Os limites do teto remuneratório na acumulação lícita de cargos e funções públicas e as transformações do Direito Administrativo: análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal


Pormarianajones- Postado em 26 abril 2019

Autores: 
Eduardo Daniel Lazarte Moron

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Editor responsável: Professor Associado Thiago Marrara.

REVISTA DIGITAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO - FDRP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – USP

Seção: Artigos Científicos

Os limites do teto remuneratório na acumulação lícita de cargos e funções públicas e as transformações do Direito Administrativo: análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Remuneration limits in lawful accumulation of offices and public functions and the transformations of Administrative law: analysis of the Brazilian Supreme Court cases

Eduardo Daniel Lazarte Moron

Resumo: A função pública submetida ao regime estatutário não foi preservada das recentes transformações do Direito Administrativo. Não somente o modelo jurídico constitucional em matéria de servidor público estatutário passou em período recente por alterações no texto constitucional, como também a interpretação dos dispositivos constitucionais, conferida pelo Supremo Tribunal Federal tem evoluído, coincidindo com o novo paradigma pós-positivista do Direito Administrativo. O presente artigo analisa o recente julgado do STF em sede de repercussão geral que afastou a observância do teto remuneratório quanto à soma das remunerações do agente público nos casos constitucionalmente autorizados de acumulação de cargos e funções para fins de incidência do artigo 37, inciso XI da Constituição federal. Analisando os votos proferidos, verifica-se que aspectos importantes foram debatidos a respeito das transformações do Direito Administrativo, com destaque para o novo paradigma pós-positivista que consiste na concretização dos direitos fundamentais. Por fim, no que diz respeito à metodologia utilizada, recorrese ao modelo analítico-dedutivo, tendo como parâmetro o Direito Constitucional aplicado.

Palavras-chave: Teto remuneratório; Acumulação; Transformações do Direito Administrativo; STF.

Abstract: The public function submitted to the statutory regime was not preserved from the recent transformations of Administrative Law. Not only has the constitutional legal model for public statutory servants passed in recent times due to changes in the constitutional text, but also the interpretation of constitutional provisions conferred by the Federal Supreme Court has evolved, coinciding with the new post-positivist paradigm of Administrative Law. This article analyzes the recent decision of the Federal Supreme Court with a general repercussion that removed the observance of the remuneration ceiling regarding the sum of the remuneration of the public agent, in the constitutionally authorized cases of accumulation of positions and functions for purposes of incidence of article 37, subsection XI of the Federal Constitution. Analyzing the votes, it is verified that important aspects were debated about the transformations of Administrative Law, with emphasis on the new post-positivist paradigm that consists in the realization of fundamental rights. Finally, with regard to the methodology used, the analytic-deductive model is used, having as parameter the Constitutional Law concretized.

Keywords: Remuneration limit; Accumulation; Administrative Law Transformations; Brazilian Supreme Court.

Disponível no URL: www.revistas.usp.br/rdda DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2319-0558.v6n1p246-262

Artigo submetido em: setembro de 2018 / Aprovado em: janeiro de 2019.

REVISTA DIGITAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO, vol. 6, n. 1, p. 246-262, 2019. RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 OS LIMITES DO TETO REMUNERATÓRIO NA ACUMULAÇÃO LÍCITA DE CARGOS E FUNÇÕES PÚBLICAS E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO ADMINISTRATIVO: ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Eduardo Daniel Lazarte MORON*

Sumário: 1 Introdução; 2 A natureza da relação jurídica entre os servidores públicos e o Estado; 3 As transformações do Direito Administrativo no contexto pós-positivista; 4 Evolução Constitucional do artigo 37, inciso XI (Teto Remuneratório dos Servidores Públicos); 5 Breves considerações sobre a permissão constitucional de acumulação remunerada de cargos públicos (artigo 37, inciso XVI); 6 Principais aspectos do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 612975/MT no qual foi fixada a tese de Repercussão Geral (Tema 377); 7 A discussão do julgado e a compatibilidade entre os dispositivos constitucionais em questão, segundo a concepção pós-positivista do Direito Administrativo; 8 Conclusão; 9 Referências bibliográficas.

