O Sistema Penal Aberto e a Constitucionalização do Processo e do Direito Penal


Porrayanesantos- Postado em 02 maio 2013

Autores: 
GIANSANTE, Fábio Marchesoni

 

1. Contextualização do Estado Democrático na Globalização.

 

A globalização, apesar de acarretar uma ampliação no campo social e econômico, não permitiu a mesma evolução no campo público, implicando numa diminuição da atuação do Estado em sociedade, principalmente em países em desenvolvimento, como o Brasil[1].

 

Isto deve se ao fortalecimento da iniciativa privada na globalização em que a imposição do livre mercado implica num Estado Abstencionista, atuando apenas em situações excepcionais.

 

Neste sentido que jaz a absoluta desconformidade da globalização com o Estado Democrático de Direito, o descompasso com a lógica da economia de mercado juntamente com a corrupção que assola os países em desenvolvimento culmina na preponderância do crescimento econômico como um fim em si mesmo, viabilizando uma espécie de recolonização pelas forças financeiras e pelas empresas transnacionais[2].

 

Não há como negar que o fenômeno do constitucionalismo se vê minimizado frente à globalização, o século XXI tem como maior desafio a preservação das evoluções advindas do modelo democrático de organização política.

 

Segundo Marcelo Figueiredo “Seja como for, abstraindo por um momento a perversidade dessa teoria, que procura pasteurizar as culturas e tradições de cada povo; é certo que um dos desafios do constitucionalismo social especialmente na Brasil, está em conciliar eficiência e solidariedade social, fomentar os princípios da solidariedade e da subsidiariedade, como marco do federalismo de cooperação e garantir ao mesmo tempo, a participação popular, sem descuidar do desenvolvimento nacional” [3].

 

Nada pretende opor se as técnicas que venham incrementar o desenvolvimento econômico e social, entretanto num país em que o Legislativo está impregnado pela omissão legislativa, o Executivo descontrolado na edição de medidas provisórias auferindo verdadeiro caráter autoritário na condução da nação e o Judiciário tomado pela morosidade, deve-se necessariamente repensar qual o papel do Estado dentro do processo de globalização? E principalmente qual o papel do Direito Penal?

 

Ainda mais quando se percebe a prevalência dos interesses corporativos, em que grupos de pressão acabam por manipular os interesses pluralistas da nação em benefício de interesses particulares.

 

2.       Sistema penal fechado e sistema penal aberto.

 

Ao tratarmos de sistemas jurídicos abertos[4] devemos entender que superamos o caráter meramente positivista do direito e que esta modificação decorre da própria complexidade social, advinda da sociedade globalizada em que se torna inviável a adoção de um sistema penal fechado devido ao dinamismo das transformações sociais.

 

Conforme Chaves Camargo o procedimento adotado pelos sistemas fechados decorre da doutrina e da jurisprudência que buscam atualizar os preceitos legais, adaptando-a a realidade em sociedade [5].

 

Esta visão começou no fim do século XIX e tem inúmeras vantagens, como a uniformização da lei penal, vez que um sistema penal nada mais é do que um conjunto de teorias relacionadas entre si, com base filosófica, que se preocupa em construir uma visão sistematizada, procurando esclarecer a estrutura do crime, visando assegura que o mesmo não se transforme numa verdadeira loteria. Inviabiliza-se, assim, o arbítrio e o totalitarismo tanto do Legislativo como do aplicador do direito, neste ramo tão restritivo da liberdade individual.

 

O sistema fechado decorrente do período clássico tinha como alicerces a segurança jurídica e a eficácia, os penalistas, em razão do descrédito das ciências humanas (ciência do “dever ser”) por inviabilizar a validade científica de suas proposições, foram influenciados pelas ciências naturais (ciência do “ser”) baseadas no método da observação e na descrição de fenômenos físicos, ou seja, na relação causa e efeito.

 

Tudo isto influenciou o Direito Penal, o jurista é um homem do seu tempo e, portanto, a base filosófica adotada nesse período foi o positivismo naturalista newtoniano das ciências naturais, com relevância exclusiva do plano ontológico.

 

A lógica formal unida ao método dedutivo tornava a tarefa do jurista relativamente simples, vez que a este recaia a mera função de subsumir a premissa menor (o fato concreto) à premissa maior (lei), pelo simples silogismo extraia-se a conclusão.

