: inciso III:Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante...” . Segundo Aras (2009), o constituinte, ao prever tal princípio, especificou indiretamente duas garantias processuais, quais sejam: 1ª. Garantia: O Processo Penal, em hipótese alguma, servirá como um simples “meio para a aplicação da pena de tortura ou da pena de morte ou para a sujeição de quem quer seja a tratamento desumano ou degradante, como sanção final”; 2ª. Garantia: O Processo Penal não assumirá “ele mesmo forma desumana, com procedimentos que exponham o homem a posições ou situações degradantes, torturantes ou a vexames”. Assim, transparece que todo qualquer ser humano é titula do direito ao respeito.

Logo, com fulcro nesse fundamento, é possível considerar que dessas garantias decorrem três providências que o Ente Estatal deve suprir: “a) processo acusatório de curta duração; b) limitação de causas de prisão anterior à sentença condenatória definitiva; c) separação dos presos provisórios dos presos condenados; d) tratamento distinto para as pessoas processadas (não-condenadas)”. (ARAS, 2009)

Outra manifestação do princípio da humanidade, é verificado no inciso XLIX, do artigo 5°., que assevera: “artigo 5°.: inciso XLIX: É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. Portanto, o processo penal retira do preso parte de sua liberdade, mas, em momento algum, toca sua dignidade. Desse modo, “mesmo preso ou condenado o homem preserva o direito personalíssimo à sua integridade física, moral e psíquica, com o que se vedam também formas de tortura mental e ameaças à sanidade intelectual dos imputados”. (ARAS, 2009)

VI – Comento Final:

Diante de tudo o que foi apresentado, é exequível constatar de maneira nítida a maciça importância do princípio da humanidade que permeia a Ciência Jurídica. As bases emanadas por este mandamento vedam a utilização das normas como simples e caprichosa manifestação da vontade do governante, submetendo os prisioneiros a tratamento torturante e cruel, a fim de resguardar a dignidade dos prisioneiros e a integridade física, psíquica e moral. 

Referências:

ARAS, Vladimir.Princípios do Processo Penal. Disponível no site:<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2416>. Acesso dia 18 de Abril de 2009, às 18h26min.

ASSIS, Rafael Damasceno. Do Direito Humanitário e o Princípio da Humanidade. Disponível no site:< http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/3837/DO_DIREITO_HUMANITARIO_E_O_PRINCIPIO_DA_HUMANIDADE>. Acesso dia 18 de Abril de 2009, às 19h16min.

CARDOSO, Rodrigo Eduardo Rocha.A primazia ao princípio da humanidade no Direito Penal contemporâneo em respeito à tendência constitucionalizante do Direito. Disponível no site:<http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2982/A-primazia-ao-principio-da-humanidade-no-Direito-Penal-contemporaneo-em-respeito-a-tendencia-constitucionalizante-do-Direito>. Acesso dia 18 de Abril de 2009, às 20h47min.

Carl. Clauberg. Disponível no site:<http://tortura.wordpress.com/ 2006/09/07os-medicos-nazis-2-dr-carl-clauberg/>. Acesso dia 18 de Abril de 2009, às 20h17min.

CARMO, Jairo Francisco do. Os herdeiros do Holocausto, onde estão?. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5566 Acesso dia 18 de Abril de 2009, às 20h35min.

COTRIN, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. Volume Único. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.

Declaração Americana de Direitos Humanos. Disponível no site:<http://www.fenaj.org.br/arquivos/convencao_americana_de_direitos_humanos.doc/>. Acesso dia 18 de Abril de 2009, às 21h50min.

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Disponível no site:<http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm/>. Acesso dia 18 de Abril de 2009, às 21h08min.

FIGUEIRA, Divalte Garcia. História. Volume Único. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

GAMA, Ricardo Rodrigues. Dicionário Básico Jurídico. São Paulo: Editora Russel, 2006.

Herta Oberheuser. Disponível no site:<http://tortura.wordpress.com/2006/ 09/07/os-medicos-nazis-3-dra-herta-oberheuser/>. Acesso dia 18 de Abril de 2009, às 20h30min.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: Teoria Geral. 5ª Ed. São Paulo: Editora Atlas, 2003.