1. Introdução

A evolução do Estado moderno para Estado de Direito Democrático e Social acarretou significativas mudanças na Administração Pública, perdendo espaço o perfil de prestador e assumindo um perfil de regulador. Embora, em um primeiro momento, essa evolução do Estado moderno na disciplina da Administração Pública e, consequentemente, do Direito Administrativo, não tenha atingido a função pública de vínculo estatutário, não é o que se verifica atualmente. Essa visão foi reforçada pela atual jurisprudência do STF em questões essenciais e paradigmáticas envolvendo servidores públicos submetidos ao regime estatutário, a exemplo do limite constitucional do teto remuneratório em se tratando de acumulação lícita de cargos e funções. Por outro lado, a Constituição Federal pós-positivista traz fundamentos que são relevantes para a República: a igualdade, a eficiência e os valores sociais do trabalho. Pode-se dizer que o Direito Administrativo sofreu os impactos dos preceitos póspositivistas, passando a se preocupar com a consecução desses preceitos e não apenas com satisfação dos interesses da Administração Pública. O objetivo deste artigo é analisar, em apertada síntese, o julgado do Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral que afastou a observância do teto remu- * Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 248 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 neratório quanto a soma das remunerações do agente público, nos casos constitucionalmente autorizados de acumulação de cargos e funções para fins de incidência do artigo 37, inciso XI da Constituição federal. Nos próximos tópicos, em algumas linhas gerais são abordadas a natureza jurídica da relação entre os servidores e o Poder Público, a evolução constitucional do artigo 37, inciso XI e como as transformações do Direito Administrativo, no contexto pós-positivista e na busca da concretização dos direitos fundamentais, incidem sobre a função pública estatutária. A incidência dessas transformações impõem uma nova vertente dessa discussão perante o Estado, tendo como parâmetro os fundamentos trazidos pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal quanto ao limite do teto remuneratório do funcionalismo público.

2. A natureza da relação jurídica entre os servidores públicos e o Estado

Na sua origem, a relação jurídica entre o servidor público e o Estado sofreu intensa influência dos institutos do Direito Privado, a exemplo do contrato de Mandato, Locação de Serviços e dos princípios dos contratos privados em geral. Tais categorias jurídicas não atendiam de maneira satisfatória a regulação jurídica entre o servidor público e o Estado. Atribui-se a Paul Laband a ideia de conciliar a relação jurídica entre o Poder Público e seus servidores com os princípios do direito público, identificando nessa relação um contrato de direito público sui generis. Nesse sentido, confiram-se as colocações de Laband (1901, p.119-120): A relação de serviço do funcionário público repousa sobre um contrato pelo qual o servidor se devota ao Estado, assume um particular dever de serviço e de fidelidade, engaja-se em um dever de obediência, e pelo qual o Estado, por sua vez, aceita tal promessa, assim como a singular relação de poder que lhe é oferecida, assegurando ao funcionário, em contrapartida, proteção e, também, sustento. Embora Laband possa ser apontado como o precursor da chamada “teoria contratualista”, não conseguiu explicar por que era permitido ao Estado alterar de forma unilateral os direitos e as obrigações dos servidores públicos, apesar de no início da avença o servidor poder discutir as regras contratuais, que, uma vez acordadas, fariam leis entre as partes. Acrescente-se a isso a crítica de Otto Mayer à tese contratualista, afirmando que o vínculo entre o Estado e o servidor público não decorria de um contrato de trabalho nem público nem privado (FREITAS, 2014, p.135). Em oposição à noção de contrato, Leon Duguit, Maurice Hauriou e Gaston Jéze afastaram o vínculo contratual para concluir que os agentes do serviço público na França submetem-se a uma situação jurídica legal e regulamentar. O sistema contratual não se faz presente em momento algum, pois não é um contrato que incorpora o agente ao serviço público e nem regula seus direitos e obrigações (FREITAS, 2014, p.137). MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 249 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 No Brasil, coube a Pontes de Miranda (1973) refletir sobre a natureza da relação jurídica entre os servidores públicos e o Estado, detendo-se na polêmica que acirrara os ânimos entre os adeptos dos regimes contratual e estatutário. Sobre esse aspecto, Pontes de Miranda (1973, p. 432) esclarece: “a relação jurídica é sempre bilateral, porque exige, pelo menos, dois polos, apenas a fonte da relação jurídica é que pode ser unilateral, bilateral ou plurilateral”. Pontes de Miranda reconhece que se trata de uma relação jurídica bilateral, por existirem dois polos, porém a expressão “bilateral” não deve ser confundida com a expressão “contratual”. Trata-se na sua visão de uma relação institucional, superando a noção de pura contratualidade. A visão trazida por Pontes de Miranda coincide com o posicionamento de Mayer e dos juristas franceses anteriormente citados, concluindo que a situação jurídica do servidor público propriamente dito é de índole estatutária ou legal (MIRANDA, 1973). Pode-se dizer que, no atual cenário constitucional e administrativo, a relação jurídica entre os servidores públicos efetivos e o Estado é estatutária, enquanto, para os empregados públicos, a natureza jurídica permanece contratual regida pelo Direito do Trabalho. Por fim, observa-se que a função pública estatutária esteve à margem das transformações recentes do Direito Administrativo. No entanto, esses novos paradigmas começam a influenciá-la.