 

O neokantismo do ano 1.907 representa o rompimento com a pretensão de reduzir a análise do crime à constatação de um fenômeno natural, de causa e efeito; resgatou-se o valor científico das ciências do “dever ser”, adequada ao Direito, vez que este perfilia-se as ciências culturais, consistente num método de compreender e valorar as condutas.

 

Propõe uma verdadeira ruptura entre o universo “do ser”, fenômenos da natureza, e o “dever ser”, referido aos valores; devendo manter-se separados, vez que apresentam métodos totalmente distintos, adotando como base filosófica o neokantismo, com relevância exclusiva do plano axiológico.

 

Conforme Chave de Camargo a doutrina dos elementos normativos do tipo, decorrente do neokantismo, implicou na abertura semântica das regras descritas nas leis penais, demonstrando a urgência na necessidade de concretizá-las através de decisões judiciais valorativas, não devendo o jurista restringir-se ao papel de mero aplicador da lei ao fato concreto.

 

Hans Welzel no ano de 1.931 propôs o sistema finalista com base filosófica na finalidade aristotélica, ou seja, no imperativo de que todos os atos são dirigidos a uma finalidade, razão pela qual a conduta é dotada de um fim, sendo vidente e não cega como nos demais sistemas. Apesar de intentar um verdadeiro avanço nas ciências penais o teologismo baseado no ontologismo welzeniano exacerbou as estruturas lógico-objetivas culminando em limites intransponíveis e insatisfatórios a solução de delitos decorrentes da criminalidade moderna[6].

 

Apesar das diferentes metodologias apresentadas nos diversos momentos históricos do Direito Penal, todas se mostraram insuficientes frente à criminalidade globalizada na Sociedade de Risco, uma vez que a falha não foi concebida pelo formalismo ou pelo relativismo ou pelo historicismo de sua medida ideal. Fracassaram na medida em que prestigiavam a manutenção e a consolidação de um direito positivista, calcado em um número limitado de axiomas, culminando em uma normatividade simbólica e em um Direito Penal esvaziado de sua legitimidade social, típica dos sistemas penais fechados.

 

Embora simplista tal metodologia, aparentemente, solucionava os conflitos penais, não se sabe se pelo fato das relações sociais serem mais simples nesse período. Os valores e bens jurídicos protegidos ainda eram os direitos e as garantias clássicas, não ensejando maiores complexidades na vida em sociedade, muito menos da ciência jurídica que se aplicava através de um dedutismo lógico.

 

Pode-se até cogitar de um sistema fechado face à análise crítica e tímida, na qual a sociedade se quer questionava aspectos como, a falta de eficácia e efetividade das normas jurídicas, ainda estavam por entender a capacidade possuidora de direitos e garantias. A intervenção social, a postura crítica de mudanças de valores, a globalização e a crescente força econômica determinam a mudança de rumos, flexibilizando aspectos positivistas a fim de aproximar-se cada vez mais o direito à sociedade [7].

 

Desse modo o sistema aberto do Direito Penal consiste numa aplicação mais adequada e satisfatória aos problemas atuais, ainda que ensejadora de novos parâmetros valorativos. Preserva os conhecimentos já adquiridos, respeitando diretrizes próprias do sistema penal, mas não de forma a impor um caminho definitivo, fechado, permitindo uma reeleitura que melhor se coadune com o caso concreto.

 

Busca-se, assim, a transformação da aplicação do direito, de uma lógica meramente formal para uma lógica argumentativa, sem o perigo de se reduzir a um subjetivismo ou de uma imprecisão científica.

 

Segundo Chaves de Camargo “o Direito Penal tem como objetivo de análise e aplicação ao contexto social, especialmente na denominada Sociedade de Risco atual, que mantém, para seu desenvolvimento, o fundamento do pluralismo ideológico. Este pluralismo determina, por sua vez, que na atuação do Estado leva-se em conta, no exercício do poder estatal, o pensamento da maioria, com respeito aos Direitos Fundamentais das minorias. Neste sentido, o sistema penal não aspira uma validade absoluta, mas deve estar de acordo com a estrutura ideológica-política geral, no qual foi elaborado e em função da mesma deve operar”[8].      

 

Razão pela qual impõe-se a necessidade de adoção de um sistema penal aberto, permeável aos valores e princípios constitucionais, tendo o Direito Penal a missão de revalidação dos valores vigentes em determinado momento histórico e, por consequência, a proteção de bens jurídicos determinada pelo agir comunicativo.

