Os Direitos Humanos no Brasil e a Constituição de 1988: o desafio da efetivação dos Direitos Humanos


Porbarbara_montibeller- Postado em 07 março 2012

Autores: 
OLIVEIRA, Luciana Loureiro

Na escalada histórica dos direitos humanos, o Estado brasileiro assumiu,em 1988, posição democrática jamais experimentada em sua ordem jurídica.
A Carta de 1988, não por acaso cognominada “constituição cidadã”,rompeu com os resquícios de um antecedente ‘status’ autoritário, agregando a
essa conquista política valores sociais relevantes, indicativos da aceitação de uma pauta mínima universal de direitos relativos à pessoa.
Como fundamentos da República, entre outros, o constituinte adotou a cidadania e a dignidade da pessoa humana ( art. 1º, incs. II e III ). Como
objetivos da República, elencou a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade, cor ( art. 3º, incs. III e IV ).
Entre os direitos e garantias fundamentais, à guisa de exemplos, reforçou o princípio da igualdade entre os gêneros; ampliou o espectro das liberdades;
modificou o conceito de propriedade, impondo-lhe funções sociais; projetou novos instrumentos para a defesa de direitos ( mandado de injunção, ‘habeas
data’ e mandado de segurança coletivo ) ; impôs ao Estado a proteção do consumidor; consagrou ou estabeleceu novas garantias processuais penais e
cíveis; tornou o racismo crime imprescritível; realizou acréscimos aos direitos
sociais ( art. 6º ). O constituinte de 1988 contemplou, ainda, de modo detalhado, setores estratégicos para o desenvolvimento pleno da cidadania, agrupando-os sob o título “Da Ordem Social”, cujos objetivos expressos são o bem-estar e a justiça sociais ( art. 193 ). Deu atenção a relevantes aspectos do direito à saúde, à previdência e assistência sociais; fortaleceu o direito à educação, à cultura, ao desporto e ao desenvolvimento científico e tecnológico; vinculou a comunicação social ao respeito aos valores éticos da pessoa; reconheceu como pessoas em desenvolvimento a criança e o adolescente; perfilhou política expressa de proteção ao idoso, ao portador de deficiência e aos diversos agrupamentos familiares; adotou orientação preservacionista da cultura
indígena; e previu políticas diversas de proteção e restauração do meioambiente ameaçado ou degradado.
Assim, no plano normativo fundamental, conta-se com sistema de promoção dos direitos humanos dos mais completos do globo.
Todavia, se a evolução de 1988 foi marcante, do ponto de vista técnico, o mesmo não se pode dizer da perspectiva da efetividade dos direitos consagrados
na Constituição que, após quinze anos de vigência, revela numerosos dispositivos à espera de corajosa aplicação. Definitivamente, em tema de direitos humanos, a Constituição ainda não passou de ‘uma folha de papel’, no
dizer clássico de Lassale. É que o desafio da efetivação dos direitos mínimos à vida humana implica a imediata internalização da mudança de paradigma operado com a Carta _ do Estado patrimonial-individualista ao Estado fundado, quer se queira ou não, no valor supremo da dignidade da pessoa humana.
Em outras palavras, não é dado aos titulares dos Poderes constituídos discutir a legitimidade ou o acerto das disposições da Constituição Federal
de1988. Nada importa que a considerem hipertrofiada, inviável econômica ou politicamente, pois é a vontade do constituinte originário, definindo as bases de
uma nova sociedade, que há de prevalecer. No que tange à Administração, está sujeita irremediavelmente a concretizar as políticas públicas que a Carta impõe ( ex: universalização progressiva do ensino médio gratuito ), independentemente da concordância pessoal do ocupante temporário do Poder, de modo a atender o postulado Democrático do Estado de Direito. No que respeita ao Poder Judiciário, sobreleva a sua atribuição de guardião da integridade do Texto Constitucional, evitando que os seus legítimos propósitos originais sejam, dia-a-dia, esmaecidos por ingerências escusas,
motivadas por interesses inconfessáveis. Avulta, ainda, a necessidade de cada julgador, em cada decisão que prolatar, seja qual for o interesse em conflito,
aperceber-se do sentido da cláusula de dignidade da pessoa humana, a fim de adequar o direito aplicável às balizas constitucionais, pena de invalidade do
julgado e maior descrédito do Judiciário. Quanto ao Poder Legislativo, incumbe-lhe desempenhar a imprescindível tarefa de regulamentar os dispositivos da Constituição relativos à promoção dos direitos humanos. Vê-se, ordinariamente, que, malgrado a imensa quantidade de leis editadas todos os anos pelo Congresso Nacional, legisla-se mal no Brasil. A uma, por não se priorizarem os setores, ações e mecanismos que mais carecem de disciplina ( ex: a garantia do mandado de injunção ). A duas, por não se levarem em conta os anseios dos reais destinatários das leis, que são muitas vezes descartados, em benefício de interesses governamentais e ajustes meramente “politiqueiros”. Em suma, as omissões do Executivo, aliada à indolência do Legislativo e aos receios injustificados do Judiciário contribuem, em linhas gerais, para que as políticas de proteção e desenvolvimento dos direitos humanos, reclamadas ao Estado brasileiro na ordem interna e internacional, permaneçam em compasso lento.