3. As transformações do Direito Administrativo no contexto pós-positivista

Em termos gerais, o papel do Estado moderno tem passado por marcantes transformações afetando a Administração Pública e propiciando a reformulação de diversos institutos de Direito Administrativo. Tais mudanças provocaram a privatização de empresas públicas, a criação de Agências Reguladoras, a instituição de Parcerias Público-Privadas e a ampliação do Terceiro Setor por meio de Organizações Sociais. As transformações operadas nas estruturas do Estado moderno implicam novos desafios à Administração Pública, atuando de forma mais intensa na ordem econômica e social, deixando de lado uma atuação tópica e individualizada (BITENCOURT NETO, 2017, p. 210). Os traços gerais da Administração Pública do século XXI impõem uma reformulação de institutos do Direito Administrativo. É necessário tomar em conta que as transformações que afetam o Estado e a Administração contemporâneos não impedem o seu papel social. Em outros termos, é indispensável não desprezar os novos desafios que tais mudanças acarretam ao Direito (BITENCOURT NETO, 2017, p. 221-222). MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 250 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Nesse contexto, é preciso estabelecer uma relação entre o Direito Administrativo e o pós-positivismo, em que aquele passa a se preocupar com a concretização dos direitos fundamentais e não com a mera satisfação dos interesses da Administração Pública. A atuação da Administração Pública fundada na legalidade não condiz com o pós-positivismo, o qual busca a conformidade com todo o ordenamento jurídico. Em outros termos, a atuação da Administração Pública passa da legalidade para a juridicidade, incluindo a observância aos princípios constitucionais, direitos fundamentais e as finalidades públicas (DUARTE; CALEGARI; MARTINS, 2017, p. 193- 194). No pós-positivismo, os princípios constitucionais assumem um papel importante, pois é por meio deles que os direitos fundamentais são concretizados. Em relação ao Direito Administrativo, pode-se afirmar que a interpretação de diversos institutos se afastou da concepção positivista, fundada exclusivamente no princípio da legalidade para assumir uma concepção pós-positivista, sofrendo uma mutação para a juridicidade. A superação do paradigma da legalidade administrativa só pode dar-se com a substituição da lei pela Constituição como cerne da vinculação administrativa. A ideia de juridicidade administrativa resulta da interpretação dos princípios e regras constitucionais, inseridos no campo da legalidade administrativa. Com efeito, toda a sistematização da atuação da Administração Pública passa a ser delineada a partir da Constituição, segundo o sistema de direitos fundamentais e normas estruturantes do regime democrático (BINENBOJM, 2006, p.36-38). Observa-se que o Direito Administrativo, sob o viés pós-positivista, preocupa-se com a concretização dos direitos fundamentais e o ideário pós-positivista já reflete em algumas decisões do Supremo Tribunal Federal (DUARTE; CALEGARI; MARTINS, 2017, p. 210-211). No Brasil, a questão jurídica da função pública enfrenta um aspecto peculiar que é o tipo de federalismo adotado, no qual todos os entes detêm autonomia política, legislativa, administrativa e financeira. Nesse aspecto, cada ente federativo no exercício da sua autonomia pode legislar sobre matéria de servidor público, criação de cargos, regime e remuneração. Diante dessa autonomia, a disciplina da função pública apresenta-se desigual e desagregada, tanto para os servidores públicos quanto para a Administração Pública (GOMES, 2017, p. 50). Pedro Nunes em artigo sobre a reforma do emprego público em Portugal e a implementação de um novo paradigma de gestão pública no âmbito da Reforma da Administração Pública condizente com o Estado Moderno destaca a aproximação entre a Administração e os cidadãos, o fenômeno da transformação da Administração, um novo modelo de emprego público assente na separação das funções de autoridade e soberania, o mito do modelo de carreira, o qual se encontra em vias de extinção em quase todos os países desenvolvidos, pois exige uma regulamentação exaustiva com MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 251 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 sistema remuneratório estatutário diferenciado. O modelo de gestão por objetivos adotado na Reforma do Emprego Público em Portugal propicia às carreiras uma especificidade funcional própria e que cada categoria possa integrar diferentes posições remuneratórias. Com a presente reforma, eliminam-se os automatismos na evolução salarial e introduzem-se melhores mecanismos que permitem à Administração Pública concorrer no mercado de seleção e recrutamento de recursos humanos, na busca de melhores profissionais. Na reforma das remunerações, passa-se a premiar o mérito excepcional do trabalhador revelado na avaliação do seu desempenho e elimina-se a natureza automática e permanente de quaisquer suplementos remuneratórios (NUNES, 2008). As ponderações feitas por Nunes para serem implementadas no Brasil exigiriam alteração da Constituição Federal, gerando um intenso debate com relação aos direitos adquiridos e outros direitos fundamentais, sem falar que a mentalidade do gestor público e a realidade em termos de práticas enraizadas na Administração Pública inviabilizariam qualquer mudança radical em questões afetas à função pública brasileira. Voltando à realidade brasileira, a formatação jurídica da função pública estatutária parecia não ter sido atingida pelas recentes transformações do Direito Administrativo. Porém, em tempos em que se debatem as vantagens e desvantagens da Reforma da Previdência no setor público, a flexibilização da estabilidade do servidor público e um limite de teto remuneratório razoável para as carreiras públicas, o Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral passou a adotar a interpretação de que o limite do teto remuneratório previsto no artigo 37, inciso XI deve ser observado isoladamente em relação a cada cargo e função licitamente acumulável, conforme permissivo constitucional nos termos do artigo 37, inciso XVI.