 

Somente dessa forma os juristas deixarão o apego as metodologias gramaticais, históricas ou jurisprudenciais, passando a aplicar a interpretação da norma jurídico penal, adequando os termos da lei aos vetores valorativos e principiológicos da Constituição, buscando-se no caso concreto verificar “a que se pretende reprovar”, introduzindo, assim, um sistema aberto apto a acompanhar as evoluções sociais, proporcionando um ambiente em que todas as relações jurídicas se desenvolvem [9].

 

Cabe ressaltar que em nenhum momento, ao propor um sistema aberto ao Direito Penal, se pretende acabar com os tipos penais formulados pelo legislador, com toda a base estrutural lógico-objetiva da ciência penal, apenas significa ter um referencial a mais ao sistema penal, buscando uma aptidão prática que para ser concretizada pode-se encontrar argumentação em outros pilares dinâmicos, alcançando conclusões não fechadas à realidade moderna.

 

É neste sentido que a ciência do Direito Penal torna-se interdisciplinar, viabilizando os influxos de outros ramos “do saber”, na construção de uma dogmática-jurídico-penal mais efetiva nos meios de prevenção e repressão da criminalidade moderna.

 

“Não se trata do abandono absoluto dos referenciais dogmáticos, mas a adaptação desta às características dos fatos que tem relevância para a ciência penal. Este sistema aberto é integrador por categorias valorativas, permitindo que novos conceitos surjam, decorrentes da definição dos conflitos sociais e, em conseqüência, determina a evolução social e o desenvolvimento da ciência jurídico-penal” [10].

 

3.      O sistema adotado pelo ordenamento penal pátrio.

 

O Código Penal Brasileiro de 1940 é marcado pela tradicional adoção do sistema penal fechado em que a interpretação da norma positiva é o meio adequado para solucionar os conflitos sociais, a metodologia jurídica calcada no tecnicismo-jurídico acaba por culminar num Direito Penal estigmatizador, operando como um sistema de exclusão social dos grupos marginalizados [11].

 

A crise de legitimidade deste sistema foi agravada com a proliferação legislativa e a falência do sistema penitenciário, acarretando um normativismo simbólico como resposta imediata ao clamor popular, sem que, entretanto, se concretize a justiça social e material.

 

Segundo Chaves Camargo a reforma de 1984 teve por objetivo a modificação deste sistema penal fechado, buscando harmonizar a dogmática jurídica-penal com a política criminal, pelo acolhimento em sua integralidade do princípio da culpabilidade como limite a pena [12].

 

Apesar de inovador os reflexos sociais foram mínimos, o apego ao tecnicismo jurídico acabou por isolar a aplicação da política criminal a uma mera fase de elaboração dos dogmas orientadores de todo o sistema penal. Portanto o baixo desenvolvimento da dogmática jurídico-penal-brasileira suprimiu a possibilidade de legitimação do Direito Penal brasileiro e por consequente inviabilizou a adoção de um sistema penal aberto.

 

Somente a partir da proclamação da Constituição Federal de 1988, denominada de “Constituição Cidadã”, a qual expressamente prevê no artigo 1º que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel da União, Estados, Municípios e DF, constituindo-se um Estado Democrático de Direito, tendo como fundamentos inerentes a nossa Federação, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como o pluralismo político.

 

Esta forma de Estado proclamada pela Constituição implica no necessário acolhimento dos princípios decorrentes dessa ordem social, acarretando no abandono do positivismo jurídico, devendo-se adotar uma argumentação permeada de valores e princípios constitucionais, vetores na aplicação da legislação infraconstitucional[13].

 

“A aplicação do Direito Penal brasileiro, nesse sentido, uma vez superada a fase positivista/jurídica, do sistema fechado, terá em conta, na análise dos fatos que sejam relevantes para o Direito Penal, os enunciados dogmáticos como juízos subjetivos de valoração, a fim de poder aplicar um tratamento de um determinado conflito social ou uma série de casos que necessitem de interferência do Direito Penal, dentro dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito” [14].

 

A Constituição Federal sob a ótica penal e processual penal formalizou princípios fundamentais que devem ser respeitados a fim de garantir uma proteção penal aos direitos fundamentais, em especial à liberdade individual, num controle social por meio de um processo formal, dentro de um Estado Democrático de Direito que vem formalizar o próprio direito material.