Paradoxalmente, é no princípio da separação de Poderes que reside uma das garantias institucionais dos direitos humanos, como afirma o Prof. Fábio K.
Comparato2, na medida em que um tal controle recíproco ( ‘freios e contrapesos’) dificultaria os abusos de poder a que estão sujeitos os mandatários de cada uma das funções da República. Ocorre, porém, que, no Brasil, esta garantia institucional é demasiadamente frágil, força da tradição histórica de exagerada ‘harmonia’ e pouquíssima ‘independência’ entre os Poderes. A luta pela efetivação dos direitos humanos igualmente encontra obstáculo na visão distorcida que os governantes têm do custo-benefício da promoção social daqueles. O dogma de que o desenvolvimento econômico melhoraria,
 As garantias institucionais dos direitos humanos. naturalmente, o padrão de vida da população e lhe garantiria condições mínimas de cidadania produziu perversa concentração de renda, poder político e visibilidade social, legitimando, por outro lado, a inexistência de políticas
públicas concretas de inclusão e resgate das porções marginalizadas.
A construção prática dos direitos humanos é dolorosa porque depende de
uma conscientização política, a fim de estabelecer-se um diálogo
verdadeiramente democrático com os setores sociais de menor expressão
econômica, mas de imensa expressão social.
O Brasil conta, ainda, com uma peculiar desigualdade de acesso às conquistas constitucionais, devendo combater, a todo tempo, em duas frentes – garantir, à grande massa, ao menos, os direitos ‘animais’3 e, a outros segmentos, direitos mais ‘sofisticados’.
Na órbita interna, o Ministério Público, de feições tipicamente brasileiras, há de se destacar na advocacia dos direitos humanos, eis que suas atribuições têm íntima ligação com aqueles. Contudo, esta instituição pública, mas autônoma, não deve ser encarada como a panacéia de todos os males da República, e sim como precioso canal entre a sociedade e os Poderes Públicos, seja como promotor do consenso, seja de maneira a obrigar-lhes ao fiel cumprimento de seus misteres.
No plano internacional, são numerosos os textos influenciadores da Constituição de 1988, sobretudo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, integrante do sistema regional de proteção, nascida em 1969, e só em 1992 promulgada no Brasil ( Decreto 678 ).
Mas basta um olhar perfunctório sobre os tratados acerca dos direitos humanos para perceber que, apesar de seu enorme valor simbólico, pouco remanesce de sua força jurídico-normativa, na prática.
Muito de sua inocuidade nas ordens jurídicas internas dos Estados-Partes deve-se ao fato de que os tratados sobre direitos humanos, ao contrário, por exemplo, dos tratados comerciais ou econômicos, raramente contemplam ou nunca contemplam sanções de vulto para o descumprimento de suas normas. É certo que, se um dado Estado desobedece a determinado acordo aduaneiro, sofrerá, certamente, pesadas sanções de ordem comercial ( de boicotes e embargos a impedimento de receber empréstimos internacionais ). O mesmo não se vê nos tratados sobre direitos humanos, o que denota quão pouco interessados estão os Estados-Partes em fazer valer o instrumento simbólico que ratificam. A Convenção Americana, por exemplo, prevê ‘Relatórios’, ‘Recomendações’ e, quando for o caso, uma ‘Indenização civil’ para remediar a situação violadora dos direitos humanos. Dificulta, ainda, enormemente, o acesso do nacional à Comissão Interamericana e veda, peremptoriamente, o seu acesso à Corte Interamericana.
Assim, os casos que chegam a ser julgados pelos mencionados órgãos não resultam em sanções efetivas para o Estado Brasileiro ( como poderiam ser as de caráter econômico, as únicas capazes de constranger o País na ordem internacional nos dias atuais ). Isto, induvidosamente, contribui para que não se dê aos textos humanitários internacionais o sublime valor que deveriam gozar no ordenamento interno ( ao lado das normas constitucionais, conforme a fórmula aberta do art. 5º, §2º, CF ).
É preciso, noutras palavras, que os mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos possuam a capacidade de produzir vexame ao Estado- Parte que, detentor de condições para tanto, negligencie no combate às diversas formas de violação. Uma tal medida não fere qualquer soberania, pois soberano é somente o País que cuida, a contento, dos filhos seus. Ao lado disso, é imperioso criar adequada cooperação entre os Poderes da Nação, que privilegie, por princípio, a perspectiva comunitária, de modo a trazer à luz a Era Democrática de 1988. Fora daí, não há futuro para os humanos sem direitos.