4. Evolução constitucional do artigo 37, inciso XI (teto remuneratório dos servidores públicos)

O artigo 37, inciso XI na sua redação originária1 estabelecia tetos para todas as esferas e Poderes, permitindo que o legislador infraconstitucional adotasse subtetos. O dispositivo constitucional em questão observava o artigo 17 do ADCT2, autorizando a redução de remunerações sem violação à regra da irredutibilidade de vencimentos 1 Art. 37 [...] XI – a lei fixará o limite máximo e a relação de valores entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, observados, como limites máximos e no âmbito dos respectivos Poderes, aos valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, por membros do Congresso Nacional, Ministros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal e seus correspondentes nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, e, nos Municípios, os valores percebidos como remuneração, em espécie, pelo Prefeito. 2 Com efeito, o art. 17 do ADCT, inalterado até o momento, dispõe que “os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título”. MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 252 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 (art. 37, XV da CF/88) e ao direito adquirido, este inoponível perante o constituinte originário (FERRAZ, 2014, p.221). A redação originária, apesar de não utilizar a expressão “teto remuneratório”, estabelecia um limite às remunerações dos servidores públicos sem fazer menção à percepção acumulada. Por ocasião do julgamento da ADI n.º 14, Relator Ministro Célio Borja, o Supremo Tribunal Federal excluiu da incidência do artigo 37, inciso XI as vantagens pessoais, tais como: adicionais de tempo de serviço, quintos e gratificações, entre outras vantagens individuais, tornando na prática ineficaz o artigo 17 do ADCT, motivo pelo qual o Congresso Nacional alterou a redação do inciso XI do artigo 37 nos termos da Emenda Constitucional n.º 19, de 04.06.1998, conhecida como Emenda da Reforma Administrativa3. A Emenda Constitucional n.º 19/1998 estabeleceu como teto máximo, geral e único no funcionalismo público o subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. No cálculo do limitador deveriam ser incluídas as vantagens pessoais e toda e qualquer parcela de natureza remuneratória, percebidas cumulativamente ou não. Contudo, o próprio Supremo conferiu a interpretação de que a nova redação do artigo 37, inciso XI não seria autoaplicável, exigindo posterior regulamentação, portanto valendo a redação revogada do dispositivo constitucional. Sobreveio a Emenda Constitucional n.º 41/2003, conhecida como Emenda da Reforma da Previdência, a qual atribuiu a atual redação ao artigo 37, inciso XI4, contendo uma regra de transição no seu artigo 8, a fim de afastar a polêmica referente à ausência de regulamentação. Além disso, a nova redação estabeleceu subtetos, no âmbito dos Poderes e incluiu todas as vantagens pessoais ou não de natureza remuneratória percebidas pelos agentes públicos, sem exceção, mas continuam excluídas dele as parcelas de natureza indenizatória (FERRAZ, 2014, p. 223-224). 3 Art. 37 [...] XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. 4 Art. 37 [...] XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos; MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 253 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Os dispositivos da Emenda Constitucional n.º 41/20035 atribuíram aplicação imediata ao novo cenário normativo, com expressa referência ao artigo 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias6, levantando a discussão sob o aspecto da segurança jurídica7. Assim, antes da Emenda n.º 41/2003, determinadas vantagens pessoais (gratificações, adicionais) estavam excluídas do teto constitucional, decorrentes de situação funcional própria do servidor ou representativas de uma situação individual ligada à natureza ou às condições do seu trabalho. Com o advento da Emenda n.º 41/2003, ficou claro que não se sujeitam ao teto constitucional somente as parcelas de cunho indenizatório, o que foi reforçado com a Emenda Constitucional n.º 47, nos termos do §11 do art. 378 (MARTINS JÚNIOR 2009, p. 107). Com efeito, verbas indenizatórias possuem nítido caráter de ressarcimento de gastos efetuados em razão do exercício do cargo, sendo auferidos de forma eventual e transitória, enquanto persistir a situação fática exigida. Tal vantagem não pode ser encarada como privilégio ao servidor público, mas como instrumento de recomposição patrimonial em virtude de despesas efetuadas pelo exercício do cargo (DI PIETRO et al., 2015, p. 140). 5 Art. 8º Até que seja fixado o valor do subsídio de que trata o art. 37, XI, da Constituição Federal, será considerado, para os fins do limite fixado naquele inciso, o valor da maior remuneração atribuída por lei na data de publicação desta Emenda a Ministro do Supremo Tribunal Federal, a título de vencimento, de representação mensal e da parcela recebida em razão de tempo de serviço, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento da maior remuneração mensal de Ministro do Supremo Tribunal Federal a que se refere este artigo, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos. Art. 9º Aplica-se o disposto no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza. 6 Art. 17. Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título. § 1º É assegurado o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de médico que estejam sendo exercidos por médico militar na administração pública direta ou indireta. § 2º É assegurado o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde que estejam sendo exercidos na administração pública direta ou indireta. 7 A respeito do princípio da segurança jurídica confiram-se as lições de Juares Freitas em sua obra “O controle dos Atos Administrativos e os princípios fundamentais” (2013, p.84):”O princípio da segurança jurídica implica zelar pela estabilidade e pela estabilidade e pela ordem nas relações jurídicas como condição para que se cumpram as finalidades simultâneas de justiça concreta”. 8 § 11. Não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios de que trata o inciso XI do caput deste artigo, as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 47, de 2005) MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 254 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Posteriormente, em decorrência da Emenda Constitucional n.º 47, o § 12 do artigo 379 passou a admitir a fixação de subteto único no âmbito estadual por meio do Poder Constituinte Derivado Decorrente, observado o subsídio mensal dos Desembargadores.