 

Assim o processo penal adquire grande relevo no constitucionalismo material, vez que seus procedimentos deverão necessariamente observar os direitos fundamentais, ou seja, o processo não existe por simplesmente existir, este deve sempre buscar a justiça [15].

 

O transcurso histórico demonstra, segundo Fernando Scarance, claramente que o processo penal é marcado por movimentos pendulares, ora preponderando as garantias do acusado, ora na busca pela eficiência repressiva do diploma penal, ressaltando que esta dicotomia frente a modernização deixou de persistir, havendo a convalidação de ambos os vetores na busca de um processo eficiente e garantista [16].

 

“Disso tudo extrai-se que o processo penal não é apenas um instrumento técnico, refletindo em si valores políticos e ideológicos de uma nação. Espelha em determinado momento histórico, as diretrizes básicas do sistema político do país, na eterna busca de equilíbrio na concretização de dois interesses fundamentais: o de assegurar ao Estado mecanismos para atuar o seu poder punitivo e o de garantir ao indivíduo instrumentos para defender os seus direitos e garantias fundamentais e para preservação a sua liberdade”.[17]    

 

A intervenção penal acaba por condicionada ao modelo constitucional, tem como limite a sua concretização os direitos fundamentais, atuando os princípios decorrentes da ordem constitucional como barreiras ao arbítrio do Estado, em especial na esfera da liberdade individual [18].

 

Certo é que o Direito Penal reflete diretamente na restrição da liberdade humana e por esta razão é que o processo penal deve necessariamente respeitar os direitos fundamentais do individuo, ainda que não haja um claro consenso definitivo tanto entre nações como em contextos históricos do que são esses direitos.

 

4.      A Constitucionalização do Processo e do Direito Penal.

 

É neste sentido que se discute a constitucionalização do Processo Penal e do Direito Penal, ambas estão ligadas a normatividade deôntica concebida aos princípios e valores constitucionais que, por consequência, operam como vetores a serem atendidos sob premência de declaração de inconstitucionalidade material, por não perseguir o espírito da constituição, da democracia e da vontade popular soberana.

 

E nessa íntima relação faz-se necessário que ambos caminhem juntos, apesar de independentes, em perfeita harmonia e integração, respeitando os ditames do Estado Democrático de Direito, numa nova concepção moderna, de abertura do sistema, a fim de que ambos os ramos possam veicular uma real efetividade ao sistema penal como um todo.

 

Diante de nova ordem social globalizada, econômica, organizada, a consolidação das dimensões de direitos fundamentais devem também ser observada nos ordenamentos penais e processuais penais, sendo que suas normas devem ser interpretadas e adequadas ao caso concreto, frente as relações sociais complexas, não mais aplicadas através de uma metodologia formal-dedutiva, meramente positivista, numa relação fechada entre a lei e o caso concreto, distante de alcançar a efetividade na solução dos problemas sociais.

 

No Direito Penal não se deve mais levar em conta tão somente a descrição do tipo penal pelo legislador, permite-se através de um sistema aberto considerar questões de política criminal, entrelaçada a dogmática jurídica-penal, bem como aplicação do princípio supra-constitucional da proporcionalidade. Segundo o qual a ponderação representa um balanceamento entre os interesses particulares, comunitários e públicos, em razão da inviabilidade de atendimento pleno e concomitante a todos, a proporcionalidade surge como instrumento de harmonização destes interesses aparentemente colidentes, operando como meio de acomodação de todos os direitos fundamentais [19].

 

Portanto a legitimidade da intervenção do Direito Penal, além dos aspectos formais (principio da legalidade, tipicidade, etc.) em qualquer campo da vida em sociedade, em especial no plano da criminalidade moderna, é condicionada pelo princípio da proporcionalidade, pautado pelas suas três dimensões: idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

 

Ao aplicar o sistema aberto ao Direito Penal abre-se uma possibilidade científica de analisar os novos problemas sociais de forma mais adequada à nova realidade, interpretando-se tais normais não mais de maneira rígida, mas conforme a aproximar a norma da realidade social, priorizando a dignidade da pessoa humana, como um valor fundamentar do Estado Democrático de Direito, bem como a noção de bem jurídico e fins da pena.

 

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