5. Breves considerações sobre a permissão constitucional de acumulação remunerada de cargos públicos (artigo 37, inciso XVI)

O postulado constitucional que estabelece a possibilidade da acumulação remunerada de cargos públicos mantém uma relação de dependência com o dispositivo constitucional que trata do limite do teto remuneratório para fins de interpretação e aplicabilidade. Diante disso, assume relevância uma análise do inciso XVI do artigo 3710 e sua evolução constitucional. A regra da acumulação remete à Constituição de 1946, em que era permitido a acumulação de um cargo de juiz com o de professor; dois cargos de magistério ou um cargo de professor com outro técnico ou científico, desde que haja compatibilidade de horários. Com a Constituição de 1967 foi acrescentada a acumulação de dois cargos de médico, sendo mantida essa regra na redação originária da Constituição de 1988. Somente em 2001, com a Emenda constitucional n.º 34, é que a regra da acumulação de cargos sofreu alteração para alcançar os cargos ou empregos privativos de profissionais da saúde, com profissões regulamentadas.

6. Principais aspectos do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 612975/MT no qual foi fixada a tese de Repercussão Geral (Tema 377)

Da leitura do acórdão11 objeto deste estudo, observa-se que, nas acumulações compatíveis com texto constitucional, o que é auferido em cada um dos vínculos não 9 § 12. Para os fins do disposto no inciso XI do caput deste artigo, fica facultado aos Estados e ao Distrito Federal fixar, em seu âmbito, mediante emenda às respectivas Constituições e Lei Orgânica, como limite único, o subsídio mensal dos Desembargadores do respectivo Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando o disposto neste parágrafo aos subsídios dos Deputados Estaduais e Distritais e dos Vereadores. 10 Art. 37 [...] XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI: a) a de dois cargos de professor; b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas; 11 Ementa: TETO CONSTITUCIONAL – ACUMULAÇÃO DE CARGOS – ALCANCE. Nas situações jurídicas em que a Constituição Federal autoriza a acumulação de cargos, o teto remuneratório é considerado em relação à remuneração de cada um deles, e não ao somatório do que recebido. (RE 612975, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 27/04/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-203 DIVULG 06-09-2017 PUBLIC 08-09-2017). MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 255 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 deve ultrapassar o teto constitucional e as situações consolidadas anteriores à Emenda Constitucional n.º 41/2003 não podem ser atingidas, por conta do direito adquirido e da irredutibilidade de vencimentos, porque oponíveis ao Poder Constituinte Derivado. A fundamentação jurídica explanada no voto condutor do Ministro Marco Aurélio se inicia justamente com a necessidade de adotar uma interpretação capaz de conciliar os dispositivos constitucionais citados anteriormente, considerando o direito adquirido (artigo 5º, inciso XXXVI) e a irredutibilidade de vencimentos (artigo 37, inciso XV) como preceitos constitucionais que conferem suporte ao princípio da segurança jurídica. O Ministro diz no seu voto: “A regra do teto constitucional expressa duplo objetivo. De um lado, há nítido intuito ético, de modo a impedir a consolidação de ‘supersalários’, incompatíveis com o princípio republicano. De outro, é evidente a finalidade protetiva do Erário, visando estancar o derramamento indevido de verbas públicas”. Na visão do Ministro, a percepção somada de remunerações relativas a cargos acumuláveis, ainda que acima do teto, no cômputo global, não compromete os objetivos que inspiraram o constituinte originário. Pelo enfoque da moralidade, o Ministro esclarece que as situações alcançadas pelo artigo 37, inciso XI, são aquelas nas quais o servidor obtém ganhos desproporcionais. Por isso mesmo, o Ministro adverte que a prevalecer uma interpretação gramatical em detrimento da sistemática e do princípio da unidade da Constituição, a regra da acumulação remunerada ficaria esvaziada. Conforme nos ensina Mello (2010, p.277): “as possibilidades que a Constituição abre em favor de hipóteses de acumulação de cargos não são para benefício do servidor, mas da coletividade”. Di Pietro et al. (2015, p. 104-105) alertam que a interpretação literal ou gramatical nessa temática se apresenta contraditória e sugere uma interpretação sistemática entre as duas regras constitucionais aqui debatidas: A primeira interpretação naturalmente sugerida pelo dispositivo seria a incidência do valor correspondente ao teto remuneratório à soma das remunerações relativas aos cargos, empregos ou funções acumuláveis nos termos do artigo 37, inciso XVI. O resultado dessa operação, contudo, seria contraditório: admitir-se-ia como lícito o exercício acumulativo, mas com retribuição pecuniária menor em razão da sujeição ao teto remuneratório. [...] Em síntese, nos casos de acumulação autorizados expressamente pela Constituição, a interpretação sistemática dos dispositivos impõe a aplicação do artigo 37, XI, tendo como base de incidência a retribuição percebida por cada um dos cargos, empregos ou funções, e não a soma das retribuições. MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 256 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 No voto condutor, o Ministro Marco Aurélio ainda acrescenta mais dois fundamentos para concluir pelo afastamento da incidência do limitador, tendo em vista o somatório dos ganhos, sendo acumuláveis os cargos: o enriquecimento sem causa do Poder Público, pois viabilizaria retribuição pecuniária menor e a violação ao princípio da isonomia. A seguir, assim ficou resumida a decisão do Supremo, apreciando o tema 377 da tese de repercussão geral: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Edson Fachin, apreciando o tema 377 da repercussão geral, negou provimento ao recurso e fixou a seguinte tese de repercussão geral: “Nos casos autorizados constitucionalmente de acumulação de cargos, empregos e funções, a incidência do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal pressupõe consideração de cada um dos vínculos formalizados, afastada a observância do teto remuneratório quanto ao somatório dos ganhos do agente público”. Percebe-se uma aparente contradição entre o dispositivo constitucional que trata do teto remuneratório e o preceito constitucional que permite a acumulação de cargos. Portanto, a interpretação constitucional mais adequada não pode impedir a acumulação de cargos pelos servidores que já se encontrem no limite do teto, como ocorre com os Ministros do Supremo Tribunal Federal. Sobre esse aspecto, confiram-se os ensinamentos de Modesto (2001): A soma das acumulações constitucionais para fins de abate-teto não tem justificativa que a sustente. Nada representa do ponto de vista fiscal ou moral. No plano jurídico, de revés, provoca perplexidade, pois consta da Constituição Federal norma que autoriza os próprios Ministros do Supremo Federal a acumulação remunerada decorrente do exercício de outra função pública (ensino). Fica-se numa situação antinômica: uma norma autoriza a acumulação remunerada, permitindo aos ministros perceberem do Poder Público valores adicionais ao subsídio devido pelo exercício de seus cargos no Poder Judiciário, mas outra norma, a relativa ao teto, aparentemente impede qualquer percepção de valor adicional. No decorrer do julgamento, os Ministros que acompanharam o voto condutor destacaram como fundamento os valores sociais do trabalho que implicam a vedação de trabalho não remunerado. A limitação ao teto remuneratório constitucional tendo como parâmetro o somatório das remunerações, além de violar a irredutibilidade de vencimentos com um eventual decesso remuneratório, implicaria permitir o trabalho gratuito do servidor público, o que seria incompatível com a Constituição. Nesse contexto, vale destacar a posição de Martins Júnior (2009, p. 202-203) em que se manifesta contrário à somatória, fundamentando na submissão a tetos de esferas federativas distintas e nos princípios da dignidade da pessoa humana, valorização do trabalho, moralidade e razoabilidade: MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 257 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Ora, se a própria Constituição admite excepcionalmente a acumulação remunerada (arts. 37, XVI e XVII, 95, parágrafo único, I, e 128, §5.º, II, d), ela tem como pressuposto a licitude da duplicidade de remuneração, perdendo sentido submeter a soma das remunerações a um único teto, até porque poderá haver tetos de esferas federativas diversas. Compreensível que cada uma delas esteja sujeita ao seu respectivo teto, sendo ofensiva ao princípio da razoabilidade interpretação desconforme ou vedação extravagante contida em norma constitucional ou subalterna subordinativa de teto único. [….] A regra subordinativa de teto único para acumulações lícitas ofende os princípios da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho, da moralidade e da razoabilidade. Por sua vez, Ferraz (2014, p.226) acompanhando a posição adotada pelo Supremo, faz menção a julgado do STJ em que já se admitia a observância isolada do respectivo teto e ainda acrescenta que a regra de acumulação decorre do Poder Constituinte originário enquanto o limite do teto remuneratório deriva do Poder Reformador: Correto é o posicionamento mais recente do STJ, fundamentalmente em razão da exigência de compatibilidade de horários na acumulação de cargo, emprego ou função, o que evidencia que o servidor se submete a jornada dupla de trabalho, devendo perceber a remuneração integral pelo exercício de cada uma das duas funções, submetida cada qual isoladamente ao respectivo teto. Em reforço, deve-se frisar que o direito à acumulação de cargos foi previsto pelo constituinte originário, enquanto o teto remuneratório foi veiculado por Emenda à Constituição. Assim, diante da possível divergência interpretativa há de se reconhecer prevalência àquela que preserva o quanto possível a disciplina originária do Texto Constitucional. Outro aspecto que merece destaque, caso a interpretação pelo somatório das remunerações tivesse sido a vencedora, haveria dificuldade para as Administrações Públicas escolherem sobre qual remuneração dos cargos acumuláveis incidiria o redutor, inclusive quando atingir esferas distintas quanto à fonte pagadora. Ao se posicionar pela observância do teto constitucional de forma global José dos Santos Carvalho Filho aponta as dificuldades na operacionalização do controle, quanto às fontes pagadoras diversas em casos de acumulação lícita de cargos, quando é sabido que os entes públicos, como regra, não trocam informações sobre remuneração (CARVALHO FILHO, 2013, p. 757). O problema apontado por Carvalho Filho pode ser enfrentado sob a égide das transformações do Estado e a Administração Pública no século XXI, mais precisamente MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 258 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 sobre a Administração em Rede, com a finalidade de evitar distorções de informações entre os órgãos da Administração Pública das diversas esferas, quanto ao cruzamento de informações atinentes aos limites remuneratórios. Assim, para fiscalizar o limite do teto no âmbito da Administração Pública, as redes significam muitas vezes a interação de distintas organizações, públicas e privadas, propiciando que características relativas à estrutura do mercado, de organização hierárquica ou de modelos colaborativos se combinem, dependendo das instituições que dela participem ou dos objetivos a que visa (BITENCOURT NETO, 2017, p. 216). Por fim, não se pode esquecer dos argumentos trazidos no voto vencido do Ministro Edson Fachin, o qual defende que mesmo nos casos de cumulação constitucionalmente admitida, por expressa previsão do art. 37, XVI, do texto constitucional, devese aplicar o teto sobre a somatória das remunerações. Esta posição já era defendida por Carvalho Filho (2013, p. 664): A EC n.º 19/1998, alterando o inciso XVI do art. 37 da CF, estabeleceu uma outra condição nos casos de permissividade: a observância de que os ganhos acumulados não excedam o teto remuneratório previsto no art. 37, XI, da Lei Maior. A alteração, convém ressaltar, não impede a situação jurídica em si da acumulação dos cargos ou empregos; o que a referida Emenda vedou foi a percepção de ganhos cujo montante ultrapasse o teto previsto no art. 37, XI, da CF. Desse modo, parece-nos que, à luz do novo texto constitucional, será possível a acumulação se em um dos cargos ou empregos, ou até mesmo em ambos, o servidor tiver redução remuneratória de forma a ser observado o teto estipendial fixado na lei. Na mesma linha de raciocínio são os ensinamentos de Mello (2008, p. 283), posicionando-se favorável que, em casos de acumulação de cargos, aplique-se o limite constitucional do teto remuneratório: Se a Constituição permite a acumulação, esta é um direito do servidor; outra, a de que o proibido, inclusive nos casos de acumulação, é a superação do teto. A solução, pois, é conciliar estas ideias, com a cautela de não extrair delas nada além do indispensável à integral aplicação de ambos os comandos. Assim, por ser a acumulação um direito, há de se concluir que o servidor não pode ser impedido de acumular. Por ser proibida a superação do teto, há de se concluir que os valores correspondentes ao segundo cargo terão de ser detidos ao alcançarem, uma vez somados com os do cargo anterior, o equivalente ao teto remuneratório. No mesmo sentido, são os esclarecimentos de Valério Mazzuoli e Valdir Alves (2013, p.55), os quais defendem a somatória das remunerações para fins de observância do teto remuneratório: MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 259 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Em suma, o que dispõe a regra constitucional é que a remuneração provinda da acumulação de dois cargos públicos não pode ultrapassar o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, a permissão constitucional de acumulação de cargos não autoriza o recebimento de remunerações acumuladas superiores ao teto constitucional. Tanto a posição do Ministro Edson Fachin quanto dos autores citados partem de uma interpretação literal do artigo 37, inciso XI se fixando na expressão “percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza”, vinculando-o com a regra do regime das acumulações que traz em seu bojo a expressão “observada em qualquer o caso o inciso XI” (artigo 37, XVI). Em síntese, o estudo sugere que os fundamentos trazidos pelo voto condutor e pelos Ministros que o seguiram refletem a vertente pós-positivista do Direito Administrativo, conforme se analisará no capítulo seguinte.

7. A discussão do julgado e a compatibilidade entre os dispositivos constitucionais em questão, segundo a concepção pós-positivista do Direito Administrativo

O voto condutor do Ministro Marco Aurélio no caso do limite do teto remuneratório dos servidores públicos, acompanhado pela maioria dos demais Ministros, é ilustrativo do posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre temas que sempre estiveram à margem das transformações do Direito Administrativo, como a função pública. O fundamento a que recorre o julgador para defender a constitucionalidade de que o teto dever ser observado de forma isolada é o princípio da segurança jurídica, na vertente do direito adquirido e da irredutibilidade de vencimentos e o princípio da isonomia. Diante da literalidade do inciso XI do artigo 37, fixando o chamado teto remuneratório, quando expressamente diz: “percebidos cumulativamente ou não” surgiu um aparente conflito com o preceito constitucional que permite a acumulação remunerada de cargos públicos, o qual foi solucionado pelo Supremo com a técnica da interpretação conforme a Constituição sem redução de texto se utilizando dos ideários pós-positivistas do Direito Administrativo. Se a tese vencida da aplicação do teto constitucional sobre a somatória dos vencimentos tivesse prevalecido, implicaria na mitigação, ou até mesmo na anulação do direito à acumulação previsto constitucionalmente. Mostra-se contraditório permitir o exercício cumulativos de cargos públicos, sem ressalvas aos servidores que já atingiram o limite do teto em apenas um cargo, e ao mesmo tempo impedir o respectivo pagamento pelo segundo cargo licitamente cumulável. MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 260 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 Nesse contexto, pode-se afirmar que o texto constitucional nem sempre se revela completo, necessitando ser completado pelo método interpretativo mais adequado à concretização dos direitos fundamentais do servidor público. A interpretação literal, embora possa ser um ponto de partida para a resolução de diversas questões no âmbito da função pública, nem sempre se mostrará suficiente, devendo ser substituída por uma interpretação harmonizadora e que procure proporcionar à máxima eficácia aos direitos fundamentais. Como visto, a concepção pós-positivista do Direito Administrativo, como decorrência das recentes transformações e mudanças de paradigmas desse ramo do direito, serviu de fundamento para se chegar à interpretação que acabou prevalecendo, diante da menção ao fundamento da República referente aos valores sociais do trabalho e da proibição ao exercício de trabalho gratuito, reafirmando a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição, pois o direito à remuneração pelo trabalho desempenhado constitui um direito fundamental, não havendo razão para a incidência de qualquer redutor, denominado de abate teto ou a supressão total da remuneração.

8. Conclusão

A função pública estatutária foi atingida pelas transformações recentes do Direito Administrativo, basta perceber os debates em relação à Reforma da Previdência no setor público, a flexibilização da estabilidade e a observância de um limite de teto remuneratório constitucionalmente fixado. O Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral passou a adotar a interpretação de que o limite do teto remuneratório previsto no artigo 37, inciso XI deve ser observado isoladamente em relação a cada cargo e função licitamente acumulável, conforme permissivo constitucional nos termos do artigo 37 inciso XVI. Entre as premissas utilizadas pelos Ministros para se chegar a essa interpretação estão o princípio da isonomia, a eficiência e a valorização do trabalho humano, fundamentos que remetem à Constituição Federal sob o aspecto pós-positivista, reafirmando os princípios fundamentais da República. Sob esse prisma é possível concluir pela permissão que o servidor público possa cumular um outro cargo e receber sua remuneração integral pelo referido cargo, sob pena de afrontar à isonomia e esvaziar o princípio da eficiência. Não se pode admitir que nas hipóteses em que a Constituição autoriza a acumulação, um dos cargos sofra um decesso remuneratório ou que seu exercício seja feito graciosamente, por conta da regra do limite do teto remuneratório. Em suma, a concepção pós-positivista do Direito Administrativo e suas recentes transformações em termos de paradigmas serviu de suporte para se chegar à inter- MORON, Eduardo D. Lazarte. Os limites do teto remuneratório (...). 261 RDDA, vol. 6, n. 1, 2019 pretação que acabou prevalecendo no âmbito do Supremo Tribunal Federal, reafirmando os valores sociais do trabalho e o princípio da isonomia, afastando o exercício de trabalho gratuito. O direito à remuneração pelo trabalho desempenhado constitui um direito fundamental e somente uma interpretação com base no princípio da unidade da constituição e na concretização desses direitos fundamentais permitiram compatibilizar os preceitos constitucionais em aparente conflito.

9. Referências bibliográficas

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